Emergiu da devastação e do saque(1) neoliberal que varreram nosso continente nos últimos 20 anos, aproximadamente – uma formidável e persistente rebelião sócio-política. Trata-se, sim, de um movimento de largo alcance histórico.

Com formas e ritmos diferenciados, as lutas de classes na Venezuela, Brasil, Uruguai, Argentina, Equador, Colômbia, Equador, Bolívia, especialmente, representam hoje o principal fenômeno internacional a amalgamar reforma e revolução – nas multifacéticas configurações dos combates antiimperialistas. Por outras palavras, de maneira discernível, em nossa América conflagram-se batalhas pela conquista da afirmação da soberania das nações, por recomposição dos direitos sociais usurpados e por novas formas de participação política popular. Retorna à ordem do dia a problemática dos caminhos da nova independência latino-americana.

O já prolongado enfrentamento das lutas das massas nos obriga a recordar os processos de impeachment sofridos pelo ex-presidente Collor, no Brasil, e de Andrés Perez, na Venezuela, logo no início dos anos ‘90. A primeira grande “farra” de corrupção dos neoliberais foi, então, interrompida por graves crises políticas, simultaneamente a portentosas mobilizações populares.

Claro está que nada tendo isso a ver com o espontaneísmo de cariz basista nos “movimentos sociais” – bem ao contrário, foram episódios politizados, cujo alvo era o poder, numa postura de rebeldia contra a fraude neoliberal das promessas de uma nova etapa de desenvolvimento. Mentiras a seguir desmoralizadas pela faceta cruel do neoliberalismo: desemprego explosivo, alastramento da pobreza e da miséria, desnacionalização, crescimento do endividamento externo e público, além de um (desigual) processo de desindustrialização de países da região.

O fato é que os processos de liberalização e desregulamentação financeiras, liquidadores da capacidade de realização de políticas econômicas autônomas, instauraram um outro estágio da dependência latino-americana. E, algo intrigante: ao lado disso, como seu par, o mundo passou a vivenciar o belicismo covarde das “guerras preventivas” decretadas pela Casa Branca.
Dessa maneira, nos últimos anos, notadamente após a eleição do governo Lula (2002), a sistematização de estratégias alternativas ao neoliberalismo na região passou a merecer maior atenção de intelectuais progressistas(2), cujos ensaios possuem contornos de teorias. Debatamos, então, a respeito disso, as questões mais relevantes.

Boron: do fantasma do espontaneísmo à idealização do PT

Em seu estudo, o destacado sociólogo argentino, Atílio Boron, afirma que foram constituídos governos na América Latina “vagamente” progressistas ou de centro-esquerda, posteriormente à “derrubada de sucessivos governos” no Peru, Equador, Argentina e Bolívia. Isso, depois do “fracasso do neoliberalismo”, após sua “prolongada hegemonia”.

A respeito da nova situação em Brasil, Venezuela e Argentina, segundo Boron, as mudanças se processam no terreno “brando do discurso e da retórica, e não no mais duro e áspero das políticas econômicas”; considera, entretanto, ser errôneo subestimar o alcance das mudanças.

Em sua análise acerca das determinações do novo quadro regional, quatro questões chamam a atenção:
– ter-se produzido o fracasso econômico do neoliberalismo, gerador de “novos atores sociais”, da emergência de outras forças sociais e políticas (camponeses e indígenas de Brasil, México, Equador e Bolívia), bem como a contestação ao modelo pelas camadas médias;
– ter ocorrido o que denomina de “fracasso dos capitalismos democráticos” na região;
– paralelamente a um processo que alimentou a “crise que se abateu sobre os formatos tradicionais de representação política”, na medida em que apareceu – diz Boron – “a nova morfologia do protesto social”, para ele evidente “sintoma de decadência dos grandes partidos políticos populistas e de esquerda”(3);
– e, ainda, a “globalização das lutas contra o neoliberalismo”, as quais, de acordo com o professor argentino, sofreram rápida difusão “a partir de iniciativas que não sugiram nem de partidos nem de sindicatos”; exemplificada com a “declaração de guerra” do zapatismo mexicano ao neoliberalismo, e o “incansável” trabalho do MST brasileiro que, segundo assevera Boron, é “outra organização não-tradicional”(4).

