Grandes acontecimentos dos novos tempos
Em primeiro lugar, por ele ser a expressão – e resposta – à fragmentação de nosso tempo. Depois, por parecer ser quase inapreensível, em um único relance, na totalidade de sua significação, enquanto manifestação de consciência crítica que evolui para um nítido caráter anticapitalista, fortemente contestadora da ordem imperialista vigente. E também porque, na sua 5ª edição, ele está em mutação, de modo até vertiginoso – processo cujos desdobramentos principais estão em aberto.
Mas é preciso falar do Fórum, é preciso falar no interior dele, é preciso tentar transmitir, mesmo em forma de crônica, algumas de suas características marcantes e transmitir experiências de participação nele. É inequívoco que os poderes midiáticos do mundo não informam nada sobre ele; antes, desinformam sobre seu significado. Mas nele está contido o novo surto de luta que haverá de alimentar a nova onda de luta por uma ordem social e política que supere o capitalismo. Outras centenas de milhares ou mesmo milhões precisam se apropriar de seus significados e experiências. O Fórum é um relâmpago luminoso que ilumina, num fragmento de tempo, a nossa época. Como disse Walter Benjamin, em Das Passagenwerk: “O conhecimento sempre surge em relampejo. O texto é a longa seqüência de trovões que o sucede”.
Na Babel, a Internacional é cantada
Durante uma das tardes ensolaradas, já nos dias finais, na célebre Tenda da Paz instituída como espaço privilegiado do Fórum pelo Cebrapaz, dezenas de ativistas nacionais e estrangeiros parlamentavam, descansando entre uma atividade e outra. Aproxima-se uma animada passeata, com cartazes, bandeiras, faixas. Era uma manifestação da delegação coreana, que vinha saudar a Tenda. Bastante performáticos, como parecem ser os coreanos, com um animador ao megafone e uma coreografia ritmada dos participantes, manifestavam algo. Tudo nos era incompreensível, porquanto tudo se dizia e escrevia nessa língua para nós indecifrável.
Não havendo naquele momento quem pudesse com eles entabular uma conversação, assim meio que espontaneamente nos levantamos e instituímos a única língua franca que nos ocorreu no momento: entoamos o hino dos trabalhadores do mundo, a Internacional. A confraternização foi geral e efusiva entre todos, de quem nos despedimos a seguir com congratulações e palmas de parte a parte.
Com a juventude à frente é promissor esse movimento
O Fórum foi, antes de tudo, um generoso gesto de confraternização entre ativistas e militantes de todas as causas, a expressar o valor sempre atual da solidariedade entre iguais, irmanados pela certeza de que vale a pena lutar, empenhar energias na luta social e política, como espaço de valorização do humano, ponto elevado da vida social e espiritual de cada cidadão e cidadã. Um outro mundo é possível foi bem mais que um mote; foi a seiva comum que alimentava a todos.
Houve uma característica muito saliente: a enorme predominância de jovens e, entre eles, de mulheres, entre os 155 mil inscritos. Provavelmente ali estavam as filhas da geração de mulheres que lutaram bravamente pela emancipação feminina, desde os anos 60. Geração que, junto com a de hoje, protagonizou um dos fenômenos de maior impacto de nosso tempo: a emergência do gênero feminino em todos os terrenos da vida social. Talvez ainda mais sábia hoje, pois aprendeu que já não nos basta seguir lutando pela igualdade de direitos (sempre mais necessários diante das enormes discriminações de que são vítimas, ainda em todos os terrenos), mas também proclamar vivas à diferença entre os gêneros, pois daí nasce a riqueza do patrimônio comum à humanidade.
Como “as águas de março, promessa de vida em (nosso) coração”, que coisa mais promissora para o futuro da luta podemos querer, quando vemos essa multidão, de homens e de mulheres, mas principalmente de jovens, a buscar rumos para uma sociedade mais justa e fraterna?
