Na opinião geral, Cervantes é tão exclusivamente o autor do Dom Quixote que autor e obra quase se confundem. Cervantes só parece ter vivido a sua desgraçada vida de soldado, cativo dos mouros e literato pobre para acumular as experiências das quais aquela grande obra é o resumo, o julgamento e a transfiguração. O resto da sua atividade literária parece apenas preparação da obra principal. Ainda no Don Quijote, certos episódios lembram a literatura pastoril que Cervantes enriqueceu com a Galatea, sua obra de estréia. O humorismo algo primitivo, pré-lopiano, dos entremeses, prepara o humorismo superior do romance. Quanto às peças sérias e ao último romance, Persiles y Segismunda, a posteridade condenou-os a um quase esquecimento, porque não se harmonizam bem com a “tese” humorística do Don Quijote.

Enfim, à coleção das Novelas Exemplares ninguém negou jamais o título de uma das maiores obras narrativas da literatura universal. Mas esses contos são desiguais; alguns ao gosto italiano da época, outros tão românticos que só mesmo os românticos alemães e ingleses podiam gostar deles; novelas da mesma espécie encontram-se insertas no Don Quijote (El curioso impertinente, Las bodas de Camacho), e as duas obras primas da novelística cervantina, a picaresca Novela de Ronconete y Cortadillo e a fisolofia melancólica do Colóquio de los perros Cipión y Berganza, preparam imediatamente o realismo e o humorismo de Don Quijote, síntese da arte e do pensamento de Cervantes.

A visão da obra na memória da humanidade restringe-se até, principalmente, à primeira parte do romance: as aventuras do fidalgo Alonso Quijano na taverna que tomou por castelo, com os moinhos de vento que combateu como se fossem gigantes, com a bacia do barbeiro que lhe pareceu elmo de Mambrino; as conversas do improvisado cavaleiro errante com Sancho Pança, que mobiliza todo o realismo seco dos provérbios castelhanos para convencer o seu dono da loucura daqueles erros, acompanhando-o, no entanto, na esperança de conquistas imaginárias. O contraste é de um humorismo irresistível: e o Don Quijote conservará para sempre as suas duas classes de leitores: as crianças, que ainda não conhecem a vida, e, os outros, duramente experimentados por ela. Mas, enquanto as simpatias do público se inclinavam para o lado do cavaleiro perfeito e comovedoramente ridículo, a literatura universal ouviu de preferência a lição de Sancho Pança e do seu realismo razoável. O “método” cervantino do contraste entre ideais extravagantes e obsoletos, por um lado, e, doutro lado, o bom senso comum da gente, sugeriu inúmeras imitações e versões, das quais o Hudibras, de Samuel Butler, é o primeiro espécime, e o Tom Jones, de Fielding, o primeiro resultado definitivo. Disse bem o crítico americano Trilling que o contraste entre as aparências e a realidade é a própria substância do gênero “romance”.

Nesse sentido, é o Don Quijote “o romance dos romances”. Dele deriva o romance realista, em que as duras realidades do ambiente se opõem às idéias e atos subjetivos do homem; quer dizer, o romance moderno, e logo o maior de todos os romances. Porque em uma ambigüidade intencional se esconde o sentido universal da humanidade inteira, representada pelas duas figuras de Don Quijote e Sancho Pança.

