Redemocratização: contradições contemporâneas
"Acabou a ditadura! O povo volta a sorrir”, dizia a manchete de 21 de janeiro de 1985 do jornal Tribuna da Luta Operária, registrando a vitória em 15 de janeiro de 1985 do candidato das oposições à presidência da República na última eleição indireta, em que Tancredo Neves teve 480 votos contra os 180 de Paulo Maluf, candidato do PDS, dos generais e das forças mais retrógradas da sociedade brasileira.
Foi o ápice de um movimento que, em 1974, havia dado um salto com a surpreendente vitória eleitoral do partido da oposição legal à ditadura, o MDB. A Arena, partido dos generais e da direita, até então tinha maioria eleitoral nos pleitos realizados em condições democraticamente restritivas. Em 1966, por exemplo, teve 14,5 milhões de votos (59%), contra 10,1 milhões do MDB (41,1%), mas ficou com 277 deputados, contra 132 do MDB – isto é, ficou com 67,7% das cadeiras na Câmara Federal (obtendo maioria absoluta de 2/3) contra 32,3% da oposição.
Aquela eleição pode ser encarada como o começo da mudança. Nela, a oposição teve 59% dos votos para o Senado, elegendo 16 dos 20 senadores, e 48% para a Câmara Federal, obtendo 165 dos 364 deputados federais. A resistência democrática ganhou, então, um impulso de massa que, partindo do enfrentamento contra a ditadura em assembléias populares e, depois, de passeatas, fortaleceu sua representação no Congresso Nacional e nas assembléias legislativas e câmaras de vereadores, na dialética entre a rua e o parlamento, característica da transição brasileira.
As ações armadas, na cidade e no campo, em especial, a Guerrilha do Araguaia – em que pese o desgaste que impuseram ao regime – haviam sido vencidas pela repressão feroz e a resistência contra a ditadura começava a tomar a forma de ações de massa, sinalizadas pela eleição de 1974 e também pela movimentação das classes médias, dos trabalhadores e dos moradores das periferias das grandes cidades.
A onda democrática começou a crescer inicialmente na forma do clamor pela anistia, exigência colocada desde o início da ditadura. Em 1975, a fundação do Movimento Feminino pela Anistia ajudou a popularizar aquela bandeira e, quando o Comitê Brasileiro pela Anistia foi criado, em 1978, ele surgiu como instrumento da massificação e fortalecimento da luta, desembocando na anistia de 1979 que, embora limitada, inaugurou uma nova etapa com a volta à ação aberta de lideranças populares e progressistas relegadas, até então, à clandestinidade ou ao exílio. A lei de anistia também ampliou o espaço democrático ao criar condições para a volta à atividade, embora em condições ainda semiclandestinas, de organizações políticas populares que os militares tentaram, sem êxito, banir. Como o PCdoB, que voltou a atuar às claras e, desde 18 de outubro de 1979, publicou seu jornal de massas, a Tribuna da Luta Operária, um instrumento fundamental para a reorganização do Partido e intervenção na luta política em curso.
Embora os generais e os políticos conservadores e de direita tenham se proposto, com a ditadura, eliminar a luta de classes, ela continuou mesmo nas condições extremamente desfavoráveis da ditadura, exprimindo-se nas formas elementares típicas dos períodos de repressão e perseguição policial. Para os trabalhadores a política econômica da ditadura teve como resultados o arrocho salarial, o autoritarismo nas fábricas e locais de trabalho, e a degradação das condições de vida.
Quando as populações da periferia das grandes cidades voltaram a se movimentar, os dirigentes e militantes populares buscavam as brechas possíveis para sua organização. A Igreja católica teve, então, um importante papel como um “guarda-chuva” que abrigou esses lutadores do povo, destacando-se, entre eles, os comunistas. Eles defendiam o atendimento de necessidades imediatas, como creches, transporte, água e saneamento. Foi assim que surgiu, em 1973, a Carta das Mães da Periferia de São Paulo, contra o alto custo de vida. O movimento cresceu e levou à criação, em 1977, do Movimento do Custo de Vida (mais tarde rebatizado como Movimento Contra a Carestia), em uma assembléia popular realizada em São Paulo, com mais de sete mil pessoas, que lançou o abaixo-assinado pelo congelamento dos preços, um eficiente instrumento de mobilização e organização popular que, até agosto de 1978, reuniu 1,3 milhão de assinaturas dirigidas ao presidente da República, general Ernesto Geisel.
