Na Mensagem ao Congresso ao governo Lula para 2005, a reforma sindical foi considerada “estrutural”, “um novo paradigma nas relações sindicais” e “o primeiro passo para um amplo reordenamento jurídico-institucional do sistema de relações de trabalho (…) [envolvendo] o direito sindical, a legislação do trabalho, os órgãos de administração pública do trabalho, a Justiça do Trabalho e o direito processual do trabalho”. Em março, o governo apresentou – com essa reforma – uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 369, de 2005). O seu complemento, um projeto de lei de mais de duzentos artigos, tramitará após a aprovação dessa emenda.

Em sua essência, são duas as alterações básicas propostas na PEC 369: nos direitos sociais, as disposições relativas às relações sindicais; e no Poder Judiciário, a competência da Justiça do Trabalho. Instituem-se a pluralidade sindical e a liberdade de negociação coletiva e reserva-se a Justiça do Trabalho para a solução de conflitos envolvendo o cumprimento dos contratos.

É notório que o movimento sindical passa por inúmeros e graves problemas, inclusive de legitimidade. Os baixos índices de sindicalização dificultam a ação sindical e o financiamento das próprias entidades. Há razões de sobra para as mudanças. Mas que mudanças levar adiante? Como distinguir os problemas estruturais do movimento sindical dos resultantes da precarização e da terceirização do mercado de trabalho, do alto e persistente desemprego? Naturalmente, uma reforma sindical digna de apoio tem de estar voltada para o resgate da capacidade de luta dos trabalhadores e, por conseguinte, da valorização do trabalho.

O fortalecimento das entidades sindicais não será um processo simples ou instantâneo, resultante de uma reforma constitucional. Diante da atual precariedade das relações de trabalho, a recuperação do poder de compra dos salários não se resolverá imediatamente, por meio de negociações coletivas. Somente com muita luta, com proteção mínima da lei e da Justiça, com políticas voltadas para a geração de emprego e distribuição de renda, os trabalhadores e seus sindicatos poderão reverter a precária situação em que se encontram. Assim, é urgente buscar compreender o conteúdo e o significado da reforma sindical em curso.

A falsa igualdade do liberalismo, um mito pró-exploração

Foram necessários muitos e muitos anos para os trabalhadores compreenderem que a revolucionária igualdade liberal pregada no século XVIII era meramente formal e construía, a cada dia, uma sociedade mais desigual. A plena liberdade de contratar era falsa, estava restrita à aplicação de um direito altamente desproporcional, não abrangia a criação do direito, não havia igualdade de oportunidades.
Somente no século XX a igualdade e a liberdade foram acompanhadas de direitos sociais e de proteção ao trabalho, mesmo assim após a revolução de 1917 e, em grande parte, como uma resposta aos movimentos sociais. Já em Weimar (1919), a atividade econômica foi subordinada à garantia de existência digna; o trabalho foi colocado “sob a particular proteção”. (1)

A partir de então, o conceito de hipossuficiência jurídica foi se aprimorando: com a diminuição do livre direito de contratar e a intervenção do Estado nos próprios contratos privados; a vinculação entre direitos sociais e cidadania; a proteção do trabalhador; a função social da propriedade; as garantias ao consumidor etc. Mas, parafraseando Hobsbawn, esse século XX foi breve. A partir dos anos 90, o capitalismo vai recuperando a sua velha forma, questionando e alterando as relações sociais, desconstituindo direitos.

Hoje, segundo dizem, os pontos que inibem a livre contratação entre capital e trabalho precisam ser flexibilizados. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) localiza na “paternalista regulação das relações de trabalho no Brasil” o empecilho à negociação entre as partes, que retira a capacidade de decisão do que é melhor para eles (2). A total desregulamentação dos mercados quer que a mão-de-obra possa livremente ser negociada como qualquer outro insumo. Assim, é preciso desenvolver idéias que restabelecem a igualdade entre o capital e o trabalho, nos bons e velhos moldes do liberalismo clássico.

A reforma sindical e a negociação

Um dos aspectos mais importantes da reforma repousa na concepção de que a negociação e o diálogo social entre o capital e o trabalho vão fortalecer e dinamizar as relações de trabalho. Pretende-se incluir na Constituição uma associação entre a representatividade da entidade sindical e o atendimento a requisitos voltados para a negociação coletiva. Consta da PEC 369/2005 a seguinte modificação para o art. 8º:

“Art. 8º. É assegurada a liberdade sindical, observando o seguinte:
(…)
“II – O Estado atribuirá personalidade sindical às entidades que, na forma da lei, atenderem a requisitos de representatividade, de participação democrática dos representados e agregação que assegurem a compatibilidade de representação em todos os níveis da negociação coletiva”

A negociação coletiva em todos os níveis torna-se o principal instrumento de regulação dos direitos trabalhistas, num cenário de “autonomia privada coletiva” e “estimulando a composição voluntária dos conflitos” (3). A autonomia privada permite maior liberdade do que a esfera pública: inúmeros direitos e garantias podem ser suprimidos, contratualmente, sobretudo se considerados patrimoniais.