Saber ver o novo
Podemos falar sem medo de errar que as características da diversidade e pluralidade fazem a força do movimento contestatório atual, do qual o FSM é a maior expressão. Inclusive, lhe dão o colorido, sobre o qual se vê obrigada a falar – muito a contragosto –, a mídia mundial monopolizada, sempre para caricaturá-lo. Quem esteve na marcha de abertura, com seu séqüito de 200 mil participantes, pôde assistir a centenas (ou seriam milhares, já que se inscreveram 6588 organizações?) de causas e manifestos, cada qual com sua animação, suas bandeiras, suas cores, sua coreografia e performance, a proclamar aspectos – essenciais ou não, mas possivelmente todos imprescindíveis – do que entendem ser necessário para contestar a ordem vigente e afirmar um outro mundo mais solidário, democrático e justo.
Frente a essas características da diversidade e pluralidade, não precisa haver ressalvas, inclusive como código de coordenação do Fórum. Essa é a base de sua riqueza. Ele precisa ser compreendido exatamente como o espaço de diálogo crítico entre as diversas instâncias de luta pela emancipação social, respeitando inteiramente a autonomia dos movimentos sociais e reconhecendo neles novos protagonistas, e também de entabular novas interações com a luta na esfera política e suas instâncias próprias – aí incluídos os partidos de esquerda.
Sim, pode e deve haver preocupação com a fragmentação, a pulverização, pois não necessariamente emergirá da consciência espontânea que anima tais causas, um projeto alternativo de nova sociedade. Mas cada coisa em seu tempo: as próprias formas de consciência que se manifestam no Fórum seguirão seu curso de evolução e/ou involução.
A questão das alternativas objetivas à ordem atual, a mais aguda que se pôs já neste 5º Fórum, não prescindirá da teoria e da política, compreendidas como as formas mais elevadas da consciência social. As condições e o tempo em que isso ocorrerá não podem ser fixados de antemão – nem a sua inevitabilidade. Tampouco aos sovietes, em condições outras de época e caráter, distintas das atuais, era seguro evoluírem para o papel que Lênin soube captar com aguda penetrância. Mas Lênin viu neles algo novo em forma embrionária, e a primeira condição para isso foi saber ver. A segunda foi uma visão estratégica: trata-se de política quando falamos em superar o capitalismo; e política envolve o poder político, o poder de Estado. Cedo ou tarde haverá de se compreender não ser necessário reinventar a roda, mesmo que a nova roda deva ser bastante distinta das experiências do movimento transformador do século XX.
É nessa atitude que se distinguirão as visões do Fórum e de sua significação. Se a primeira condição é ver: é preciso participar para ver, é preciso reconhecer os interlocutores para o diálogo crítico. Que se enxergue então a marca mais saliente deste V Fórum: a unidade combativa em torno de uma plataforma ainda sem forma acabada, mas pulsante sob qualquer ângulo, e fortemente contestatória.
Porto Alegre não evolui para dialogar com Davos e construir uma nova ordem a partir dessa conciliação, pois isso secaria sua nascente. Por menos que se queira, o fato é que um conjunto de questões centraliza as aspirações de Porto Alegre e elas são marcadamente críticas. Expressam a um só tempo a fortuna do movimento – basicamente sua unidade combativa –, ao lado de seus impasses – porquanto questões programáticas momentosas não motivam ainda convicções e ideais mais claros.
Unidade combativa em construção
Esses pontos estão “moleculando”. A primeira questão é a luta pela Paz. Ela se afirma inconteste e unitariamente. É bandeira global dos movimentos. Reconhece-se não só como questão imperiosa do momento, enquanto fator de resistência, mas também como voltada diretamente ao coração do atual sistema de forças em plano mundial. Com base nela, proclama-se abertamente a condenação do imperialismo norte-americano. Para quem acha que a história acabou, ou que as “velharias” do passado não voltariam jamais, eis aí a resposta.
Outra é a questão da democracia. Um novo mundo precisa ser radicalmente democrático, isso é inconteste para todos. Questões novas vão maturando, relativas a como aprofundar o processo democrático na ordem mundial, que implica em restringir os poderes reais infensos a qualquer ordem (finanças, mídia etc). Também no relativo à gestão das sociedades, superando a atual espetacularização da política manietada pelo poder econômico e financeiro. Boas propostas não faltam e podem confluir para uma plataforma comum, beneficiada pelos enormes progressos da telemática, que permitem auscultar democraticamente os anseios da população em tempo real.
