Política econômica e autonomia do Estado
Ao ganhar as eleições em 2002, Lula assumiu uma estratégia de manter a política econômica no que diz respeito a seus fundamentos: as políticas monetária e fiscal. Há muitas explicações para tal opção. Elas abrangem uma escala de variantes que tem em seu extremo esquerdo, a tese de que faltariam condições políticas para mudanças radicais, sendo necessário, portanto, acumular forças; no extremo direito, outra tese afirma que simplesmente não havia (nem há) opção real ao neoliberalismo, celebrando a vitória final do capitalismo globalizado e de sua ideologia.
A tese da esquerda que apóia e participa do governo Lula – obviamente – se aproxima do primeiro extremo. Da perspectiva desta tese queremos discutir neste artigo os progressos feitos nos dois primeiros anos pelo governo no sentido de implementar mudanças que assegurem, no futuro previsível, uma melhora na capacidade do governo de implementar políticas diversas daquelas que teria tido que assumir, contingencialmente, para iniciar a governar. Em outras palavras: há uma forte restrição na capacidade do Estado em promover política econômica; o que se traduz, de imediato, por uma redução no grau de liberdade que tem o governo em adotar políticas que não correspondam aos interesses de classes ou grupos econômicos poderosos.
Para os defensores da tese da falta de condições políticas iniciais para se realizar mudanças, as limitações da ação do governo decorreria do fato de que uma alteração na política econômica acabaria, devido às reações defensivas do grande capital, por desencadear algum tipo de ruptura, com restrições ao fluxo externo de capital ou reestruturação da dívida pública interna. E embora tais conseqüências pudessem variar em grau e intensidade, sua adoção seria entendida pelo grande capital internacional e nacional como uma grave ameaça a seus interesses e uma hostilidade aberta e beligerante. Por outro lado, não haveria também por parte das demais classes ou grupos sociais – em especial da classe média – um apoio resoluto a tal ruptura. Isso levaria inevitavelmente a uma instabilidade política e econômica que levaria ao caos e à precoce inviabilização do governo.
Se somarmos à falta de apoio interna um ambiente internacional fortemente hostil a mudanças e a desafios à hegemonia americana, temos uma situação que justificaria o adiamento de qualquer alteração na política econômica. A opção seria dar continuidade à política econômica em vigor, comprometendo-se também com a manutenção dos contratos e a estabilidade monetária para assim conquistar a confiança dos setores que comandam a economia. Essa Estratégia já tinha sido antecipada na Carta aos Brasileiros, em junho de 2002. A sua lógica seria evitar um confronto que isolasse o governo prematuramente de suas bases de apoio social – pela ameaça ou concretização do caos econômico decorrente de um surto inflacionário, desvalorização do Real e fuga de capitais.
O centro dessa estratégia seria, então, ao tempo em que se adiariam as mudanças, a criação das condições para se conquistar graus de liberdade que permitissem, no futuro, alterar a correlação de forças, reduzindo a capacidade dos setores econômicos poderosos e das forças políticas conservadoras, para implementar as mudanças mais profundas.
Conseqüências políticas das reformas econômicas neoliberais
A base dessa avaliação da realidade política e econômica do Brasil pós-reforma neoliberal é real. As mudanças institucionais ocorridas nos anos noventa trouxeram ampla liberdade para o fluxo de capitais, não só permitindo a entrada livre de investimentos e empréstimos de todos os tipos, como também viabilizando que as riquezas aqui constituídas possam ser convertidas em dólar e transferidas para o exterior. Além disso, ao limitar o financiamento do déficit público apenas pela emissão de títulos públicos, constituiu-se uma dívida relativamente grande e de frágil sustentação, dados o curto prazo de vencimento e os custos decorrentes das altas taxas de juros praticadas. Como as políticas monetária e fiscal passaram a interagir entre si, a liberdade do fluxo de capital passou a fragilizar a dívida pública, constituindo-se em um enorme problema político para a autonomia de qualquer governo.
