No último dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, corri à banca de jornais e comprei todas as revistas da semana e jornais diversos para ver o que se falava sobre a situação da mulher nos dias de hoje e que comemorações lhe eram atribuídas, com foco, é claro, no Brasil. Fiquei decepcionada.

Poucas referências e reportagens, sobretudo, se se leva em conta que se discutia na ONU mais uma década de avaliação de políticas para as mulheres. Como parece distante o ano de 1975, quando foi decretada a primeira Década da Mulher pela ONU! – fato histórico que coincidiu com o processo de redemocratização no Brasil, trazendo a público e com força o debate sobre a questão da discriminação da mulher na sociedade e a proliferação de grupos de estudos sobre a questão, desaguando em jornadas de lutas de norte a sul do Brasil, levando a conquistas importantes, como a dos registros importantes na Constituição de 1988, e à criação de órgãos de governo para combater a discriminação da mulher na sociedade.

Será que as mulheres já chegaram aonde queriam? Será que a discriminação desapareceu? Onde se situa a questão da mulher no mundo neoliberal? Que tipo de mulher interessa a essa nova ideologia do capital? E onde se situa a mulher na resistência que cresce no mundo e em especial nos países latino-americanos à política neoliberal? Qual o impacto que terá para as mulheres a onda obscurantista de Bush? Sabe-se que sua emenda conservadora foi derrota pelas mulheres de todo o mundo na ONU. Esse já foi um bom sinal de que as mulheres estão atentas para impedir o retrocesso conservador que parte do imperialismo estadunidense.

Longe de mim querer responder nestas poucas páginas a todas essas indagações. Mas acho que vivemos um momento crucial da história onde o pensamento único neoliberal se alastrou fazendo estragos, inclusive para as mulheres. E no momento em que a resistência a esse pensamento cresce, precisamos localizar o foco da resistência das mulheres hoje. Que as mulheres avançaram não há dúvida, mas que conflitos, que impasses elas enfrentam hoje para avançar rumo a um futuro melhor?

A sociedade encara com naturalidade a presença das mulheres no parlamento, nas direções de sindicato, nos partidos políticos (O PCdoB hoje tem 4 mulheres presidentes estaduais, em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Pará), nos ministérios (o governo de Lula tem 4 mulheres ministras), mas parece ter esquecido que esse espaço foi o coroamento de muita luta organizada e historicamente construída e fruto de muitos sacrifícios pessoais, advindos de uma história secular de opressão da mulher na sociedade.

Essa naturalidade se esvai quando vemos que ao lado das mulheres que chegaram ao podium, apesar dos obstáculos que a sociedade não vê, crescem os índices de mortalidade materna, de violência doméstica, de precarização das condições de trabalho e manifestações de distúrbios como a síndrome de pânico, depressão, doenças cárdio-vasculares etc.

Volto a dizer: nos poucos artigos que garimpei no mês de março, encontrei convergência nessas minhas preocupações. Um deles foi da Isto É, “Mulheres com o mundo nas costas” ou melhor “Elas não agüentam mais tanta responsabilidade”. Esta matéria chega a dar dicas para reduzir o estresse e para afastar a obrigação de se ser super em tudo. Analisa que as vitórias obtidas pelas mulheres nos últimos 40 anos são fabulosas. O mercado de trabalho já é partilhado quase de igual para igual com os homens e elas ocupam postos-chave de grandes empreendimentos. Também ganharam respeito, cidadania, voz. Porém, todo esse progresso, afirma a revista, veio acompanhado de um ônus considerável: elas ainda recebem 30% a menos do que eles, segundo o IBGE, e convivem com uma cobrança maior por resultados. Além disso, hoje são tão provedoras quanto os homens, mas assumem a maior responsabilidade pela criação dos filhos. E é por conta dessa segunda jornada que as mulheres vêm apresentando mais estresse do que os homens.

A pesquisadora norte-americana Judith Warner afirma que a maioria das mulheres que pesquisou sente “um desconforto existencial” causado pela obsessão em relação à maternidade. Nunca estão satisfeitas com a própria dedicação. O eterno dilema trabalho x maternidade permanece. Como diz Naomi Wolf em seu livro O Mito da Beleza: “Milhares de mulheres estão neste exato momento suspirando, na saudade da carreira deixada de lado ou no sonho de filhos que nunca terão”.