Mas quais são, digamos, as suas principais teses (sobre e) para a esquerda latino-americana?
Primeiro, de que existe, no caso do governo Lula, “a maldição do possibilismo conservador”, onde – – isto significando “o pensamento único” –, decreta que “nada pode mudar” (p. 5). O que não quer dizer que atualmente haja condições objetivas e subjetivas para a revolução – há impossibilidade, diz ele –, tanto no Brasil como em toda a região latino-americana. Assim, o que, porém, acontece é que há extinção dos “impulsos reformistas” e “capitulação” dos seus governantes.

Em segundo lugar, conforme consideração de Boron, pelo fato de o PT ser “uma das construções políticas mais importantes em nível mundial”, resulta que a experiência brasileira – com um ano e meio de governo, assinala – comprova, “dolorosamente”, que nem uma “liderança respeitável”, tampouco “um grande partido de massas”, garante rumo correto ao governo(5).

Em terceiro, ele frustra completamente seus leitores ao não apontar qualquer estratégia para a esquerda transitar – ao que denomina “pós-neoliberalismo”. Com efeito, suas recomendações são para que a esquerda, atuante na oposição, deva “honrar a proposta gramsciana de construir partidos, movimentos, e organizações genuinamente democráticas e participativos”. Quanto à esquerda participante dos governos recentes, Boron recomenda – expressamente para o caso brasileiro –, que se construa “o poder político suficiente como para ‘governar bem’”, devendo-se compreender que “honrar o mandato popular” significa “pôr fim ao pesadelo neoliberal e avançar na construção de uma sociedade diferente” (p.9).

Convenhamos, isso não é bem estratégia para – como ele propõe –, superar “os desafios da hora atual” (p. 9). Tal argumento Boron repete no artigo “Raices de la resistencia al neoliberalismo” (28/1/2005, www.rebelion.org).

Esquerdismo e anarquismo em James Petras(6)

Marcado por uma análise acentuadamente voluntarista, de “Neoliberalismo y política de clases en América Latina”, de James Petras, pode ter assim resumidos os pressupostos interpretativos:

– A hegemonia imperial é estabelecida sobre a classe dirigente e seu aparato estatal, e não simplesmente pela persuasão “como sustentam muitos presunçosos neogramscianos”, e sim por interesses econômicos e inimigos definidos;
– na “Ibero América”, a “classe político social” [?] crucial que entra para exercer o poder é a “pequena burguesia”, por meio de seu aparato eleitoral de partido, seu papel na burocracia estatal e nas organizações civis, seus estreitos laços com a burocracia sindical, as Ong’s e os “movimentos sociais”;
– de posse de uma “retórica populista de ataque ao neoliberalismo e à globalização”, um “servilismo incondicional aos processos eleitorais”, a pequena burguesia exerce “realmente a hegemonia sobre setores importantes das massas durante período mais ou menos longo”;
– quer dizer, o processo de dominação do imperialismo, na época do neoliberalismo, na América Latina, funciona mais ou menos assim: “A classe imperialista [?] estabelece a hegemonia sobre a classe dirigente; a classe dirigente exerce hegemonia sobre a pequena burguesia e esta mantém influência sobre setores de liderança dos movimentos sociais e populares” (p. 2-4).

Caracterizando a temática do neoliberalismo, segundo Petras, durante a década de 90 os fracassos econômicos dos “regimes neoliberais” criaram a base popular para uma nova onda de “movimentos sociais radicais”, substituindo a “geração anterior de “partidos eleitorais” de centro-esquerda e antigos radicais como “principais opositores ao imperialismo”, enfatiza.