As reformas neoliberais não têm resultados apenas econômicos, elas determinaram também uma mudança política significativa na capacidade de retaliação dos detentores de riqueza financeira. Concedeu-se à plutocracia brasileira e aos investidores e credores estrangeiros – todos também credores da dívida pública – uma incontrastável força política, decorrente de sua capacidade de desestabilizar a economia nacional em curto espaço de tempo. E a grande concentração de riqueza característica da economia brasileira permite que um número reduzido de grandes empresas (não mais que poucas centenas), por meio de algumas dezenas de grandes instituições financeiras, opere um virtual monopólio sobre as três fontes de financiamento da economia: os financiamentos das contas externas, da dívida pública e da oferta bancária de crédito interno.
O domínio do fluxo de capitais, do investimento e do crédito, favorecido pelas regras de liberdade da conta de capitais e da regulamentação financeira e pela enorme concentração de riquezas, concede às classes dominantes, se contrariada, capacidade de gerar caos econômico. Podemos resumir essa capacidade em dois problemas entrelaçados: a vulnerabilidade externa e a vulnerabilidade fiscal do Estado. É na exploração dessas duas vulnerabilidades que as classes dominantes extraem o poder político desproporcional de que hoje gozam hoje.
Este poder conjugado sobre a política e a economia nacional das classes dominantes sempre existiu. A novidade agora é a rapidez de resposta por parte do grande capital frente a qualquer ameaça de mudança de política econômica que pareça desfavorável a seus interesses. Os grandes capitalistas, pela virtual liberdade de mandar embora seus capitais denominados em moeda ou facilmente conversível nela (como títulos financeiros, especialmente títulos da dívida pública), passaram a exercer a possibilidade de “votar com os pés”, e diariamente.
Não é nosso propósito fazer uma avaliação dos dois anos do governo Lula. Estamos interessados em avaliar mais especificamente a situação das contas externas e da dívida pública e o seu funcionamento segundo as regras criadas pelas reformas neoliberais dos anos noventa no que diz respeito a possíveis alterações na força política, permitidas por tais regras, e sua influência sobre a autonomia do Estado em promover política econômica, em especial, o grau de liberdade política do governo Lula em fazê-lo.
Não faremos, também, uma discussão econômica sobre o mérito da atual política do governo ou de suas alternativas. Pretendemos discutir as eventuais alterações ocorridas em dois anos de governo sobre as regras de liberdade na conta de capital e de financiamento da dívida pública e que tenham por conseqüência impor limitações à capacidade das classes dominantes, especialmente ao capital financeiro, em desestabilizar a economia e limitar a autonomia do Estado em mudar a política econômica.
Para verificar o aumento do grau de liberdade do governo frente a essa força política-econômica das classes dominantes devemos avaliar a evolução de dois aspectos fundamentais e interligados da economia brasileira: a vulnerabilidade externa e a solvência da dívida pública. Esses dois elementos determinam a estabilidade econômica da economia, fundamentando também a capacidade do governo em manter um crescimento econômico prolongado e estável.
Queremos responder às seguintes perguntas: O que mudou na situação de vulnerabilidade externa e fiscal após dois anos de governo Lula? Quanto o Estado reconquistou de autonomia política frente ao grande capital externo e interno durante o governo Lula?
A evolução da vulnerabilidade externa
Os analistas são unânimes em relação à melhora da chamada “vulnerabilidade externa”, decorrente da evolução favorável dos saldos comerciais e em transações correntes. Essa melhora é atestada por todos os índices utilizados, como a relação exportação/PIB e o saldo positivo em Transações Correntes (balança comercial, renda do capital e transferências unilaterais).
No entanto, é necessário distinguir os diferentes significados que pode ter o conceito de vulnerabilidade externa. Segundo a teoria econômica dominante, a vulnerabilidade externa é entendida, de maneira restrita, como a capacidade de uma economia nacional em financiar suas contas externas; isto é, na sua capacidade de gerar divisas em transações correntes (comércio, serviços, rendas de capital), de atrair investimento ou de captar empréstimos. Por essa razão, os índices utilizados de vulnerabilidade externa são todos indicadores de solvência, de capacidade de pagamento.