Em 1977, importantes setores também irromperam no cenário político, como os juristas e os estudantes. Os primeiros marcaram sua posição com a Carta aos Brasileiros, divulgada em 11 de agosto de 1977, iniciativa de professores da Faculdade de Direito de São Paulo, entre eles Goffredo da Silva Telles. Assinada por 100 juristas, ela exigia a volta do Estado de Direito e a convocação de uma assembléia constituinte. Os estudantes já haviam se destacado na luta contra a ditadura nas décadas de 1960 e 1970, tendo perdido importantes líderes, como Honestino Guimarães, assassinados sob tortura em 1973. A UNE e outras organizações, como UEEs e UBES, praticamente deixaram de existir desde então; elas começam a renascer em 1977, com a volta dos estudantes às ruas, pela anistia e pelas liberdades democráticas. Em setembro desse ano, a PM paulista ocupou a PUC/SP para impedir a realização do 3º Encontro Nacional dos Estudantes, mas, mesmo jogando bombas – que feriram gravemente algumas estudantes – e prendendo milhares, não teve êxito. O 3º ENE criou, naquela data, a Comissão Pró-UNE cujo resultado foi a reorganização da UNE, no 31o Congresso, de 31 de maio de 1979.
Se 1977 foi o ano dos estudantes e dos juristas, 1978 assistiu à emergência dos trabalhadores, cujas assembléias contra o arrocho salarial cresciam desde 1977 e, com elas, a articulação entre aqueles que eram, na época, chamados de sindicalistas autênticos. Sua vanguarda foi os metalúrgicos do ABC paulista – principalmente de São Bernardo do Campo –, mas reunia também sindicalistas de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul etc. E mobilizava, além de trabalhadores da indústria, bancários, professores, médicos, funcionários públicos e outras categorias que, nas décadas anteriores, foram proletarizadas e submetidas a condições de e trabalho semelhantes às do proletariado tradicional.
Em 12 de maio de 1978, a greve dos operários da Saab Scania, em São Bernardo do Campo, foi o estopim do grande movimento grevista que rompeu o silêncio imposto pela repressão às greves de Contagem e Osasco, de 1968.
O auge do movimento dos trabalhadores foi a greve do ABC de 1980, que infringiu uma derrota decisiva ao projeto de abertura restrita e limitada dos generais. A ditadura mobilizou forças policiais e militares, tentou cooptar lideranças moderadas, prendeu, impôs perdas econômicas aos trabalhadores. Tudo em vão e, nos anos seguintes, a luta de massas continuou e se aprofundou com a reorganização das entidades centrais, cujo marco foi a realização da I Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras (I Conclat), em agosto de 1981 e a fundação do Partido dos Trabalhadores em fevereiro de 1980. Alguns anos depois, os trabalhadores rurais que lutavam pela reforma agrária fortaleceram a Contag (Confederação dos Trabalhadores na Agricultura) e também organizaram o MST, criado em janeiro de 1984. Os latifundiários, por sua vez, criaram a UDR em agosto de 1985.
Esse também foi um período de ações terroristas da repressão. Nos anos anteriores, seu principal alvo foi as organizações clandestinas, muitas das quais promoveram ações armadas para fomentar a resistência popular. A ação repressiva eliminou-as prendendo, torturando e assassinando seus líderes e militantes. Depois de 1974, a repressão continuou, refletindo a disputa, nos marcos do regime militar, entre os que preconizavam uma abertura controlada e limitada, e o aparelho repressivo avesso a qualquer concessão democrática.
O assassinato do jornalista Wladimir Herzog, em 25 de outubro de 1975, provocou uma onda de indignação que envolveu a classe média, e o ato ecumênico em sua memória em 6 de novembro de 1975, reuniu 8 mil pessoas na Catedral da Sé em São Paulo, sendo a primeira manifestação aberta contra a ditadura desde o final dos anos 60.
Juntamente com o assassinato, também sob tortura, do operário Manoel Fiel Filho, em 17 de janeiro de 1976, e a Chacina da Lapa, em 16 de dezembro de 1976, onde dirigentes do PCdoB foram mortos a tiros e outros presos, foram episódios sangrentos dessa disputa.
Os agentes da repressão, aparentemente, mudaram a forma de agir. Antes, prendiam, torturavam e matavam sob proteção da máquina repressiva da ditadura. Agora, os avanços democráticos pós-anistia impediam essa desenvoltura, e eles voltaram-se à ação terrorista aberta. No governo do general Figueiredo explodiram bombas em bancas que vendiam jornais da imprensa independente e enviaram cartas-bombas a entidades como aquela que, em 27 de agosto de 1980, matou a secretária da OAB, Lyda Monteiro; em 30 de abril de 1981, dois agentes “acidentaram-se” ao tentar explodir uma bomba num show pelo dia do trabalho que ocorria no Riocentro, Rio de Janeiro. Essa onda terrorista escandalizou os setores mais moderados, afastando-os da ditadura.