Há outro artigo do caderno de Idéias do Jornal do Brasil: “Que fim levaram os homens?”. Nele, a socióloga Rose Marie Muraro afirma que a mulher brasileira deste início do século 21 representa 42% da força de trabalho. É responsável por 2/3 das atividades universitárias, 24% do mercado executivo e 13% do Congresso. Um avanço incontestável se comparado às décadas passadas. Mas, afirma Rose, ao lado da inserção crescente da mulher no mercado de trabalho, o impasse da dupla jornada ainda aparece como um problema crônico.

A vida privada ficou à margem dos avanços no espaço público, a sociedade continua organizada como se nada tivesse acontecido, como se a mulher estivesse apenas em casa, conclui Rosiska Darcy de Oliveira. Mas, apesar desse impasse, a mulher está longe de pensar em abrir-mão das conquistas alcançadas. De acordo com pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, 39 % delas relacionaram a condição feminina à independência econômica e 33% à independência social.
Um artigo d’O Estado de S. Paulo também vai nessa linha. Sob o título “Mulher honesta” – e outros absurdos – Simone Iwasso começa dizendo: “A mulher brasileira tem carro projetado para atender às suas necessidades, mas não dispõe de uma lei específica para punir o homem que a espanca.

Aproveita a independência financeira e a liberdade no exercício de sua sexualidade e, contudo, é julgada moralmente quando sofre abuso sexual. Pode se beneficiar de uma série de inovações médicas, porém, teme mais a violência doméstica do que o câncer de mama, conforme pesquisa do IBOPE”.

No ano em que deixou de ser “honesta” no Código Penal, está com seu corpo e os direitos relativos a ele, em evidência, no centro do debate atual: a revisão da criminalização do aborto, a ampliação do acesso ao planejamento familiar aos métodos contraceptivos, a briga por uma lei própria para julgar seus agressores e a titularidade em programas sociais e moradias populares. Há muito ainda o que conquistar. Como afirma a socióloga Wânia Pasinato, do Núcleo de Estudos da Violência contra a Mulher da USP, “Olhando a imagem que é vendida da mulher, parece que os direitos estão consolidados e reconhecidos por todos, quando, por trás dessa imagem de vitória, beleza e sucesso, há violência, injustiça e muito preconceito, inclusive nas esferas legais”.

E o neoliberalismo, onde fica nessa história?

Vimos que a mulher avançou sua presença no espaço público, mas que a questão da dupla jornada permanece como um problema crônico que tem afetado a vida da mulher, aumentado seus impasses, estresse e sobrecargas. Para entendermos como o neoliberalismo aprofundou essa sobrecarga e traz uma ameaça de retrocesso na condição feminina é necessário abordarmos em que consiste a vitória ideológico-cultural do neoliberalismo no mundo. Segundo Atílio Boron, essa vitória assenta-se na derrota das forças populares e das tendências mais profundas da reestruturação capitalista e se manifesta em quatro dimensões:

a) A avassaladora tendência à mercantilização de prerrogativas conquistadas pelas classes populares ao longo de mais um século de luta, convertido agora em “bens” ou “serviços” adquiríveis no mercado. A saúde, a educação e a seguridade social, por exemplo, deixaram de ser componentes inalienáveis dos direitos de cidadão e se transformaram em simples mercadoriais intercambiadas entre “fornecedores” e compradores à margem de toda definição política.

b) O deslocamento do equilíbrio entre mercado e Estado, um fenômeno objetivo que foi reforçado por uma ofensiva no terreno ideológico que “satanizou” o Estado ao passo que as virtudes dos mercados eram exaltadas.

c) A criação de um “senso comum” neoliberal, de uma nova sensibilidade e de uma nova mentalidade que penetraram profundamente no chão das crenças populares.

d) Importante vitória no terreno da cultura e da ideologia, ao convencer amplíssimos setores das sociedades capitalistas de que não existe outra alternativa. Essa operação ideológico-cultural é o coroamento da ofensiva econômica e política do grande capital: não apenas se diz que a escravidão do trabalho assalariado não é assim, mas que é a “ordem natural” das coisas, como é rejeitado como ilusórias fantasias todo discurso que se atreva a dizer que a sociedade se organiza de outra maneira.