Esse é um importante aspecto das contas externas. Mas a vulnerabilidade externa deve ser entendida também como a capacidade que tem uma economia de se proteger de choques externos, tanto de demanda como de financiamento. Devemos levar em conta os riscos de uma alteração no mercado internacional que elevem os custos de exportação (como os choques do petróleo) ou de perdas de exportação por uma redução na demanda, como também as bruscas retrações de oferta de financiamento externo que acontecem sem ligação com o desempenho da economia nacional (como aconteceu em 1979 e em 1997).
Os choques de demanda ou de financiamento acontecem tanto por flutuações cíclicas do capitalismo mundial quanto por crises cambiais ou financeiras originadas em outros mercados e países, que se mostram cada vez mais freqüentes. Em especial, devemos considerar também a inter-relação entre o mercado financeiro e comercial, o que faz com que o comportamento da oferta internacional de investimentos e empréstimos possa determinar a piora nas transações correntes de uma economia nacional, especialmente no caso de um país dependente.
Dessa forma, o primeiro conceito de “vulnerabilidade externa” refere-se à melhoria de solvência para a oferta de crédito, mas nada informa sobre a capacidade do país de proteger sua economia de um choque externo.
Infelizmente apenas os indicadores do primeiro conceito melhoraram nos últimos anos.
Mas a vulnerabilidade externa medida pela capacidade da economia em se proteger contra choques externos – e o conceito que mais interessa ao país, tanto econômica quanto politicamente – não se beneficiou dos bons resultados do comércio exterior. O saldo comercial do biênio (US$ 44 bilhões) e a entrada de investimentos não representaram acréscimo nas reservas oficiais, servindo para financiar a conta financeira e os investimentos brasileiros no exterior. Esse último tópico representa mais um avanço no sentido de internacionalização dos capitalistas brasileiros iniciada nos anos noventa.
Contudo, a essência da vulnerabilidade externa – as regras de movimento de capital e liberdade cambial – permanece a mesma. Recebeu até alguns “aperfeiçoamentos”, como a facilidade do uso da TED nas CC-5, tornando ainda mais anônimas as remessas via CC-5. Na verdade, o propósito da diretoria do Banco Central é ampliar ainda mais a liberdade cambial e a livre movimentação de capitais.
Para tanto, defende que uma resolução do Conselho Monetário Nacional (CMN) unifique os dois mercados de câmbio hoje existentes, dando conversibilidade à moeda nacional – o que permitirá que brasileiros possam cada vez mais livremente transferir riquezas acumuladas domesticamente como investimentos no exterior.
A importância política de manutenção de uma conta de capital aberta – com livre fluxo de riquezas – é fundamental para os defensores das reformas neoliberais. Tal importância foi expressa recentemente por Anne Krueger, diretora-executiva do Fundo Monetário Internacional (FMI): “Quanto mais rápido se abrir uma economia, tanto melhor, por motivos econômicos (…) e porque quanto mais aberta for uma economia, mais difícil será voltar atrás e derrubar as reformas”.
Aliás, o controle sobre os capitais de brasileiros vem assumindo cada vez maior importância na discussão sobre controles de fluxos de capital. A partir de meados dos anos noventa, a riqueza transferida irregularmente para o exterior (desde a década de oitenta) por brasileiros vem representando uma fonte crescente de investimento direto estrangeiro, bem como de capitais de curto prazo. Os recursos que saem via CC-5 voltam como investimento direto ou de portfólio como se fosse estrangeiro. A soma dos IED oriundos de paraísos fiscais da América Latina – onde os capitais de brasileiros se reciclam em estrangeiros protegidos pela segurança barata desses paraísos – constitui juntamente com a Holanda e os EUA a maior fonte de investimento externo. Desse modo, o problema sobre o controle de capitais está passando a ser, cada vez mais, não a livre entrada e saída de capitais estrangeiros, mas a de capitais de brasileiros e constituídos no Brasil.