Era um quadro de crise em agravamento e crescimento do descontentamento popular. O começo da década de 1980 foi marcado também pela crise do modelo econômico baseado no endividamento externo. A moratória mexicana teve forte repercussão internacional. No Brasil, a situação era de recessão – a primeira desde a década de 1930 – com queda de 4,4% no PIB em 1981. Havia dificuldade para continuar a captação dos recursos externos essenciais para a manutenção do modelo e, em setembro de 1982 – o “setembro negro” –, o país foi salvo da bancarrota por um empréstimo de emergência do governo dos EUA; em novembro daquele ano foi feito o primeiro acordo com o FMI, que passou a monitorar a economia brasileira.
Tudo isso sinalizava o fim da ditadura e do modelo econômico implantado desde a década de 1950 e aprofundado pelos militares de 1964, de desenvolvimento baseado na desnacionalização da economia, em investimentos de multinacionais, na modernização conservadora do latifúndio com a proletarização e expulsão para as cidades dos trabalhadores rurais, no arrocho salarial.
Em 1982, outro passo importante na busca da normalidade democrática foi a eleição direta de governadores – a primeira desde 1965 – levando destacados líderes oposicionistas ao executivo em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e outros sete Estados, totalizando a maior parte do poderio econômico, da população e do território nacional. As oposições estavam agora, depois de décadas, em condição de usar aqueles governos como alavancas para impulsionar a luta democrática. Pela primeira vez, desde 1964, a sucessão presidencial ganhou as ruas e teve uma influência popular decisiva, embora num ambiente de dificuldades que, em documento publicado em setembro de 1984, a direção nacional do PCdoB caracterizou como antidemocrático e de “grande descontentamento popular e crise em expansão”.
A campanha pelas Diretas Já ganhou o país em 1984, unindo as forças políticas democráticas sob o lema “quero votar para presidente!”, num movimento que teve importante participação dos comunistas. As marchas e comícios levaram mais de 8 milhões de pessoas às ruas das capitais e grandes cidades. Quando a emenda constitucional das diretas não conseguiu obter, em 25 de abril de 1984, no Congresso, os votos necessários para sua aprovação (ela teve 298 votos a favor, 22 a menos do que os 2/3 exigidos para a aprovação), iniciou-se outro esforço: “matar a cobra com seu próprio veneno”, como disse então o deputado Ulysses Guimarães, presidente do PMDB e principal dirigente da campanha pelas diretas. A idéia era manter as ruas ocupadas e derrotar a ditadura no próprio colégio eleitoral espúrio que ela criou para homologar a indicação de seus presidentes.
As manifestações repercutiram entre os quadros da ditadura, cuja crise se aprofundou rapidamente, rachando o partido dos generais, o PDS, com o choque entre aqueles que defendiam a candidatura de Paulo Maluf com os partidários de uma alternativa mais palatável à exigência democrática crescente. A divisão foi consagrada em 11 de junho de 1984 quando José Sarney renunciou à presidência do PDS abrindo caminho para a aliança entre aqueles dissidentes e a oposição. Começava a nascer a Frente Liberal do PDS, formada por políticos como Antônio Carlos Magalhães, Marco Maciel, Aureliano Chaves, o clã catarinense dos Bornhausen, o próprio Sarney, políticos conservadores que se fortaleceram durante a ditadura e agora se isolavam da direita radical e fascista seguindo seu instinto de sobrevivência política. Eles formaram a base do PFL que, nas décadas seguintes, seria um dos principais eixos da política conservadora e neoliberal no Brasil.
A candidatura de Tancredo Neves à presidência começou a tomar forma depois de um esforço de convencimento em que o dirigente comunista João Amazonas teve papel importante. Em agosto de 1984, formalizou-se a aliança entre o PMDB e a Frente Liberal, para indicar Tancredo Neves como candidato oposicionista ao colégio eleitoral, e José Sarney como vice, com o compromisso de que aquele seria um governo de transição cuja principal tarefa seria a convocação de uma constituinte em 1986. No âmbito do campo popular e da esquerda, foi relevante o apoio do PCdoB a Tancredo, pois o Partido deu a sua candidatura o apoio de massa negado por correntes, como PT e PDT, que não apoiaram o candidato único das oposições.
Os anos finais da ditadura foram marcados também pelo embate em torno dos rumos do desenvolvimento. O modelo econômico dos militares se esvaía e a encruzilhada histórica em que o país se encontrava traduzia-se na busca de novos caminhos.
