O desafio de governar bem
O Município é a unidade básica do Sistema Federativo brasileiro. Segundo a Constituição Federal de 1988, em seu Título III, Capítulo I, Artigo 18, que trata Da Organização do Estado, “A organização político-administrativa da Republica Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos nos termos dessa Constituição”. Essa disposição constitucional coloca o município em grande evidência na estrutura de poder da República e realça o significado da conquista de governos municipais pelo Partido Comunista do Brasil no último pleito eleitoral.
O prefeito e vice-prefeito de uma cidade exercem a mais importante fatia do poder político municipal. Como governantes de municípios os comunistas exercem na esfera executiva um conjunto de tarefas que dizem respeito à gestão municipal, tanto no que se refere à administração do município stritu sensu, como no sentido de orientar a vida do município e da administração no rumo do desenvolvimento econômico e do combate às desigualdades sociais existentes.
Porém, convém ter sempre presente que o fato de uma pessoa ter sido eleita prefeito ou vice significa ter conquistado uma parte do poder, não todo o poder. O exercício do governo municipal, além do Executivo (prefeito), conta com uma série de outros órgãos de poder, como Câmara de Vereadores (Poder Legislativo); Tribunal de Contas Municipal, onde houver; Ministério Público; Controladoria Geral da União (que fiscaliza a aplicação de verbas federais no município); etc. A Constituição Federal (nos art. 29 a 31) e a Lei Orgânica do Município normatizam os poderes e deveres dos municípios e de seus órgãos e agentes de poder.
Aspecto importante que deve balizar a atual ação na gestão municipal é que se chega ao governo por meio de eleições estabelecidas de acordo com as regras do Estado burguês que nos dirige e do qual somos parte – e isso por si só é um significativo marco balizador da atuação e desempenho dos comunistas.
Significado dessas vitórias
O fato de o PCdoB ter eleito 10 prefeitos e 29 vice-prefeitos foi um importante feito nas atuais condições em que se trava a luta e disputa política em nosso país.
Convém destacar que embora não tenha eleito prefeito de capital, o PCdoB reelegeu a prefeita de Olinda, o que tem uma grande importância política nacional – seja pela cidade (uma das mais destacadas e conhecidas do país) seja pelo fato de a reeleição ter significado que, no julgamento do povo de Olinda, os comunistas cumpriram de forma vitoriosa o mandato a eles confiado. Além disso, o PCdoB conquistou prefeituras de cidades de porte médio, como Barra do Garças (MT) e Camaragibe (PE), e elegeu vice-prefeitos de importantes capitais: Recife (PE), Aracaju (SE), Porto Velho (RO), Macapá (AP), Rio Branco (AC) e Boa Vista (RR).
O fato de essas conquistas terem se dado sob a legenda do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) constitui uma novidade na história recente de nosso país. Há menos de três décadas, quando vivíamos sob o regime ditatorial, era impensável tal situação, pois os comunistas atuavam de forma clandestina na luta pelas liberdades democráticas, pela soberania nacional e por justiça social. Do ponto de vista estritamente partidário, significa que vivemos em um novo momento político em que as regras da disputa política estão estabelecidas de acordo com a democracia liberal. E do ponto de vista tático, as disputas por postos executivos em prefeituras e governos estaduais passam a ter significativa importância no processo de acumulação de força política.
Estar à frente de uma prefeitura ou exercer as funções de vice-prefeito é uma importantíssima tarefa que os eleitos estão desafiados a cumprir da melhor forma possível.
Vivemos em um momento político no país em que é necessário agrupar o maior número de forças progressistas, democráticas e populares, na tarefa hercúlea de superar os obstáculos à retomada do desenvolvimento nacional, da afirmação de nossa soberania e ao combate às desigualdades sociais. Não tenhamos dúvida, os municípios, por menores que sejam, são a unidade de base da nação e o exercício do poder local, sintonizado com a solução dos problemas gerais do país, em muito contribuirá para uma administração exitosa. Como exemplo citamos os constrangimentos a que estão submetidas as finanças municipais, em virtude da Lei de Responsabilidade Fiscal e de exigências indevidas de agentes financiadores como BIRD e Banco Mundial.