Assim, neste aspecto, de maneira similar a Boron, para Petras, a organização indígena equatoriana CONAIE, o MST no Brasil, os cocaleiros na Bolívia, os piqueteiros na Argentina e os zapatistas no México, vinculados a movimentos urbanos, é que desafiaram as políticas neoliberais, chegando “em alguns casos a derrubar regimes”; através de sua “ação direta extraparlamentar”, obtendo apoio de uma minoria de sindicalistas nas cidades.

Mas segundo o norte-americano, a resposta dos EUA foi a aceleração da militarização regional e a “cooptação de uma nova geração de políticos de centro-esquerda a serviço de seus planos neoliberais”. E se até o momento os objetivos estratégicos da militarização não foram alcançados, para Petras, “paradoxalmente” há êxitos táticos, com Washington apoiando políticos de centro-esquerda e produzindo “várias vitórias estratégicas no Brasil, Argentina, Bolívia, Peru, Equador e – adianta Petras – muito provavelmente no Uruguai no futuro próximo” (p. 11).

Pior ainda, Petras trafega do uso de categorias de fundo anarquista – “ação extraparlamentar direta” – à desonestidade intelectual: Lula proporciona “um regime dos sonhos” aos EUA”, entre outras coisas, “negociando a Alca, dirigindo a ocupação militar de Haiti para apoiar o regime títere imposto pelos EUA”. E afirma sem cerimônias que o governo Lula “congelou o salário abaixo do índice da inflação e ampliou as privatizações para que se inclua a infra-estrutura básica”(7). Enquadra, igualmente, o presidente argentino Nestor Kirchner, como um “conservador moderado”; e diz que o líder cocaleiro e deputado Evo Morales se vendeu, explicitamente, ao presidente boliviano Carlos Mesa, quem “assegurou o apoio a Morales para consolidar seu regime com a promessa de futuras eleições presidenciais”; e que este “facilitou a repressão”, apoiada pelo embaixador dos EUA, que matou e feriu “dezenas de camponeses”, na medida em que teria, propositalmente, descentralizado a oposição em sindicatos locais (p. 12).

No pensamento do norte-americano, há um movimento imperial de nova divisão do mundo, da América Latina, com o “reavivamento do imperialismo europeu, do japonês” e do “recém-emergente imperialismo chinês”; que isto é um “avanço teórico – dele, claro – e empírico para clarificação da natureza das relações interestatais e de classes” (p. 13-14). Por isso, o Brasil “será a primeira colônia conjunta das duas potencias (EUA e UE) imperiais principais”, dirigido por Lula, que ele alça a porta-voz da “Nova Direita” pró-imperialista (p. 16).

Mas qual a estratégia (contra tanta desgraça) vislumbrada por Petras? “São os movimentos nacionais
de resistência popular e o potencial de insurreição dos movimentos das classes populares”, não esquecendo o fato de ele misturar tudo isso a um envolvimento – irresponsável – dos “regimes revolucionários socialistas como Cuba e governos nacionalistas como Venezuela” (idem).
As idéias defendidas nesse documento por James Petras são auto-explicativas. Trata-se, sem dúvida, de um sociólogo movido a uma retórica sectária – algo deliróide –, de um intelectual indiferente às verdades históricas.

Lucidez e conformismo na teoria de Marta Harnecker

As preocupações com a nova situação internacional, o neoliberalismo e o posicionamento da esquerda latino-americana já tinham sido objeto (ver nota 5) de um denso livro, pela conhecida teórica marxista, a chilena Marta Harnecker. “Sobre la estrategia da izquierda em América Latina”; dando-lhe continuidade e, sinteticamente, devemos apreender desse trabalho os seguintes lineamentos:

– chegamos ao fim de ciclo das revoluções antiimperialistas;
– são grandes as dificuldades para uma vitória num período ultraconservador;
– é necessário concentrar os esforços nas lutas antineoliberais, e não em lutas antiimperialistas ou anticapitalistas e privilegiar os espaços locais para acumular forças (g.n.); – há que propugnar por alianças amplas.

