Porto Alegre sediou novamente – de 26 a 31 de janeiro –, mais um Fórum Social Mundial (daqui adiante apenas FSM), desta vez a sua 5ª edição. Os 155 mil inscritos, talvez 180 mil participantes, de 135 países, dentre eles 35 mil jovens acampados, envolveram-se em mais de 2500 atividades. O V FSM foi um grande palco de debates, articulações e de programação das mobilizações de massas. Em meio a um incessante debate sobre o seu futuro e a algumas tensões, o processo do FSM vai crescendo, amadurecendo e sofrendo mutações. É sem dúvida um dos maiores fenômenos políticos do século 21 que se inicia. Em termos qualitativos, em quatro anos o FSM evoluiu sobremaneira, internacionalizou-se mais, expandiu-se vigorosamente em vários fóruns temáticos, continentais, nacionais e, ao mesmo tempo, politizou-se.

A síntese do debate entre as concepções do FSM como “espaço aberto” – e enquanto o “movimento dos movimentos” – foi a melhor possível até agora. As alterações metodológicas se mostraram corretas. Segundo um texto do Secretariado Internacional do FSM, “a metodologia estimulou movimentos e organizações de todo o mundo a procurar construir, por meio de um diálogo que começou bem antes de Porto Alegre, atividades mais capazes de gerar propostas e ações comuns”.

O FSM continua como espaço aberto, cada vez mais democrático de fato, e incentiva intencionalmente as articulações entre os movimentos sociais para que estes aprofundem temas, organizem-se e lancem campanhas, ações concretas, mobilizações de massas, com a facilitação do FSM, mas não em seu nome.

O FSM está em mutação

Vai confirmando-se a tendência verificada desde o IV FSM, na Índia, passando pelo Fórum Social das Américas, no Equador, e pelo V FSM. Processualmente o discurso dos organizadores vai tendo mais ressonância na prática, e o FSM hoje é mais plural e participativo. Pode-se dizer que as várias “culturas políticas” de esquerda e progressistas têm seu espaço no FSM – o que não acontecia, sobretudo nas primeiras edições em Porto Alegre.

Sob o pretexto de combater os “tradicionais” movimentos sociais e exaltando de maneira unilateral os movimentos “antiglobalização”, os primeiros anos do FSM discriminaram movimentos e correntes políticas importantes. Nesse aspecto ele evolui bastante. Ao dar espaço no FSM para o que pulsa realmente na luta dos povos, surgem com a sua real expressão os movimentos populares mais combativos e, neles, obviamente, a presença de lideranças e intelectuais socialistas e revolucionários.

O processo do FSM, noves fora, é um fenômeno que tem contribuído para o florescimento de idéias antineoliberais, antiimperialistas e até anticapitalistas; é um espaço privilegiado para as articulações dos movimentos populares e intermovimentos; e possibilita a unidade na luta, ao ser palco de assembléias de movimentos e de lançamento de campanhas e mobilizações de massas.
Exemplos desse caráter progressista são as declarações resultantes deste V FSM, como o “Manifesto de Porto Alegre”, assinado por intelectuais, e a declaração da Rede Internacional dos Movimentos Sociais, aprovada em assembléia, denominada “Convocatória dos movimentos sociais contra a guerra, o neoliberalismo, a exploração e a exclusão, por outro mundo possível”.

As idéias predominantes ainda não são as socialistas, estamos longe disso. Ainda há muita heterogeneidade, pulverização e dispersão, mas também a cada ano ganham um pouco de terreno o antiimperialismo; o internacionalismo mesclado com o patriotismo; a valorização da política e dos partidos e movimentos políticos como fundamentais para a realização de mudanças profundas; o reconhecimento das experiências que tentam superar o neoliberalismo e construir o socialismo atualmente em curso no mundo, entre as quais Venezuela e Cuba tiveram expressão maior no V FSM; e a consciência da necessária unidade na luta.

E a cada ano perdem um pedaço de terreno as idéias pós-modernas e neoanarquistas de negação da política, dos partidos e da necessidade da libertação nacional. A cada ano perdem território as concepções do “pense globalmente, aja localmente”, da militância “social e não política”, das pequenas causas desassociadas da luta política, estimuladas por algumas ONGs.