Nesses postos há a possibilidade e a responsabilidade de se realizar uma série de políticas públicas que expressem as propostas de cuidar corretamente do bem público; administrar de forma transparente; ter presente as necessidades dos setores menos favorecidos da municipalidade; e, particularmente, buscar, dentro dos marcos da competência municipal, ser a prefeitura um fator de dinamização da economia do município.
A gestão comunista nessas prefeituras será uma espécie de cartão postal do PCdoB para a sociedade e suas ações e omissões serão acompanhadas pela população. Isso exige um constante contato com o povo: ouvi-lo em suas reivindicações, buscando atendê-las dentro dos limites da competência da prefeitura. Não vender ilusões, mas não poupar esforços no sentido de melhorar as condições de vida dos munícipes.
O exercício das administrações municipais que se inicia será também – sem dúvida – uma grande oportunidade para a acumulação de força política na sociedade para a construção de uma pátria soberana, independente e socialmente justa. Essa afirmação pode parecer abstrata, mas é prenhe de realidade. Na atual situação política no mundo e no país, a luta pela construção de uma sociedade mais justa, passa por um complexo processo de acumulação de forças políticas e sociais – onde a mobilização e a organização da população, mormente dos seus setores mais carentes, tem um papel decisivo. E onde vivem essas pessoas? Onde trabalham ou procuram empregos esses cidadãos? É na cidade, no município. Uma gestão municipal que se esmere em administrar bem a comuna, que procure elevar o nível de participação e consciência dos munícipes, contribuirá para a citada acumulação de forças. E isso será tanto mais exitoso se for um objetivo claramente perseguido.
Além dos aspectos acima levantados, devemos compreender que as prefeituras administradas pelos comunistas devem ser postos avançados na luta de apoio ao governo Lula no rumo da realização das mudanças que o país precisa.
Possibilidades que se abrem
Com a conquista da prefeitura abrem-se amplas possibilidades de trabalho político por parte do prefeito e do vice. Como as mais importantes autoridades do município, passam a ter amplo acesso aos círculos políticos, sociais e empresariais da cidade. Essa nova posição permitirá que seja alargada a influência do PCdoB em todos os terrenos, que se estabeleçam contatos em todas as esferas da sociedade – o que possibilitará consolidar uma corrente política avançada no município.
Existem também condições para uma convivência democrática com os demais partidos. É necessário cuidar de forma sincera e eficaz e garantir uma real participação dos partidos da base no governo. Para isso não basta que ocupem postos políticos, seja de primeiro, segundo, ou terceiro escalão, na administração municipal. Acreditamos que deva ser examinada, de acordo com as condições concretas de cada município, a formação de um conselho político composto pelos partidos da base aliada, de caráter consultivo, que deva ter como objetivo ajudar o prefeito na condução das grandes linhas político-administrativas da sua gestão.
Aqui cabe um comentário acerca da relação entre partido político e poder político. Tema muito complexo, mas que no geral se presta a análises e interpretações demagógicas de certos analistas e círculos políticos. Primeiramente existe, para nós, uma clara linha divisória entre o público e o privado, e que a administração pública se situa no terreno dos interesses públicos, sendo em certo sentido a expressão concentrada desses interesses. Quanto aos partidos, são também instituições de caráter público, que surgiram como uma das formas de afirmação da República contra o poder absolutista do fim da Idade Média, mas não representam toda a sociedade e sim parte dela. A relação entre partido político e poder político é uma relação dialética entre a legítima disputa de poder na sociedade por partes desta e do exercício desse poder após a sua conquista. Nesse sentido embora entes públicos com esferas de competências bem delimitadas não são antagônicos entre si, mas complementares. Assim se coloca o desafio de estabelecermos uma correta relação entre o PCdoB e os prefeitos e vices eleitos.
Como já abordamos, deverão ser as gestões municipais conduzidas pelos comunistas exemplos de competência, eficiência e zelo público. Mas devemos acrescentar que nos marcos dos parâmetros acima citados, devemos estabelecer uma sinergia entre o exercício do mandato e o Partido, no sentido de fortalecê-lo e ampliar suas fileiras.