De um lado, os setores populares exigiam medidas como a suspensão dos pagamentos da dívida externa, a adoção de um novo projeto nacional de desenvolvimento, medidas contra a espoliação do país pelo capital estrangeiro, reforma agrária, melhor distribuição de renda, entre outras. “O Brasil necessita de um novo regime e de um novo governo, de conteúdo democrático e popular”, defendia João Amazonas.
De outro, as classes dominantes insistiam no saneamento fiscal do Estado, privatização das empresas públicas, corte de benefícios sociais e liberdade de ação para o capital, programa já sinalizado em 1976, na campanha pela desestatização.
Na crise da ditadura, a burguesia industrial sentia-se ameaçada pela luta sindical crescente; o grande capital financeiro buscava uma política fiscal para garantir o pagamento de juros e a garantia dos contratos; os latifundiários temiam a reforma agrária.
As posições em confronto tomaram contornos mais nítidos com a aproximação da eleição para a constituinte. Um bom resumo do programa das classes dominantes foi feito pelo empresário Luiz Eulálio de Bueno Vidigal Filho, então presidente da Fiesp, no artigo “Contribuição para uma constituição Brasileira”, de 1985.
Nele, Bueno Vidigal Filho estabelece um paralelo entre democracia e liberdade para o capital, acusando o Estado de sufocar a iniciativa privada. A democracia, disse, se compara ao mercado, havendo “um perfeito paralelo” entre ela e o processo eleitoral”.
O objetivo de Vidigal era construir a nova ordem sob o comando do capital, mantendo as restrições à luta dos trabalhadores que existiam sob a ditadura. Assim, a “democracia econômica ‘possível’ não passa pelo favorecimento de grupos, mormente de sindicatos, no processo econômico”. Defendia a pluralidade sindical e as mesmas restrições ao direito de greve impostas pelos militares. Essa ampla defesa da liberdade para o capital aparece na condenação dos direitos sociais, que qualifica de “propósitos generosos, mas em geral sem execução” e na consideração de que a justiça social “não pode ser finalidade da ordem econômica”.
Queria também a privatização, apontando a “opressão” resultante da “atuação da infinidade de empresas estatais que controlam setores primordiais da economia”, e investia contra socialistas e comunistas que queriam regulamentar – ou mesmo abolir –, a propriedade privada. Contra a reforma agrária ele defende para o latifúndio a mesma proteção e tratamento requeridos para “todas as demais formas de capital”.
Por outro lado, a atuação do campo patriótico, democrático e popular na Constituinte, com suas propostas e a mobilização do povo para aprová-las, conseguiu registrar na Carta de 1987-1988 muitos direitos políticos e sociais que levaram conservadores e neoliberais a opor-se a ela desde o momento de sua promulgação e, na década de 1990, a promover profundas alterações que desfiguraram a intenção original dos constituintes.
Durante a transição democrática, que durou mais de uma década e teve uma evolução contraditória, emergiram as principais forças políticas e seus programas antagônicos que hoje continuam em disputa. A busca da normalidade democrática que uniu as correntes da grande frente antiditatorial não permitiu que se explicitassem, com clareza, os programas de reordenamento social defendido por cada uma delas. Projetos de desenvolvimento que foram ficando claros à medida que a crise da ditadura se aprofundou.
Para o povo e os trabalhadores, a superação da ditadura implicava na conquista do fortalecimento da democracia, na ampliação da soberania nacional, em mais renda, saúde e educação, em relações de trabalho democratizadas. Exigências difusas que confluíram no enorme prestígio alcançado, desde aqueles anos, pelo Partido dos Trabalhadores, e que se traduziu na iminência da conquista da presidência da República pelo candidato da Frente Brasil Popular, Luis Inácio Lula da Silva, em 1989, com apoio do PCdoB e demais correntes progressistas e democráticas.
Mas foi o programa das classes dominantes que prevaleceu na ultrapassagem daquela encruzilhada histórica: com a eleição de Fernando Collor de Mello para a presidência da República, em 1989, e mantido sob Fernando Henrique Cardoso. Os anos seguintes à redemocratização foram, assim, marcados pelo conflito acirrado entre os dois modelos – o neoliberal e a exigência, que permanece, de um desenvolvimento autônomo e soberano, num quadro de crise ainda mais profunda, resultado do predomínio do projeto neoliberal durante a década de 1990.
José Carlos Ruy é jornalista e editor de Princípios.
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EDIÇÃO 77, FEV/MAR, 2005, PÁGINAS 69, 70, 71, 72, 73, 74