A temática do trabalho e das lutas do proletariado ainda é pouco significativa na pauta do FSM. Na declaração da assembléia da Rede Internacional dos Movimentos Sociais, na qual constam dezenas de temas e bandeiras de luta de várias campanhas e movimentos além de uma agenda de mobilizações, as bandeiras e jornadas de luta ligadas à valorização do trabalho estão ausentes.
Neste V FSM ocorreram discussões sobre a reorganização do movimento sindical em nível internacional. E é verdade que a cada ano a presença das centrais sindicais e de debates sobre a luta sindical surgem com mais evidência; porém, pela importância estratégica da luta dos trabalhadores enquanto classe, por seu papel histórico, ainda é muito insuficiente. Os revolucionários não devem subestimar o significado político-ideológico desse urgente esforço para realçar a luta dos trabalhadores a um novo patamar, inclusive no processo FSM.

Um panorama do pensamento e dos movimentos sociais progressistas

Entretanto o FSM é um espaço aberto cada vez mais vasto, extenso, e nele se apresenta quase todas as idéias ou movimentos críticos às políticas neoliberais e ao domínio do capital. O FSM nos fornece um mapa mundial das lutas e dos movimentos sociais da atualidade, com suas bandeiras e formas de luta, a tradição e a inovação sempre presentes.

O FSM é interessante, pois nos apresenta um panorama atual do matizado e complexo pensamento progressista em escala mundial. Praticamente todas as vertentes do pensamento mais avançado, verdadeiro ou disfarçado, se fazem presentes e disputam as consciências das lideranças e dos militantes. Ao passo em que revela uma grande riqueza de idéias, e é um impressionante painel aberto para quem quiser conhecer melhor a realidade atual do pensamento crítico e avançado, o FSM também deixa patentes as dificuldades que existem para transformar essas idéias em força material. Ou seja, entre as idéias e uma real capacidade transformadora, revolucionária, há uma grande distância. Isso é próprio de uma fase de reconstrução, onde há ainda muita diferenciação, após a derrota estratégica da experiência soviética no final do século passado.

No FSM pululam tentativas de alternativa ao sistema capitalista, a maior parte consciente ou ingenuamente reformistas. É nesse debate que precisamos afirmar a alternativa revolucionária e desenvolver a luta pelo socialismo renovado, relançando a luta pelo socialismo adentro do século 21.

A nosso ver, a relação a ser aprofundada entre os comunistas de hoje e essas várias correntes político-ideológicas participantes do FSM – que pode ser resumida na consigna unidade na luta e luta de idéias –, é a sugerida por Oswald de Andrade no “Manifesto Antropófago”. É preciso participar assimilando as melhores contribuições e descartando o restante; influenciando e sendo influenciado.

Como os indígenas antropófagos faziam, ao literalmente engolir o guerreiro derrotado acreditando que dessa forma se fortaleceriam ainda mais, assim devem atuar os marxistas no FSM. É preciso ter a coragem de guerreiro para ir à luta de peito aberto e assimilar as proteínas criativas das idéias de nosso tempo, necessárias para enriquecer nosso pensamento, e, ao mesmo tempo, fortalecer nossa identidade comunista.

Os partidos e movimentos políticos tiveram maior liberdade para atuar durante o V FSM. Acabaram-se as restrições que impediam representantes de partidos de serem conferencistas – e os partidos brasileiros que reivindicaram obtiveram um espaço oficial dentro do “Território Social Mundial”. O FSM é um espaço dos movimentos e deve continuar sendo, mas não há justificativas para as normas proibitivas contra os partidos.

Os comunistas, desde o FSM na Índia, vêm conquistando sua cidadania no FSM – antes disso no máximo conseguiam um visto de entrada como turista. Os partidos comunistas de todos os continentes estiveram presentes e ativos no V FSM, através de suas lideranças nos movimentos sociais, de seus intelectuais e também de seus dirigentes e parlamentares. Ricardo Alarcón, presidente do parlamento de Cuba, participou de várias atividades e o Vietnã, repetindo o feito na Índia, veio com uma delegação representativa.

A bandeira da paz unifica a resistência antiimperialista

A marcha de abertura do V FSM, denominada Marcha pela Dignidade, amanheceu estampada nos jornais gaúchos como a Caminhada pela Paz. As mais de 200 mil pessoas que se manifestaram no primeiro dia do evento encontraram na bandeira da luta pela paz e contra a guerra imperialista seu ponto maior de unidade.

