Depois de 400 anos de sua publicação, sucedem-se em vários países novas edições de Dom Quixote de la Mancha. Na sua opinião quais as razões da perenidade desta obra?

Maria Augusta Vieira – Na verdade, esta questão é muito ampla e qualquer resposta sempre será incompleta. Seria possível dizer que o Dom Quixote traz dentro de si um mundo repleto de variedades, de situações inesperadas, de personagens com perfis muito diferenciados. No entanto, todo esse universo tem uma singularidade fundamental: ter uma preocupação constante com a própria literatura, com o próprio fazer literário. Toda a história do cavaleiro parte de uma questão literária: a da leitura, própria de um leitor que confunde o mundo ficcional com o mundo real. Talvez, correndo o risco de pecar pela parcialidade, seria possível dizer que sua importância maior consiste no fato de a obra estar centrada profundamente na própria literatura e que o fazer literário se converte em um de seus grandes temas. Além disso, é preciso dizer que a amizade entre Dom Quixote e Sancho sensibiliza o seu leitor por intermédio de suas longas conversas, repletas, muitas vezes, de grandes ensinamentos e, seja pela compaixão gerada pelo universo de equívocos que muitas vezes eles vivenciam, seja pela comicidade gerada por suas ações descabidas, a verdade é que tanto a figura do cavaleiro quanto a do escudeiro cativam, de modo particular, as emoções do leitor moderno.

A Sra. percebe ecos dessa obra na literatura brasileira? Quais autores e obras teriam recebido maior influência?

Maria Augusta Vieira – De um modo geral, é preciso dizer que do ponto de vista das formas literárias, o Quixote cria os fundamentos de um novo gênero que se desenvolverá plenamente nos séculos 18 e 19, isto é, o romance. Embora esteja muito ligada à estrutura própria dos livros de cavalaria, a obra anuncia essa nova forma literária, na qual a personagem se defronta com um mundo hostil aos seus projetos. Tendo em conta a tipologia do romance estabelecida por Lukács, o Quixote é o exemplo máximo do romance do “idealismo abstrato”, em que tendo um projeto de transformação do mundo, o próprio mundo constitui seu grande adversário. Nesse sentido, a obra de Cervantes torna-se a matriz do novo gênero e, assim sendo, todos os romances posteriores, do ponto de vista da forma romanesca, em alguma medida, devem seu tributo à história do Cavaleiro da Triste Figura.
No caso específico da literatura brasileira, e na busca um parentesco também temático, destacaria dois romances que, a meu ver, guardam profundas semelhanças com a obra cervantina: Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto e Fogo morto de José Lins do Rêgo. No caso de Policarpo, especialmente pela idéia fixa com nítidos fins sociais, por mais disparatados que fossem; no caso do Coronel Carneiro da Cunha, pela ação um tanto quixotesca de querer pôr ordem e privilegiar princípios no interior nordestino, coalhado de injustiças sociais. Além dessas duas obras, em vários momentos o cavaleiro é lembrado e aludido aqui e acolá em poemas, obras de teatro, ensaios, canções etc.
Para finalizar, gostaria de destacar que a meu ver o escritor brasileiro que provavelmente recebeu maior influência de Cervantes foi Machado de Assis que, tanto na forma quanto no conteúdo escreveu romances e contos muito familiares ao estilo cervantino. Caso único, sem margem a dúvida, no contexto latino-americano do século 19.

O personagem central (Dom Quixote) é relacionado com a luta por utopias, pela dedicação desinteressada a causas nobres. Como analisar o lugar desse personagem na contemporaneidade quando se apregoa a “morte” das utopias.

Maria Augusta Vieira – No corrente ano, tem sido muito difundida, nos quatro cantos do mundo, a importância do romance de Cervantes, graças à comemoração dos 400 anos da publicação da primeira parte. Entendo que o interesse pela obra se deva a um conjunto que engloba tanto a forma literária quanto a história do cavaleiro. Por excelência, Dom Quixote como personagem é a representação de um ideal utópico: colocar ordem no mundo a partir dos valores humanitários. Nesse sentido, tendo em conta a quantidade de edições da obra nos últimos tempos e a multiplicidade de comemorações durante todo o ano em diferentes países, me pergunto se, no fundo, mesmo no tempo em que as utopias parecem desaparecer dos nossos horizontes, de alguma forma elas ainda não palpitam vigorosas em todos nós, a exemplo do cavaleiro. Em outros termos, tudo sugere que no fundo ainda nos vemos representados nessa personagem que acreditou que o mundo poderia ser melhor e ao mesmo tempo lutou e deu sua vida para transformá-lo.

Adalberto Monteiro é jornalista e editor de Princípios.

EDIÇÃO 78, ABR/MAI, 2005, PÁGINAS 42, 43