Por sua vez, o financiamento externo voluntário (empréstimos tomados no mercado) tem tido comportamento contraditório, com tomadores privados evitando o endividamento, havendo diminuição líquida dessa parte da dívida externa. A razão disso pode ser a baixa expectativa de negócios internos (devido ao custo de oportunidade muito alto, em razão da taxa de juros básica), bem como a incerteza sobre a taxa de câmbio, o que eleva o risco de dívida em dólar. Outra razão dessa retração da demanda privada pode ser a maior disponibilidade de crédito interno para o investimento produtivo por meio do BNDES. Como os tomadores públicos (estatais e Tesouro) vêm mantendo estável sua dívida, a composição público/ privado da dívida se inverteu nos últimos anos (ver Gráfico 1 – Composição da dívida externa).
Em razão dessa retração da demanda privada e pela não recuperação do IED ao nível anterior ao da crise de 1998, o déficit das contas externas vem sendo coberto pelos empréstimos estatais ou os compensatórios do esquema FMI (embora em 2004 as amortizações para com o FMI tenham sido superiores ao desembolso). Segundo a Tabela 1, a previsão do Banco Central para 2005 mostra um déficit no financiamento externo. Esse déficit poderá ser coberto pela redução das reservas no valor de US$ 12,6 bilhões ou, alternativamente, por uma contração no valor das importações, de remessas de rendas para o exterior ou ainda uma redução da transferência de ativos de brasileiros (que alcançará um valor recorde em 2006).
No seu conjunto, a posição do passivo externo (empréstimos mais propriedades de estrangeiros no Brasil) se ampliou fortemente até junho de 2004 (último dado disponível), crescendo 8% em 18 meses – mais do dobro do PIB no período (ver Tabela 2 – Posição internacional de investimento). O crescimento bruto do passivo externo – de 12% – se deu principalmente pela valorização interna de títulos e de lucros reinvestidos. Enquanto isso, embora os ativos de brasileiros no exterior tenham crescido mais, sua expansão se deu pela remessa efetiva de dólares, tanto como investimento direto como, especialmente, pelas CC-5 (cujos recursos são registrados como disponibilidade em moeda no exterior).
A mudança positiva quanto à vulnerabilidade foi a ampliação e a diversificação das exportações e importações. Mas, como vimos, essa melhora não é suficiente para alterar significativamente a situação de fragilidade externa anterior ao governo Lula. Qualquer mudança desfavorável na conjuntura internacional significará uma imediata piora na expectativa de “vulnerabilidade externa” (nos dois conceitos), tanto decorrente de possível redução na capacidade de gerar superávit corrente ou pela redução na oferta de crédito e investimento; já que nossa capacidade de honrar o serviço da dívida (juros mais amortizações) continua dependente do financiamento externo que, segundo a previsão do Banco Central, será insuficiente em 2005.
Essa situação de fragilidade nas contas externas pode ter como conseqüência a renovação do acordo com o FMI, em abril próximo. Ela poderia ser útil para aliviar uma possível perda de reservas, como também para viabilizar a prometida mudança na contabilidade do superávit primário, como veremos adiante. Embora essa renovação com o FMI não seja politicamente desejável, sua efetivação não seria uma surpresa.
Vejamos agora como se comportou a solvência fiscal e como ela se interliga com a vulnerabilidade externa.
A situação de solvência da dívida pública
O objetivo da política fiscal vem sendo dar sustentação à dívida pública. Essa sustentação alcançada pela redução da relação DLSP (Dívida Líquida do Setor Público) /PIB e pela melhora nas condições da dívida mobiliária: seus prazo e custos.