Mas o desafio é mais fundo para todos: como superar, objetiva e subjetivamente, os conceitos e preconceitos no terreno da organização política de uma nova sociedade, com respeito àqueles provindos da experiência real de tentativa de superação do capitalismo no século XX? De algum modo, há uma pedra no caminho: a negação da política, dos políticos e dos partidos políticos enquanto instrumento, e isso tem a ver com a capacidade de extrair daquelas experiências lições consistentes, que permitam construir um paradigma mais elevado de democracia. Do que se trata é de negação da negação, ou seja, da efetivação real de um modelo radicalmente democrático, possivelmente mais complexo e mediado do que as atuais formas liberal-parlamentares.
A terceira “molécula” que vai se gestando na unidade combativa é menos madura, e é precisamente a mais complexa. Gira em torno das questões do desenvolvimento, justiça social, soberania e socialismo. É precisamente o nó górdio de uma alternativa.
Não se parte de zero, muito pelo contrário. A noção de um sistema solidário, com igualdade de direitos entre todos, parece ser base comum. O mesmo quanto à condenação do poder dos monopólios e do imperialismo. Contesta-se mesmo é o capitalismo. Mas a partir daí o horizonte é mais nublado. Abarca desde concordâncias entusiásticas até fortes interrogações com respeito às experiências de novos governos como o de Lula e o de Chávez. Aliás, estes presidentes protagonizaram os dois momentos políticos altos do Fórum exatamente por essa eletricidade no ar. As identidades e contrapontos expostos por eles dão matéria para profundo exame dos caminhos, alcances e limites de um projeto que caminhe na direção de uma transformação social mais profunda. Em comum, a afirmação da luta pela integração da América do Sul e Latina; a construção da alternativa Sul-Sul, para a qual o governo Lula tanto contribui; os caminhos para barrar a Alca; e os intentos de conferir desenvolvimento às suas nações.
Mas o tema ainda não teve toda a centralidade necessária no FSM. Porque tanto a democracia quanto os direitos sociais, tanto a liberdade quanto a igualdade, não podem ser pensados fora da temática do desenvolvimento. No fundo da neblina essa é a esfinge à espreita. Quais os caminhos do desenvolvimento? Que peso tem o espaço nacional e a soberania como privilegiados ao pensar estratégico do desenvolvimento, inclusive o espaço dos Estados-nação? Como isso pode ser fortalecido hoje com os espaços de integração regional? Como combinar essa estratégia com a luta mundial das nações e povos? Desenvolvimento soberano se tornou a grande bandeira política do tempo, mas está insuficientemente amadurecido no debate atual. Menos mal que, mesmo assim, socialismo e patriotismo permaneçam como referência a todos quantos pensam com conseqüência nesses caminhos, como pudemos depreender da ovação a Chávez quando fez referências ao socialismo e ao bolivarianismo.
O dilema da alternativa
Sim, o FSM está em mutação. Viverá o dilema da construção da alternativa. Em certo sentido, sem medo e com apego ao sentido de fundo das palavras, é uma crise. Como escreveriam os chineses com seus caracteres, crise significa perigo e oportunidade. Seus problemas são os problemas do tempo, e não podem senão mobilizar as inteligências e vontades de todos quantos julgamos necessário superar a ordem capitalista.
Como podemos depreender, o caráter descentrado do FSM não se presta a hegemonias políticas desta ou daquela força política ou organização social. Todos marcam muitos gols e tomam muitos gols, no bom sentido, ao longo da sua jornada. Vamos aprendendo que juntos, somando forças e consensos, é melhor que separados; em todo caso sempre se pode marchar separados e golpear juntos o inimigo central. É bom que seja assim e não é esse o fator central de impasse, embora, sem dúvida, algum modo de construção coletiva de seu comando haverá de ser constituído para lhe dar seqüência.