Como ela mesma busca explicar sua teoria, esquerda não se reduz àquela que milita em partidos políticos ou organizações políticas de esquerda: “inclui atores e movimentos sociais”. E nos novos tempos de imperialismo e globalização temos de “reconhecer o novo”, pois o único caminho para a transformação social profunda “é evitar cair numa atitude nostálgica para com o passado e – partindo de uma realidade nova que estamos inseridos – decidirmos construir criadoramente o porvir” (p.2).

Ao assegurar possuir sérias discrepâncias conceituais com James Petras – que acha “suspeitos” os que identificam mudanças importantes –, Harnecker considera “irrefutável que algo novo tenha se passado a partir do momento em que, graças à revolução da informática, se revolucionou o sistema mundial de comunicações”. O que é gerador de um outro “fenômeno novo” na dinâmica do capitalismo, vez que numa unidade de tempo real em escala planetária, milhões e milhões de dólares são transacionados em segundos através de circuitos eletrônicos. Além disso, “algo qualitativamente novo” ocorre igualmente no terreno da produção e dos serviços, com a “internacionalização do próprio processo de produção”, ou o deslocamento da produção para vários lugares (p.3).

Harnecker – ao contrário de F. Chesnais (1996), para quem há fabricação ideológica pelas universidades norte-americanas no uso do termo “globalização” – afirma que “nem por isso temos de rechaçar” a denominação, pois ela “dá conta” dos novos fenômenos das últimas décadas, característicos de “uma nova etapa de desenvolvimento do capitalismo” (p. 4)(8). E destaca, com razão, a importância da retaguarda estratégica representada pelo campo socialista, inclusive para a consolidação da revolução cubana, na época da bipolaridade mundial.

Na argumentação da questão crucial (o fim da era das revoluções antiimperialistas), a autora defende que, com o fim da URSS, em 1991, produziu-se uma drástica alteração na correlação mundial de forças, advindo uma era de unipolaridade militar norte-americana, além da econômica, política e cultural. Neste quadro, os movimentos armados ficaram sem retaguarda e a maioria deles se viu obrigada a buscar saídas negociadas para pôr fim aos enfrentamentos militares, que perduravam já por mais de uma década (p.5).

Mas Harnecker insiste em aclarar seu ponto de vista sobre o assunto, e defende a tese de que “estou pensando na possibilidade do triunfo antiimperialista em um de nossos países em forma isolada. A luta – prossegue ela – antiimperialista, que a meu entender hoje não é outra coisa senão a luta contra a globalização neoliberal”, só pode avançar “caso haja confronto como uma resistência global” e no caso concreto da América Latina, com a articulação dos países mais fortes: Brasil, Argentina, Venezuela, Colômbia. E conclui com nitidez:

“O que chegou, então, a seu fim foi a era das revoluções nacionais antiimperialistas; não a das lutas de toda uma região articulada” (idem, g. da autora).

Ainda para a marxista chilena, a verdadeira estratégia política da esquerda latino-americana, para o período atual exige uma ampla frente antineoliberal. Ou a conformação de um “bloco social alternativo”, que agrupe a classe operária urbana e rural, os setores populares mais pobres e marginalizados, a convocação das camadas médias empobrecidas, pequenos e médios empresários e comerciantes, os trabalhadores informais, os produtores rurais médios e a maioria dos profissionais, os desempregados, os cooperativistas, os aposentados, a polícia e os sub-oficias do exército e subordinados. Nesse bloco caberia também a burguesia com contradições com o capital financeiro, porém, não portadora de um projeto próprio de desenvolvimento nacional, entretanto capaz de inserir-se num “projeto nacional popular” a partir de uma política creditícia, de ampliação do mercado interno e por políticas sociais do governo.