A elevação contínua do superávit primário do Governo Central – inclusive estatais – teve efeito apenas este ano sobre a relação DLSP/PIB, mas a principal contribuição na redução foi a do crescimento do PIB (ou seja, o aumento do denominador da fração). O valor do superávit primário – apesar de crescente – não é suficiente para cobrir o acréscimo na dívida líquida causada pela incorporação dos juros, o que torna imprescindível para estabilidade da relação dívida/ PIB que o PIB cresça.
Em relação à administração da dívida um item que vem sendo destacado como positivo é a queda na participação de títulos vinculados ao câmbio (que caiu para um terço desde 2002). Mas a situação da dívida não melhorou. Ao contrário do senso comum, embora a política fiscal tenha superado a meta do superávit primário e a economia apresente números otimistas, houve uma piora em relação ao custo, ao perfil de duração dos títulos e também na sua concentração no curto prazo. A deterioração ocorreu tanto nos prazos dos principais tipos de títulos, cujos vencimentos encurtaram, quanto na parcela da dívida total que vence em doze meses.
Essa piora no perfil da dívida se deu especialmente a partir do segundo trimestre de 2004, coincidindo com a primeira elevação da taxa de juros do FED, o banco central dos EUA. Isso mostra que o risco de crédito da Dívida Pública está contaminado por variáveis externas, como a oferta de recursos externos e a taxa básica de juros do mercado financeiro internacional. Essa deterioração do prazo do vencimento dos títulos federais demonstra que sem a melhora da exposição da economia aos humores dos fluxos internacionais de capitais uma economia dependente não se conseguirá, pelos méritos de sua própria política, melhorar a situação de sua vulnerabilidade fiscal.
Um outro problema grave é a situação inusitada do open market (mercado aberto). Neste mercado de operações de curtíssimo prazo, o Banco Central atua vendendo ou comprando títulos de sua carteira para controlar a liquidez do sistema bancário e fazer o ajuste fino da taxa básica de juros. A partir do final do primeiro semestre de 2002 houve um movimento de recusa dos credores em continuar refinanciando a dívida federal, transferindo seus fundos para a compra de dólares, o que ocasionou uma forte desvalorização do Real e uma ameaça de colapso cambial. O objetivo aparente desse movimento do grande capital foi defensivo, buscando se proteger contra a incerteza e, ao mesmo tempo, conseguir, dos candidatos a presidente, compromissos com a manutenção da política e a garantia de respeito aos contratos (ou seja, de continuar honrando a dívida). O objetivo foi alcançado, com declarações públicas de compromisso de todos os candidatos relevantes, inclusive com a extensão do monitoramento do FMI por meio da prorrogação do acordo em vigor.
Em setembro, com a assinatura da prorrogação do acordo do FMI, a pressão sobre o mercado de dólar cedeu, herdando-se uma grande liquidez no sistema bancário. Apesar de ter havido uma recuperação do refinanciamento da dívida pública, a liquidez permaneceu e foi absorvida não da maneira habitual pela emissão primária de títulos do Tesouro, mas pela venda compromissada de títulos da carteira do Banco Central – ocasionando uma verdadeira explosão do estoque de títulos nessas operações de curtíssimo prazo, multiplicado por trinta seu valor e participação na dívida em poder do público.
Como podemos pelo ver Gráfico 2 essa situação crítica até agora não foi revertida. Além de elevar perigosamente o risco de refinanciamento da dívida, o fenômeno praticamente anulou a função do open market de controle fino do meio circulante. O open passou a ser mais uma forma (precária) de existência da dívida em títulos de curtíssimo prazo. O estoque dos títulos no open passou a representar o quádruplo do valor das reservas bancárias no BC (R$ 22 bilhões, em média em 2003-04), sendo maior até que o valor total dos depósitos à vista (média de R$ 64 bilhões em 2004).
A manutenção desse excesso de liquidez praticamente invalida também qualquer função protetora das reservas internacionais. O estoque médio desses títulos durante o segundo semestre de 2004, cuja liquidez é praticamente instantânea, era suficiente, por exemplo, para a aquisição de 24,5 bilhões a uma cotação média de 3,50 reais/dólar; o equivalente à média de nossas reservas livres no mesmo período. Trocando em miúdos: em poucas semanas os detentores de títulos no mercado aberto podem – sem lançar-mão de paralisar a rolagem da dívida, como fizeram em 2002 – podem, teoricamente, desvalorizar o Real frente ao dólar até torná-lo pouco mais do que pó.