Pelo arcabouço legislativo hoje existente, o município é um ente público autônomo, mas isso não significa que possa existir isoladamente – muito pelo contrário. Com a Constituição de 1988, várias responsabilidades administrativas de serviços públicos passaram a ser de competência do município e para que esses serviços tivessem garantias de execução foi estipulada em lei a dotação de recursos específicos para esse fim, como no caso da educação fundamental. Além disso, são inúmeras as parcerias que podem ser estabelecidas, entre outros, com Ministérios da República, Secretarias de Estado, SEBRAE e Agências Oficiais Internacionais, com o objetivo de se realizarem projetos concretos de desenvolvimento das comunas (tais como os de preservação de patrimônios culturais, ecológicos, ambientais, de treinamento de mão de obra etc), que abrem um imenso leque de possibilidades para se atrair recursos para o município.
Isso gera a necessidade de as prefeituras se tornarem tecnicamente capacitadas para elaborar projetos de acordo com as exigências legais – que não são poucas. Sendo essa uma das frentes de atuação que deve merecer um tratamento preferencial pelos novos prefeitos.
Concretamente, o fato de o PCdoB ser da base do governo central e de ter relações políticas com todas as áreas da administração publica federal, cria condições para potenciar os dispositivos legais que permitem o estabelecimento dessas parcerias.
Particularmente nos ministérios e outros órgãos federais existem vários programas de “ajuda aos municípios” que deverão ser procurados para o estabelecimento de parcerias e convênios.
Limites
O fato de serem, o prefeito e o vice, autoridades máximas do município, não significa que esse poder seja muito grande, principalmente neste momento de dificuldades econômicas que o país vive, com o seu desenvolvimento contido e/ou estagnado. Isso reduz as receitas municipais, sejam próprias, sejam as derivadas de repasses estaduais e federais. Assim a tarefa de “engordar” as receitas do município, será uma das mais importantes – se não a mais.
Além disso, torna-se necessário colocar de forma explicita que se governam cidades regidas por um conjunto de Leis, que vai da Constituição Federal à Lei Orgânica dos Municípios e Lei de Responsabilidade Fiscal. Há, ainda, o controle do Tribunal de Contas da União, de Tribunais de Contas Estaduais e Municipais, quando houver, do Ministério Público. Todas essas leis e órgãos fiscalizadores são orientados não de acordo com os pressupostos de um Estado democrático popular ou socialista, mas sim de um Estado burguês.
Politicamente também é necessário ter presentes dois elementos fundamentais que, em certa medida, balizarão objetivamente o exercício de nossos mandatos. O primeiro deles é a correlação de forças políticas da sociedade, em nível mundial e nacional. Vivemos um período de resistência política por parte das forças mais conseqüentes. Desde o fim da URSS, o mundo passou a viver sob o tacão do imperialismo estadunidense que, de forma arrogante e militar, impõe sua hegemonia. E internamente, vivemos um período de ameaça de nossa existência como Estado nacional soberano, que resiste às investidas do neoliberalismo, e que com o governo Lula nutre esperanças de redirecionar seu rumo.
O segundo diz também respeito à correlação de forças políticas, não mais na sociedade como um todo, mas no seio mesmo do governo do qual o PCdoB faz parte. Aqui, é necessário ainda ter presente que o governo Lula é um governo onde existem contradições e disputas que, no mais das vezes, o prejudicam. Carece de um comando unificado e é continuamente vitima de inexperiência administrativa. Acrescentemos a isso ser o PCdoB uma força pequena do ponto de vista parlamentar e institucional. Tem 11 deputados federais e dois ministros de Estado. Isso tudo pesa no tipo de jogo político atualmente jogado.
Assim, nos é necessário ter presente que se irá realizar uma administração municipal fortemente condicionada pelos fatores acima descritos, e que se deve ter muita habilidade política no trato com os aliados, procurar incorporar novas forças no campo político, mesmo que elas tenham estado neutras ou em oposição, e ter paciência no trato com os adversários. Ou seja, nosso poder vai até aonde a correlação de forças políticas da sociedade e do governo permitir. Forçar esses limites é agir voluntariosamente, é perder o contato com a realidade objetiva e ficar politicamente isolados. Isso, no entanto, não é sinônimo de acomodação diante desse tipo de limitações. É necessário, com ousadia, criatividade e coragem política, criar as condições para se avançar no rumo do fortalecimento das tendências políticas progressistas que atuam na sociedade e no governo. É aqui que a política é ciência e arte, e não mero exercício de autoridade ou força.
Ronald Freitas é advogado e secretário nacional de Relações Institucionais e Políticas Públicas do PCdoB.
EDIÇÃO 78, ABR/MAI, 2005, PÁGINAS 22, 23, 24, 25, 26