Harnecker insiste na capacidade de articulação de países, como questão fundamental, destacando a necessidade da aliança entre os governos de Lula (9) e Chávez; onde o Brasil depende muito mais que a Venezuela do capital financeiro internacional; que o PT é minoria no Congresso, nas prefeituras e em governos-chave; que o presidente venezuelano compreende muito bem o papel da politização das massas, devendo ele ser seguido como exemplo.

Finalmente, a intelectual chilena enfatiza aquilo que constitui uma das suas teorizações mais trabalhadas nos últimos anos: a participação nos governos locais para o êxito da sua estratégia por ele defendida. Assim:

“Os governos locais em mãos da esquerda poderiam ser excelentes espaços para levar adiante processos de construção alternativos, deveriam ser transformados; deveriam ser transformados em vitrine que demonstrem praticamente de um projeto político-social diferente” (p. 8).

Alguns comentários

Nesse campo do debate de idéias, nossas preocupações devem rechaçar as abstrações voluntariosas, o desconhecimento dos descompassos originados da derrota estratégica sofrida pelo socialismo. Derrota esta que aponta trilhas novas para o alcance da sociedade superior.

Devemos, então, equacionar a correlação entre questão nacional e as forças opositoras ao programa neoliberal, a afirmação inarredável da necessidade do instrumento-forma partido revolucionário (comunista), e do enfrentamento dos dilemas do desenvolvimento na época do capitalismo oligopolizado e “financeirizado”.

Por exemplo: sabendo-se que na Argentina existem hoje, em plena atividade, o Partido Comunista da Argentina, grupos trotskistas ultra-sectários de cores variadas, uma vertente socialdemocratizante que se agrupou em torno da Frepaso, e uma verdadeira escola de samba (com alas a gosto do freguês) resultante das subdivisões do justicialismo peronista, por que então se professar um verdadeiro culto aos “piqueteros”, ao MST? Por que também – na rapidez de um raio – vai-se da idealização do PT brasileiro ao criticismo da desilusão?

Ora, sejamos francos: do ponto de vista teórico-político, quem acha mesmo que poderemos construir uma alternativa sustentável ao neoliberalismo (doutrina do capital financeiro do nosso tempo), no sentido de uma transição progressista na perspectiva histórica do socialismo, a partir de uma organização de desempregados (por mais importante que seja, como no caso argentino); ou de um corajoso movimento de massas, cujo móvel central é a luta pela da Reforma Agrária no Brasil; ou de um partido, inegavelmente importante, que foi progressivamente transladando à ideologia de um tipo de social-democracia da periferia capitalista, repleto de tendências, e em cuja história e teoria originárias, pretextando o combate ideológico ao “populismo”, e/ou fazendo a crítica à regulação social estatal, foi penetrado por concepções do velho liberalismo.

Noutras palavras, essas concepções de movimentos e partido poderiam ser depositárias da direção construtora da alternativa de transformação social? A larga experiência do movimento comunista e revolucionário responde taxativamente não. E se não é de direção da construção estratégica não serve para muita coisa, pois caímos novamente no espontaneísmo.

Sobre esse candente assunto, como notou W. Sorrentino (2005), a realidade atual e seu impacto na consciência e identidades sociais e de classe é duramente afetada pela negação do que é entendido como paradigma da revolução social das primeiras experiências socialistas:
“Aqui atua a crise da teoria revolucionária: faz falta uma consciência mais elevada, que capte a realidade em seus movimentos contraditórios”. Eis a questão. Até porque o Partido Comunista “não se contrapõe a movimentos, pelo contrário, se alimenta deles” (Sorrentino, idem, p. 2).