A conseqüência política dessa situação é dramática. A fragilidade do governo diante dessa situação de sua dívida, que vem sendo tolerada pelo Ministério da Fazenda e do Banco Central há mais de dois anos, dificilmente pode ser exagerada. O poder desestabilizador dos detentores desses títulos – concentrado em um número ainda menor do que os credores da dívida pública – é muito grande. E a capacidade das autoridades monetárias em defender a estabilidade da moeda e da economia é praticamente nula, exceto o rompimento dos contratos, a suspensão do resgate dos títulos e a inconversibilidade dos Reais em dólares.
Diante dessa situação inaudita criada na dívida pública federal, a pretendida melhora decorrente da redução do valor dos títulos indexados à variação cambial é praticamente inútil. Além do mais porque esse movimento de redução – apesar de exigido pelo Acordo com o FMI – foi fortemente ajudado pela valorização contínua do dólar desde o final de 2002, após a crise das eleições, o que esvazia naturalmente a demanda por proteção cambial (hedge) por devedores e de estrangeiros detentores de ativos no Brasil. Nada garante que uma inversão do valor do dólar frente ao Real não provoque outra vez, como aconteceu em 1998 e 2002, uma enorme pressão pela emissão de novos títulos dolarizados. Isso pode ser inevitável dada a inexistência de qualquer outro agente, afora o Tesouro e o Banco Central, que possa arcar com o risco cambial. E sem a estabilidade dada por operações de hedge, a atual política de flutuação cambial simplesmente não funciona devido à cíclica e dramática instabilidade de cotação que passaria a vigorar.
No conjunto, a situação da dívida fiscal está muito semelhante à do final de 2002: a fragilidade do Estado frente aos credores continua igual, se não pior, e o custo da dívida continua igualmente alto, devendo se elevar ainda mais em 2005.
Essa fragilidade vem se mostrando na proposta e execução do orçamento. Embora o governo tenha conseguido elevar significativamente as dotações em algumas áreas sociais, a sua capacidade de investimento continua fortemente comprometida. E a prometida mudança na contabilidade do superávit primário, feita pelo FMI – que liberará mais 2,5 bilhões de Reais –, pode estar vinculada à continuidade do monitoramento pelo Fundo. Essa continuidade reforça a indesejável expectativa de manter o acordo por mais um exercício.
Na nossa avaliação, no fundamental, a autonomia do governo em implementar mudanças de fundo na economia em nada mudou nestes dois últimos anos. O controle sobre um número sobre o financiamento das contas externas, da dívida pública e da oferta bancária de crédito interno continua firmemente concentrado em um reduzido número de grandes empresas e instituições financeiras. A abertura financeira e a existência de um grande parcela de riquezas sob a forma financeira permite a essa burguesia exercer permanentemente a escolha de onde colocar seus capitais.
A conjunção do virtual monopólio sobre o financiamento da economia, a liberdade do fluxo de capitais e a intercomunicação entre os mercados dos títulos federais e do câmbio permite às classes dominantes continuarem a gozar de uma incontrastável capacidade política de pressionar o governo, tanto na sua estratégia como no dia-a-dia de sua gestão.
Como não houve alteração dessa situação, o grau de liberdade do governo Lula frente às forças econômicas hegemônicas permanece fortemente tolhido. A tendência, pelo menos em médio prazo, deve ser de o governo continuar agindo em conformidade com sua principal diretriz de ganhar credibilidade do mercado, persistindo na opção escolhida desde o início do mandato.
Lécio Morais é economista e mestre em Ciência Política. É assessor da Bancada Federal do PCdoB.
EDIÇÃO 77, FEV/MAR, 2005, PÁGINAS 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27