A evolução da realidade desde o início dessa política vai evidenciando que o projeto ideológico do neoliberalismo é essencialmente conservador. Procura defender e aumentar os privilégios de uma ínfima minoria em nível mundial. Ganhou espaço em meio à crise do capitalismo, do esgotamento do modelo do estado benfeitor e do fracasso de experiências socialistas. É conservador por querer impor um pensamento único ao mundo e decretar o fim da história. Essa visão é conservadora na cultura e nos costumes para perpetuar o status quo. Esse conservadorismo se expressa no tratamento que dá à questão de gênero, revestindo de novas roupagens o espaço doméstico para a mulher.

A idéia do Estado mínimo levou à redução dos equipamentos sociais como creches e à precarização das políticas públicas na educação, saúde, habitação e saneamento. Essa redução levou a um aumento da sobrecarga doméstica para as mulheres. Além disso, a exclusão social, efeito da política neoliberal, trouxe um aumento do desemprego e a flexibilização no mundo do trabalho, com maior impacto para as mulheres. Estas passaram a enfrentar a maior precarização do trabalho formal: têm menor índice de registro em carteira, o menor índice de contribuição para a previdência, o menor índice de sindicalização. Cinqüenta e um por cento das brasileiras que integram o PEA não possuem renda mensal regular.

A precarização das condições de vida favoreceu a desagregação do núcleo familiar, sobrecarregando ainda mais as mulheres que, em grande parte, passaram a ser chefe de família (25% das famílias são chefiadas por mulheres).

Se a luta pela sobrevivência empurra a mulher para o mercado de trabalho e se nas condições de crise do capitalismo e de aplicação de seu ideário neoliberal reduz a responsabilidade pública dos equipamentos sociais, essa realidade afeta a subjetividade feminina, produto de uma história de opressão, educada para os afazeres domésticos e carregada de culpa pela impossibilidade de conciliar sua realização profissional e a perfeição dos papéis seculares que lhe foram atribuídos como rainha do lar. Como afirma Rosiska Darcy de Oliveira: “A família sempre foi o lugar não apenas do sustento material, ninho, abrigo, mas, sobretudo, o lugar primeiro da educação, ali onde os seres humanos são iniciados à sua própria humanidade”.

Assumida essencialmente pelas mulheres nas sociedades tradicionais, no momento em que essas sociedades entram em decadência e que as mulheres investem tempo integral no mercado de trabalho, a atenção de pessoa a pessoa se vê esvaziada. É nesse momento que intervém o pensamento conservador, sempre pronto a acusar as mulheres de todos os males do mundo, das taras sociais, da perdição dos jovens ao abandono dos velhos.

O pensamento conservador sempre dividiu o mundo em esferas estanques, em que as mulheres cuidavam das pessoas e os homens de ganhar dinheiro. A ideologia neoliberal, de cunho conservador, ressuscita o velho discurso de que às mulheres cabe a responsabilidade das tarefas domésticas. E, como não há hoje esse caminho de volta, fica a punição da mulher: multiplicar-se em muitas, ao longo do mesmo dia – acompanhada permanentemente pelo sentimento de culpa ou incompetência em tudo o que faz. A partir de Vigotski, a Psicologia sócio-histórica propõe estudar os fenômenos psicológicos como resultado de um processo de constituição social do indivíduo, em que o plano intersubjetivo, das relações, é convertido, no processo de desenvolvimento, em um plano intra-subjetivo. A partir dessa visão de subjetividade é que podemos procurar entender as mudanças ocorridas no cotidiano das mulheres com o advento do neoliberalismo e seu impacto na subjetividade feminina.