De outra parte, ela – a tradição revolucionária – aponta a necessidade impostergável para a conformação de uma ampla coalizão de forças políticas e sociais, com ativo protagonismo do proletariado e sua representações classistas, que coloque no centro as mediações táticas e estratégicas da questão nacional. Aliás, como disse bem a propósito Renato Rabelo, presidente do PCdoB:

“Trata-se de modificar o balanço de forças em favor da alternativa ao neoliberalismo, em um país ainda submetido a uma herança de dependência estrutural ao grande capital financeiro transnacional” (“Os desafios do socialismo na atualidade”, janeiro de 2005).

Envolto em notória precipitação analítica, o importante pesquisador argentino tem, de uma parte, falsas expectativas sobre a natureza, limites e possibilidades do governo Lula – que, aliás, nada tem de “vagamente” progressista ou de centro-esquerda: a hegemonia política no governo de forças como o PT, o PCdoB, do PSB, a exemplo, não permite, nessa questão, o escapismo; hegemonia esta fundamental e que ajuda a iluminar o significado e a importância da aliança com um PT contraditório no enfrentamento à política econômica liberal, dentro e fora do governo Lula.

De outra parte, Boron critica a esquerda em geral vis-à-vis a uma nebulosa apologia do espontaneísmo(10) dos movimentos populares e seu potencial estratégico. Depois lamenta que um líder inconteste como Lula e um grande partido de massas, o PT, não garantem “rumo correto” ao governo. Claro que não garantem! Esta é também uma forma de espontaneísmo: fingir que aparência é essência.

Questão essa que reaparece de maneira grave no texto citado de Boron, sobre o Que Fazer?, quando escreve reclamando da não existência de um tal partido de novo tipo:
“se bem que existem elementos embrionários “de novo tipo” em alguns partidos políticos e movimentos sociais, incluindo o ‘movimento de movimentos’ que resiste à globalização…” (Boron, idem, 9/2004, p. 29, g. n.).

Sob outro ângulo – e contrariamente ao costumeiro ceticismo de cátedra –, poucos dias atrás, 17 partidos comunistas da Europa e América Latina (incluindo o PC de Cuba), presentes ao V Fórum Social Mundial, declararam, ao enfocar a problemática da ampliação do Mercosul e as perspectivas integradoras da América do Sul:

“A instauração de governos progressistas no Brasil, na Venezuela, e agora a conquista do governo pela Frente Ampla do Uruguai, bem como o desenvolvimento das lutas populares na Argentina, na Bolívia, no Peru, no Equador e Colômbia, abriram um novo caminho e novas perspectivas” (Seminário de Partidos Comunistas da América Latina e Europa, janeiro/2005).

A declaração dos comunistas é um antídoto contra os clichês simplificadores – “capitulação”, disse o professor argentino –, um alerta a quem não enfrenta a questão da historicidade da tática concreta, sobre a qual ensinou-nos brilhantemente Lênin (1982) em seu poderoso Karl Marx. Notável: quem superestima as derrotas eleitorais das forças neoliberais também não percebe que o vice-presidente de Lula, e ministro da Defesa, José Alencar, é o maior empresário têxtil do continente e o maior crítico da política de juros altos. O que bastaria para caracterizar o governo Lula como de centro-esquerda, e expressamente dual, como interpreta corretamente a pesquisadora Marta Harnecker. Harnecker, uma profunda conhecedora da realidade latino-americana, a nosso juízo, interpreta de maneira materialista e dialética: a) o caráter amplamente desfavorável da atual correlação mundial de forças; b) a necessidade de agrupar países para o enfrentamento da política imperialista dos EUA na América Latina; c) sobre a importância histórica para as mudanças na correlação de forças na região, a partir das vitórias e a constituição dos governos de Chávez e de Lula; d) quando propugna por um governo de amplas forças políticas e sociais para levar adiante a luta contra o imperialismo e a poderosa dominância do capital financeiro internacional.

Infelizmente, não podemos concordar com sua enfática opinião, exposta naqueles textos, de que estamos vivenciando o fim de ciclo das revoluções antiimperialistas ou o “fim da era das revoluções nacionais antiimperialistas”. Tampouco com a separação feita por essa estudiosa chilena, afirmando que as luta antineoliberais não são – o mesmo que, ou não integram – as lutas antiimperialistas atuais.

