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Luciano Siqueira: Mergulhar fundo para avançar na superfície

18 de novembro de 2024

Luciano Siqueira critica as leituras superficiais sobre a derrota da esquerda no Brasil e articula outras variáveis que estão fora do debate.

O imediatismo e a superficialidade sempre conspiraram contra a atividade política consequente. No passado, sob muitas formas; no tempo presente, acrescidas do impacto dos avanços tecnológicos e das transformações no mundo do trabalho e no modo como as pessoas se informam e formam opinião, sob forte influência da comunicação digital.

Há como que uma conspiração permanente contra a análise concreta da realidade na profundidade que a luta transformadora reclama.

Entretanto, mais do que nunca, aos que se batem pela causa revolucionária há que se se inspirar nos bons poetas: a partir de cada fato, muitas vezes aparentemente fortuito, estabelecer as relações entre o particular e o geral e deslindar o que há de essencial nos fenômenos presentes — sob o crivo da teoria marxista-leninista renovada e do descortino político consequente.

Parece óbvio, mas não é — a julgar pelo persistente comportamento espontaneista e fragmentário dominante na militância de esquerda.

ELEIÇÕES MUNICIPAIS, UM EXEMPLO

Tão logo se fecharam as urnas no segundo turno do último pleito municipal, surgiram as mais diversas análises do que se tem denominado “derrota da esquerda”.

O mapa geral das eleições até confirma essa assertiva. Pelo menos cinco grandes legendas de centro e de centro-direita (incluindo a extrema direita) – PSD, PP, MDB, PL e União Brasil – conquistaram nada menos do que 68 prefeituras das 103 cidades com 200 mil eleitores e mais (incluindo as capitais), correspondentes a 38% do eleitorado nacional (60,5 milhões de eleitores), conforme dados oficiais do TSE – Tribunal Superior Eleitoral.

Fácil identificar quem ganhou e quem perdeu. Complexo é compreender as razões.

Daí a escapatória, por parte de analistas de diversas colorações, ao concentrarem o foco no que consideram “discurso defasado da esquerda”, a ponto de se colocar a plano absolutamente secundário, por exemplo, o uso das emendas ao Orçamento, discricionárias, que põem nas mãos dos parlamentares poderoso instrumento passivo de práticas “fisiológicas” destinadas a manter e ampliar o controle do poder municipal.

“Em termos nominais, as emendas parlamentares saíram de R$ 6,14 bilhões em valores empenhados em 2014 para um montante autorizado de R$ 44,67 bilhões em 2024. As emendas, que correspondiam a 3,95% do conjunto das despesas discricionárias em 2014, chegaram a um pico de 28,78% em 2020 e, em 2024, devem representar 20,03% das discricionárias. Em 2014, das transferências federais diretas para municípios, estados e entidades privadas, isto é, dos recursos discricionários não executados diretamente pela União, 83% foram feitas pelo Executivo federal e 17% foram emendas do Legislativo (esses valores não incluem fundos de participação). Em 2023, as transferências do Executivo foram 54% do total, e as do Legislativo (emendas), 46%” (1), uma das expressões mais contundentes do que Ronald Freitas caracteriza como “parlamentarismo informal”, uma das faces da “disfuncionalidade do Estado” hoje operante no país (2).

Ademais, a absurda disparidade de recursos financeiros postos à disposição das legendas partidárias mediante o Fundo Partidário e o Fundo Eleitoral, proporcionalmente ao tamanho atual das bancadas parlamentares, há que ser considerada importante fator de desigualdade na disputa pelo voto.

Isto em ambiente dominante no país em que, apesar da reconquista da presidência da República, com a eleição de Lula, a correlação de forças se mantém essencialmente adversa.

FENÔMENO MUNDIAL

É certo que há também outras razões que contribuem para o enfraquecimento das correntes de esquerda no Brasil. Uma delas, o distanciamento progressivo da militância partidária em relação às massas trabalhadoras e ao povo, concomitantemente com o enfraquecimento das entidades representativas, a partir dos sindicatos e envolvendo outras organizações da luta popular.

Porém o buraco é mais embaixo, como se costumava dizer no século passado, e se insere numa conjuntura mundial adversa.