O epicentro de seu alcance e limite reside no terreno da hegemonia cultural ou das idéias. Essa é a mãe de todas as batalhas. O FSM revela que esse processo ainda é eclético e de predomínio da insegurança quanto ao rumo transformador. Estão presentes desde a forte consciência humanista radical até a consciência socialista revolucionária, passando por todas as formas políticas intermediárias – possibilistas, reformistas, revolucionaristas. O ceticismo ainda é forte. Proveniente, sem dúvida, da negação do anterior paradigma de revolução social, expressa sob a forma reducionista (para a qual a experiência socialista deu margem), de que não serve a luta política que limitaria a autonomia de ação das organizações sociais, que só se poderia transformar a sociedade após a conquista do poder político, num suposto regime de partido único. Ou seja, a crise da experiência socialista calou fundo.
Daí nossa batalha central, de fazer amadurecer e atualizar uma teoria contemporânea para a revolução social. Para os que compreendem a centralidade de construir essa hegemonia de idéias e vontades avançadas, importa desenvolver a teoria revolucionária. Porque é de revolução social que se trata, sem medo das palavras. E revolução exige teoria para construir a predominância de idéias e vontades avançadas. O restante se decide na política – a forma e o caminho não vão repetir necessariamente o passado, pode até ser mais processual, ela sempre estará sob o risco tanto do voluntarismo estéril quanto de se tornar refém do pensamento liberal prevalecente em nosso tempo. Mas em todo caso envolverá rupturas e, sempre, implicará o poder político de Estado para se fazer efetiva.
Dialogando com o FSM, o marxismo pode enriquecer e ser enriquecido
O FSM é palco e laboratório desse pensar teórico. Para os marxistas revolucionários, impõe-se o reconhecimento de que há um número verdadeiramente muito grande e sólido de pontos de partida, na teoria marxista, comprovados pela experiência dos povos. Mas precisam se fazer atuais, para dar conta das características de nosso tempo. O fato de alguns se desfazerem disso não importa – sempre houve e haverá formas intermediárias de consciência política, espontânea e semi-espontânea. Mas é no embate crítico com elas que a teoria revolucionária pode ser atualizada.
Nesse processo, é positiva a ampliação dos setores sociais envolvidos na luta – expressão da característica do capitalismo realmente existente em nosso tempo –, a par do ecletismo e ceticismo que trazem consigo. Resta-nos resgatar (e reafirmar no processo concreto de luta) a centralidade dos trabalhadores enquanto classe social, para um projeto emancipador da sociedade. Esse o fator crítico da atualidade: fazer dessa classe concreta, sem idealizações ou romantismos extemporâneos, os sujeitos indispensáveis de sua própria emancipação.
Que o FSM siga a realizar prodígios
Na última tarde ensolarada do FSM, na Marcha Mundial contra a Alca, a animadora oficial do comício puxava a palavra-de-ordem “Viva a luta de classes!” Imaginem só! Isso voltou à cena muito antes do que se imaginava. Sim, é de luta de classes que se trata, é do caráter de classe do processo histórico revolucionário de que se trata, se de fato queremos superar o capitalismo e abrir caminho para o socialismo. Sem ingenuidade pueril e sem aventuras infantis. A política se imporá. O outro mundo possível é o socialismo renovado.
Bernardo Bertolucci, em seu último e belíssimo filme Os Sonhadores, afirma prestar uma homenagem ao Maio de 1968. Segundo ele, aquela geração foi injustiçada pela história até aqui. Se não levou de fato a imaginação ao poder, o fato é que ela marcou profundamente a época e seus frutos se revelam na emancipação das mentes em muitos domínios da vida social e espiritual, como foi o caso da liberação sexual.
O FSM já fez até aqui enormes prodígios. Produziu, entre outras coisas, a maior manifestação mundial de massa contra a guerra em 2004. É uma nova imaginação que nasce e se afirma. Se mais não fizesse, já teria marcado indelevelmente nosso tempo. Sem dúvida, a geração que o protagoniza será capaz de seus próprios feitos heróicos. E nisso, se orgulhará de ser a continuidade, para os novos tempos, do heroísmo de tantos que nos precederam, como bem lembrou Chávez ao saudar os lutadores de velho tipo que tornam possível para nós, hoje, reafirmar a mesma luta.
Walter Sorrentino é médico e secretário de organização do PCdoB.
EDIÇÃO 77, FEV/MAR, 2005, PÁGINAS 47, 48, 49, 50, 51