Primeiramente porque, novamente em nosso modo de ver, consideramos essa tese como essencialmente antileninista. Não há qualquer indício de que as assimetrias no sistema de relações internacionais de poder – brutalmente amplificadas com o advento da globalização neoliberal (e especialmente financeira) –, impeçam processos revolucionários nacionais antiimperialistas. Isto seria condenar os elos frágeis de todo o sistema capitalista periférico, heterogêneo e subdesenvolvido, a promover uma futurística unificação, ou construir blocos regionais para, ninguém sabe quando, processar revoluções antiimperialistas em “bloco”. Seria igualmente abastardar o desenvolvimento das consciências nacional, social e política dos povos periféricos, impedindo-os de exercerem suas forças liberadoras internas e de utilizarem todas as formas de lutas para limitar e derrotar a expansão imperialista.

Exemplo original nessa nova quadra histórica e que combina aliança para integração sul-americana e afirmação revolucionária democrática e antiimperialista é o da Venezuela Bolivariana.

Exatamente a esse respeito, Renato Rabelo declarou recentemente:
“(…) os processos transformadores, revolucionários, dependem da deflagração de profundas mudanças e de grandes acontecimentos em escala mundial, mas o curso revolucionário se dará nos marcos das realidades específicas, peculiares, de cada país” (Rabelo, idem).

Por outro lado, precisamente por ser o processo de “financeirização” da riqueza capitalista que comanda a dinâmica e o ritmo da acumulação, da determinação do investimento e da distribuição de renda, subordinando todas as outras formas de capital à oligarquia financeira, nos parece impossível dissociar a ação imperialista global do programa doutrinário neoliberal.

Sérgio Barroso é médico, mestre em economia pela Unicamp e membro do Comitê Central do PCdoB.