Essa compreensão é fundamental porque ela afeta a educação informal, o futuro dos jovens e a realidade dos idosos. O neoliberalismo coloca um novo impasse para a sociedade: se o Estado abre-mão de seu papel nas políticas públicas, não pode culpabilizar ou responsabilizar a mulher para assumir essa responsabilidade. Uma nova articulação entre a vida privada e o mundo do trabalho torna-se necessária para que se possa preservar o direito de ambos os sexos de usufruir ambos os mundos, sem sacrifícios individuais. A revalorização da vida privada não deve passar pelas mulheres, mas é um desafio do conjunto da sociedade. O avanço das mulheres de participar da vida pública não basta.

Torna-se necessária a desconstrução/reconstrução para mulheres e homens, dos valores e as práticas predominantes. Como afirma Clara Araújo, seria necessário um novo enfoque sobre a cultura de gênero, que repensasse como homens e mulheres poderiam compartilhar do mesmo modo e, igualmente, todas as modalidades existentes de trabalho produtivo e reprodutivo. Nesse caso, haveria de ser considerada, de modo mais profundo, a existência de uma “subjetividade coletiva” e de uma dimensão ideológica que não respondem de forma tão rápida quanto as mudanças na superestrutura jurídico/ política.

Além das ações reguladoras, são fundamentais as ações educativas e transformadoras. Essa realidade será alcançada com mudanças radicais e de fôlego. O grande marxista Lênin já afirmava: “A tarefa principal do movimento operário feminino consiste na luta pela igualdade econômica e social da mulher e não somente pela igualdade formal. A tarefa principal é incorporar a mulher ao trabalho social produtivo, arrancá-la da “escravidão do lar”, liberá-la da subordinação embrutecedora e humilhante ao eterno ambiente da cozinha e do quarto das crianças. É uma luta prolongada que requer uma radical transformação da técnica social e dos usos e costumes”.

Desafios para o avanço

O contraditório se impôs na vida da mulher. Há quem diga que elas foram com muita sede ao pote da liberdade e das novas responsabilidades sociais e que muitas delas estariam percorrendo o caminho de volta ao lar. Mas, na verdade, a mulher atravessou uma fronteira e o caminho percorrido historicamente não tem volta.

O retorno ao lar à moda antiga, não é mais possível. Não dá para ignorarmos, no entanto, que o avanço da mulher em seu papel social acarretou contradições, conflitos, condições de vida adversas, com grandes sacrifícios pessoais, que em determinados momentos implicam recuo em sua ascensão profissional, social e política. São as amarras de uma libertação inconclusa, próprias de uma sociedade de exploração da força de trabalho, marcada por uma ideologia dominante de opressão, que reforça o papel de submissão e de objeto da mulher.

O papel de provedora do lar é reforçado num mundo de poucos empregos e de quase nenhum suporte social do Estado. Qualquer tentativa de negar o papel social da mulher hoje só pode vir de uma ideologia conservadora alienante para acomodar os excluídos e impedir sua conscientização da necessidade da luta política por mudança. Como em toda a história de opressão da mulher, ela é alvo preferido da ideologia alienante para impedir os avanços sociais. Por isso, mais do que nunca devemos estar atentos em reforçar as conquistas das mulheres e sua luta nas diversas esferas de atuação, contestando as visões equivocadas e o rebaixamento de seu papel, seja na dimensão individual ou na de sujeito da história, na resistência ao atraso e em prol do avanço social.

No momento em que a resistência ao neoliberalismo cresce, sobretudo na América Latina, onde governos democráticos como o de Lula se propõem implementar políticas públicas para as mulheres, descortinam-se novos espaços de conquistas e avanços. É bom lembrar que o movimento de mulheres ganhou visibilidade política e conquistou direitos nos momentos de ascenso das lutas democráticas e populares, como no período Constituinte. É hora de reforçarmos a luta política, acentuarmos o papel de cidadã da mulher, comprometida com os destinos políticos de Brasil e de seu povo, para derrotarmos o neoliberalismo e abrirmos caminho para uma nova era de avanços.

Ana Rocha é psicóloga, jornalista, presidente estadual do PCdoB-RJ e da Comissão Política Nacional do PCdoB.

Notas
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VIGOTSKY, L.S. A formação social da mente. São Paulo, Martins Fontes, 1984.

EDIÇÃO 78, ABR/MAI, 2005, PÁGINAS 68, 69, 70, 71, 72, 73