Mais um episódio da primeira parte do Don Quijote se gravou na memória universal: a cena em que o vigário e o barbeiro julgam os romances de cavalaria, responsáveis pela loucura anacrônica de Dom Quixote. Esse episódio constitui a base da interpretação realística da obra, correspondente à repercussão do Don Quijote na literatura universal: a obra foi compreendida como sátira contra o entusiasmo apaixonado dos espanhóis pelos romances de cavalaria. Na elaboração, estendeu-se a sátira a todas as formas de “idealismo” extravagante que perde de vista a realidade; e a paródia transformou-se em panorama da vida humana, na qual os ideais sempre são derrotados pela famosa “teimosia dos fatos”. Essa interpretação antiga não explica bem a simpatia do autor pelo seu herói louco, simpatia que se comunica a todos os leitores, e baseada no fato de que não somente os ideais falsos são derrotados na vida e no Don Quijote, mas também os ideais verdadeiros; o cavaleiro à antiga, que defende a fé, a justiça e os indefesos, tem de desaparecer num mundo de fé, sem justiça e muito utilitário. Heine foi – parece – o primeiro a compreender a tragédia comovente do idealismo desiludido por trás do sorriso humorístico. E logo resultou uma conclusão importante: na literatura universal é o Don Quijote a primeira grandiosa obra de arte em prosa porque o humorismo é o sentimento da poesia em face da prova da vida. Eis a interpretação romântica do Don Quijote; e essa dialética entre poesia e prosa já garante a Cervantes o sentido universal e à sua obra o valor permanente. Depois, tornou-se possível salientar, alternadamente, o elemento poético ou o elemento prosaico; e originam-se daí duas séries de interpretações. O primeiro caminho é o de Turgeniev, explicando a derrota de Dom Quixote como sendo a da fé num mundo sem fé; a essa interpretação Unamuno deu a feição do paradoxo, compreendendo a obra de Cervantes como protesto da Vida contra a Razão, celebrando Dom Quixote como herói da fé idealista contra o racionalismo utilitário. Por isso, Unamuno emprestou a devida importância à segunda parte do romance, na qual o tom é mais solene, quase religioso, e o “camiño de muerte” do idealista se parece com a paixão de um mártir de fé. O ponto fraco da interpretação unamunesca é a identificação do herói com o seu autor; já se criticou a transformação do cervantismo em quixotismo. A outra possibilidade de interpretação, a realista, foi indicada por Menéndez y Pelayo: Cervantes teria restabelecido os direitos da realidade; e o seu caso literário teria sido análogo ao do romance picaresco. E, chamando a atenção para o excelente conto picaresco Rinconete y Cortadillo, o grande crítico chegou a lamentar que Cervantes não houvesse escrito um novo Lazarillo de Tormes ou um Guzmán de Alfarache.

Essa observação foi o ponto de partida da nova interpretação de Américo Castro. O verdadeiro pícaro de Cervantes aparece na comédia El rufián dichoso: pícaro que se torna santo, mas sem a feição ascética do Guzmán. Tampouco é possível ignorar a imparcialidade da distribuição de sombras e luzes em Rinconete y Cortadillo, enquanto Alemán é o pregador do pessimismo barroco. O otimismo, embora melancólico, de Cervantes provém da superposição do idealismo platônico, que ele deveu à sua formação renascentista, sobre o realismo picaresco, resultado da sua origem plebéia. Daí a grandiosa imparcialidade de Cervantes, a sua capacidade de fazer jus igualmente a Dom Quixote e a Sancho Pança. É possível acompanhar a aquisição gradual dessa imparcialidade nas Novelas Exemplares. Ejempla quer dizer “moral”, “que dá lições morais”; mas também que dizer: “são exemplos do que acontece”, “a vida é assim”. E o “assim” de Cervantes nem sempre foi o mesmo. Nos contos de tipo italiano, renascentistas (La Señora Cornelia, La española inglesa, El amante liberal, La fuerza de la sangre), Cervantes é tão idealista, no sentido do neoplatonismo de Leone Ebreo, como na sua obra de estréia, o romance pastoril Galatea. O realismo já intervém em La gitanilla, La ilustre fregona, El celoso extremeño; e leva ao naturalismo picaresco de Rinconete y Cortadillo e do Colóquio de los perros. A primeira síntese encontra-se em El licenciado Vidriera, retrato do idealismo que sabe que a sua fé é mera ilusão em face da realidade. No Don Quijote, essa convicção chegará à profundidade do idealismo filosófico, quase cartesiano ou kantiano: “Eso que a ti te parece bacía de barbero, me parece a mi el yelmo de Mambrino, y a otro le parecerá otra cosa”. Na verdade, trata-se de um perspectivismo erasmiano ou pré-cartesiano. Eis a base sobre a qual Cervantes foi capaz de transformar o seu protesto, de humanista plebeu contra o Barroco aristocrático, em panorama imparcial, humorístico, da vida. Cervantes é, segundo a interpretação de Américo Castro, um homem da época de Carlos V, o último adepto de Erasmo.

Américo Castro e seus sucessores provaram que López de Hoyos, o mestre de Cervantes, foi erasmiano e que Cervantes deve a ele seu perspectivismo “liberal” e céptico. O patriotismo romântico da tragédia Numancia é o ponto de partida da viagem pela vida que o levará à desilusão no Don Quijote: um conto humorístico à maneira das “facezie” da Renascença italiana tomou o vulto de um símbolo da decadência espanhola sob os Filipes; derrotada, a Espanha tem de reconhecer que moinhos de vento não são castelos; e que os castelos do inimigo não são moinhos de vento. Cervantes foi um homem entre os séculos, o último dos erasmianos e o precursor do movimento regenerador de 1898.

Otto Maria Carpeaux, escritor (1900-1978). Este texto é trecho do livro História da Literatura Ocidental, v.3, Rio de Janeiro: Alhambra, 1980.

EDIÇÃO 78, ABR/MAI, 2005, PÁGINAS 31, 32, 33