Notas
(1) O Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional revelaram recentemente que, em pouco mais de duas décadas, os países da América Latina transferiram aos centros capitalistas de poder, nada menos que US$ 2, 5 trilhões para pagamento da dívida externa, em fugas de capital e pelo diferencial de preço de venda de matérias primas (Bolpress/Rebelión, 21/12/2004).
(2) Referimos-nos aos estudos específicos de autores não brasileiros: "La izquierda latinoamericana a comiezos dei siglo XXI: nuevas realidades y urgentes desfíos" (11/8/2004), de Atilo Boron; "Neoliberalismo y política de clases en América Latina" (9/2004), de James Petras; e "Sobre Ia estratégia de Ia izquierda em América Latina" (6/10/2004), de Marta Harnecker. Os artigos/ensaios foram publicados em www.rebelion.org, e a numeração das páginas citadas se inicia pela página de rosto.
(3) No mínimo intrigante a enorme insistência de Boron em suas pesadas críticas contra a esquerda, indistintamente: ao lado da apologia das "novas formas de luta e movimentos de protesto social", ele alinha a "baixa relevância das tradicionais variáveis classistas", a "inadequação dos partidos políticos e sindicatos", com "esclerose de suas estruturas e práticas organizativas", e o "anacronismo de seus discursos e estratégias de comunicação" (p. 4) (4) Sabe-se há anos que o zapatismo do "subcomandante Marcos" tem sido duramente criticado e desacreditado exatamente por defender a recusa da conquista do poder político: é assumidamente "antipoder"! Sabe-se também que o combativo MST tem entre seus principais quadros antigos militantes e dirigentes do PT – o que deve distingui-lo, a grande distância, das organizações de massas "economicistas".
(5) Cabe aqui, perfeitamente, a advertência feita pelo escritor português Miguel Urbano, quando, num Prefácio ao importante livro de M. Harnecker – Tornar possível o impossível. A esquerda no limiar do século XXI (2000) – critica a autora por defender o direito de tendência nos partidos de esquerda em geral, bem como "a visão idealista do Partido dos Trabalhadores" (p.p. 21-22) de Harnecker – ardorosa entusiasta do "orçamento participativo" em Porto Alegre. O professor Boron, ao omitir o predomínio ideológico social-democrata no PT, idealizara e alimentara falsas expectativas.
(6) Para Petras: "Muitos autores de esquerda repetem continuamente os chavões sobre 'uma crise capitalista mundial' a despeito de sólidos dados indicando um desempenho vigoroso das principais multinacionais norte-americanas (e européias), bem como expressivas taxas de crescimento na economia dos Estados Unidos" (Petras, in: Hegemonia dos Estados Unidos no novo milênio, Vozes, 2000, p.p. 10-11). A pretensiosa formulação é uma das maiores bobagens ditas nos últimos 30 anos sobre a dinâmica do capitalismo: em 2001 a recessão nos EUA empurrou a UE e o Japão a uma estagnação sincrônica, configurando uma crise cíclica no centro do capitalismo.
(7) Tudo isso afirmado por James Petras, sabemos, é solene mentira. Mentiras aos borbotões que se repetem em um artigo seu posterior e provocativo, intitulado de "O segundo ano de Lula: aprofundamento e extensão do neoliberalismo" (23/72004, www.rebeiion.org).
(8) Se prestasse um pouco mais de atenção às palavras de Henry Kissinger, Harnecker seria, em primeiro lugar, mais cuidadosa: "O desafio básico é que a chamada globalização é realmente um outro nome para o papel dominante dos Estados Unidos", ironizou ele em palestra no Trinity College, Dublim, 12/Out/99 (in: www.resistir.info).
(9) Marta Harnecker é explícita: "o futuro do governo de Lula – governo que está em disputa entre as forças que realmente querem uma transformação dessa sociedade e aquelas que crêem que não há outra alternativa que se subordinar às exigências do capital financeiro internacional – dependerá em grande medida da capacidade que tenha o movimento popular de se organizar… [para] inclinar a balança para o lado das forças progressistas" (p. 7).
(10) Num caminho perigoso, no texto "Estúdio introductorio. Actualidad del Qué hacer?" (9/2004, www.rebelion.org), que visa à defesa de aspectos dessa obra de Lênin, insiste no discurso Boron: "os arraigados prejuízos que prevalecem na esquerda latino-americana no momento atual"; "só dizer que há uma crise da 'forma partido' já é correto. O mesmo poderia dizer-se com relação a 'forma sindicato'". E jogando no mesmo saco estalinismo, soviéticos e Lênin, acentua : "as deformações cristalizadas no 'marxismo-leninsmo'"; onde"Na realidade, o 'marxismo-leninismo' é um produto antimarxista e antileninista por natureza"; portanto "Não se trata de voltar a um Lênin canonizado porque este já não existe. Saltou pelos ares junto à derrubada do estado que o havia erigido em um ícone". Neste texto, Boron ainda elogia entusiasticamente o PCI, na época em que a organização italiana exercia "formidável hegemonia na sociedade", ou seja, quando o PCI era sabidamente revisionista (eurocomunista). Claro que o professor Boron nos intriga ao juntar-se a um subrreptício antipartidismo. Mas, justamente, elogia Cuba socialista, sabidamente dirigida, por um partido comunista "ortodoxo", que advoga o estado da ditadura do proletariado!

Referências bibliográficas
CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo, Xamã, 1996.
HARNECKER, Marta. Tornar possível o impossível. A esquerda no limiar do século XXI. São Paulo, Paz e Terra, 2000.
LÊNIN, Vladimir I. Karl Marx. São Paulo, Alfa-Ômega, O. E., V. I, 1982, 2a edição.
SORRENTINO, Walter. Debate sobre o Currículo do tema Partido. São Paulo, janeiro de 2005, mimeo.

EDIÇÃO 77, FEV/MAR, 2005, PÁGINAS 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19