A título de exemplo, tomemos como referência as últimas eleições para o Parlamento Europeu, onde se verifica que predomina naquele continente tendência à direita e à extrema-direita.

A extrema-direita tem crescido de forma constante na Europa desde a virada do século. Hoje é a principal força política na Itália (Frères d’Italie), na França (RN), na Hungria (Fidesz-Hungarian Civic Union), na Holanda (PVV Partij voor de Vrijheid, de Geert Wilders) e na Áustria (FPÖ). E a segunda maior força na Alemanha (AFD) e na Bélgica (3).

E sob multifacetado cenário de agravamento da crise do sistema capitalista imperante, onde pontificam a ultra concentração da produção, da renda e da riqueza e a exclusão do mundo produtivo de crescentes massas trabalhadoras, o sistema mobiliza variados e complexos mecanismos no sentido de manter a ordem vigente e dificultar a revolta dos excluídos.

No exercício do poder, o capital financeiro internacional imbricado com a classe dominante dos países em desenvolvimento (no caso do Brasil, sobretudo em aliança com o rentismo e o grande agronegócio exportador), impõe às economias desses países rígido arcabouço ultraliberal, de que o dogma do chamado equilíbrio fiscal faz parte como instrumento de pressão sobre os governos (4).

Demais, crescente e multifacetada é a combinação entre os meios tradicionais de dominação ideológica e a comunicação digital, sob controle das big techs, que lastreiam mecanismos como a chamada guerra cultural e a manipulação e venda de dados como fator de acumulação do capital e refinada extração da mais-valia mediante a dominação dos trabalhadores pela algoritimização da vida (5).

Na vida cotidiana, uma pressão permanente pela dispersão na consciência do indivíduo, dificultando não apenas referências de espaço, tempo e lugar; como atropelando a tomada de consciência de classe.

Sem dúvida, fatores que conspiram, no limite atual das democracias liberais, para o descendente desempenho eleitoral das esquerdas, e dos comunistas em particular, na maioria dos países da Europa e da América do Sul.

NOVAS FORMAS DE LUTA E DE ORGANIZAÇÃO

Nessas circunstâncias, vale a assertiva de Lênin de que cada conjuntura implica na possibilidade de novas formas de luta e de organização, obviamente sem negar práticas que persistem como válidas (6).

O competente exercício da relação entre teoria e prática, portanto, se apresenta hoje marcado por desafios de ordem a) teórica (evolução do pensamento estratégico compatível com a nova luta pelo socialismo); b) política (reafirmação do proletariado como força de vanguarda sob novas condições, no exercício de orientação tática verdadeiramente ampla, flexível e consequente) e c) reinvenção da ação militante coletiva no seio do movimento de massas real.

Portanto, desafio muito mais complexo e bem além do que a reducionista “solução” do ajuste da agenda imediata para dar conta da influência crescente do ideário retrógrado disseminado pela extrema-direita.

Referências

(1) Schymura, Luiz Guilherme: Aumento de emendas sinaliza necessidade de nova cultura orçamentária. IBRE (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas). Revista Conjuntura Econômica, 9/4/2024

(2) Freitas, Ronald: O Estado brasileiro e seus desafios no século XX! (uma breve história). Fundação Maurício Grabois/Editora Observador Legal

(3) Eric Tousaint: Versão 2.0: Uma Europa rumo à direita e à extrema direita. Comitê para a abolição das dívidas ilegítimas, 1 de agosto de 2024

(4) Grupo de Pesquisa Desenvolvimento Nacional e Socialismo da Fundação Maurício Grabois: Cortes defendidos pelo mercado financeiro trarão menos crescimento e mais desigualdade. Portal da Fundação Maurício Grabois www.grabois.org.br 14.11.24

(5) Salles, Herbert: Algoritmização: controle social na era da economia digital. Le Monde Diplomatique, maio de 2024

(6) Lênin, Vladimir Ilitch: Que fazer? – problemas candentes do nosso movimento (capítulo III). Edições Avante.

Luciano Siqueira é membro do Comitê Central do PCdoB, integrante do Grupo de Pesquisa da Fundação Maurício Grabois sobre a Extrema-Direita e o Neofascismo.

Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.