O alvo dos manifestantes não poderia deixar de ser a política de terrorismo de Estado de George W. Bush. Nunca é demais lembrar que a maior manifestação sincrônica da história da humanidade, contra a agressão ao Iraque, em 15 de fevereiro de 2003, foi discutida e aprovada na Assembléia Mundial de Movimentos Sociais realizada em Porto Alegre, durante o III FSM. Este ano aprovou-se uma convocatória para uma mobilização internacional no dia 19 de março contra a ocupação do Iraque.

A Coordenação dos Movimentos Sociais brasileiros, CMS, realizou, de forma inédita, uma grande assembléia durante o V FSM, na qual aprovou um calendário de atividades para 2005, com destaque para o dia 19 de março e para as atividades da campanha contra a Alca.

Estamos diante de uma luta de caráter estratégico, pois sem derrotar a ofensiva guerreira de Washington não há futuro para os povos. Baby Bush já ameaçou a atacar o Irã, Cuba e a Coréia Popular. A luta pela paz é, ao mesmo tempo, ampla e radical, pois é claramente antiimperialista.

Lula e Chávez são a expressão maior da politização do FSM

Demonstrando o verdadeiro caminho para superarmos o neoliberalismo – que é através da integração latino-americana, da independência e do desenvolvimento nacionais e da luta pela conquista do poder político –, as conferências dos companheiros Luís Inácio Lula da Silva, presidente da República Federativa do Brasil, e Hugo Rafael Chávez Fríaz, presidente da República Bolivariana da Venezuela foram as atividades com a maior participação de delegados do V FSM.

Ambas aconteceram no ginásio Gigantinho, adaptado para mais de 12 mil pessoas. Chávez foi mais longe e defendeu a revolução cubana e a tradição socialista do século 20, anunciando que o objetivo da revolução bolivariana é o socialismo. Diante disso, o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, perguntou: “Será esse o rumo que os povos latino-americanos almejam?”. Os participantes do 5º FSM disseram que sim.

É importante lembrarmos que conferências – ou qualquer outra atividade – de chefes de Estado não eram permitidas pelo Secretariado Internacional do FSM até o III FSM, em 2003 – quando se abriu exceção para uma palestra de Lula, recém-eleito, no Anfiteatro do Pôr-do-sol. Nesse mesmo evento Chávez fez uma conferência na Assembléia Legislativa que não foi incluída na programação. E, ainda assim, houve ressalva por parte dos membros do Secretariado Internacional de que a atividade não fazia parte do FSM.

Superando as expectativas, os mais de 150 mil participantes do V FSM, entre delegados de outros países e a maioria de brasileiros, em geral demonstraram apoio aos esforços mudancistas do Governo Lula, ao mesmo tempo em que reconheceram suas limitações e fizeram exigências.

Dois fatos demonstram o acima dito. Primeiro a conferência de Lula no Gigantinho, à qual compareceram milhares de militantes de outros países e brasileiros do PT, do PCdoB, da UJS e de praticamente todos os movimentos populares brasileiros. As vaias da oposição a Lula, uma minoria trotsquista, foram abafadas pelos aplausos da grande maioria. O mesmo ocorreu, de forma até mais contundente, na Assembléia Mundial dos Movimentos Sociais.

A América Latina é hoje um dos continentes mais promissores para a luta dos povos. O destino dos atuais processos políticos no Brasil e na Venezuela terá fortes implicações na luta política e ideológica no futuro próximo.

FSM em 2006 na Venezuela

O Fórum Social Mundial como conhecemos, na forma de um único evento mundial, voltará a acontecer somente em 2007 na África. Em 2006 serão realizados alguns FSM’s em nível continental: um na Ásia, um na África e, assim por diante. No caso das Américas o local escolhido foi Caracas, capital da Venezuela, na mesma data do Fórum de Davos. Antes disso a Venezuela também sediará – de 7 a 15 de agosto desse mesmo ano –, o 16º Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes.

Ainda haverá uma reunião do Conselho Internacional do FSM para confirmar os FSM’s nos continentes, mas tudo indica que a revolução bolivariana sediará um importante evento em 2006 e seguramente a experiência venezuelana será inspiradora e estimuladora para que o FSM continue mudando e evoluindo. Só assim conseguirá realizar o seu lema de outro mundo possível.

Ricardo Abreu (Alemão) é economista e membro do secretariado nacional do PCdoB.

EDIÇÃO 77, FEV/MAR, 2005, PÁGINAS 42, 43, 44, 45