O capital vê na livre negociação coletiva as portas para a flexibilização dos direitos trabalhistas. Para muitos setores de esquerda, fora do ambiente estatal, haveria espaço para o avanço dos direitos dos trabalhadores. Mas, afastado o Estado, as forças sociais voltam-se para os seus conflitos dentro dos parâmetros do próprio mercado. Um dos ideólogos desta reforma sindical, José Francisco Siqueira Neto, discorrendo sobre a flexibilização do direito do trabalho afirmou (3):

“Flexibilizar o Direito do Trabalho quer dizer torná-lo mais ajustável à situações fáticas, menos rígido. (…) Sinteticamente, pode-se dizer que a flexibilização do Direito do Trabalho é o processo de adaptação de normas trabalhistas à realidade cambiante.
“A Flexibilização pode decorrer de Lei ou da a Autonomia Coletiva, atingindo conforme o caso, o ordenamento jurídico de forma genérica ou somente os contratos de trabalho em execução”.

Um dispositivo que determinava a prevalência da disposição mais favorável ao trabalhador, diante de contradições entre a legislação e a matéria acordada, nem consta mais da regulamentação da reforma sindical. Disposições semelhantes hoje existentes na CLT serão também revogadas pela regulamentação.

Mas, o que mais impressiona nessa formulação é quão distante estamos de uma entidade voltada para o embate cotidiano entre o capital e o trabalho. Quer do ponto de vista específico, enquanto entidade que organiza os trabalhadores para essa luta, fomenta a conquista dos direitos; quer do ponto de vista mais geral, no crescimento do sentimento de classe, na formação ideológica do trabalhador.

A reforma e o pluralismo sindical

A PEC é radical em pôr fim à unicidade sindical; revoga, inclusive, a definição do município como base territorial mínima da representação. Ao Estado caberá atribuir personalidade sindical às entidades, evitando uma multiplicidade que impediria a negociação coletiva. Hoje, o Poder Público apenas registra as entidades. Estabelecer a outorga sindical como competência ao Estado é uma grande mudança, imposta pelo modelo de pluralismo sindical adotado. É paradoxal, mas os defensores dessa liberdade sindical acabam dando mais poder ao Estado para interferir na organização dos trabalhadores.
O fim da unicidade não assegura o fortalecimento das entidades, muito ao contrário. A regulamentação constrói um modelo que mescla a exigência de representatividade direta, pautada em filiações, com a indireta – derivada da vinculação a outras entidades de grau superior, as chamadas entidades orgânicas.

A exclusividade de representação, que impede a constituição de outras entidades sindicais naquela esfera de representação, somente é admitida enquanto um dispositivo transitório, cabível exclusivamente às entidades pré-existentes à reforma e que atenderem a outros requisitos fixados em lei. Com o tempo, esse modelo implanta efetivamente o pluralismo.

Um ponto importante desta reforma é a exigência de democratização interna para as entidades sindicais. No entanto, ela está restrita às entidades com exclusividade de representação, pela regulamentação ela não é extensiva a todas as entidades sindicais. A democratização interna deveria ser uma exigência para todas as entidades sindicais e não um ônus da exclusividade de representação.

A reforma e a nova Justiça do Trabalho: composição voluntária de conflitos

Parte das modificações na Justiça do Trabalho já ocorreu com a Emenda Constitucional nº 45 (4), mas a PEC da reforma sindical também trata desse assunto. A EC 45 foi positiva ao ampliar a Justiça do Trabalho para abranger todas as relações de trabalho. Antes, era restrita às ações entre trabalhadores e empregadores – apenas parte das relações de trabalho. A abertura é benéfica, mas será definida na regulamentação e pelos julgados ao longo do tempo.

Publicamente, a Reforma do Judiciário estava centrada na transparência (criação do controle externo etc) e na busca da celeridade (súmula vinculante, súmula impeditiva de recurso etc). Mas, suprimiu o poder normativo da Justiça do Trabalho e ainda restringiu a capacidade de solucionar conflitos, condicionando o dissídio coletivo de natureza econômica ao comum acordo entre trabalhadores e empregadores.

Pior, ainda, porque o fim do dissídio e do poder normativo precedeu a instituição dos novos modelos de negociação coletiva e de arbitragem pública e privada. Não que a adoção simultânea resolvesse a questão, mas a forma adotada colocou os trabalhadores em uma situação criticamente desfavorável.
A exigência de “comum acordo” das partes é o fim do dissídio coletivo. A Justiça deixará de ser o árbitro natural, o último refúgio, para onde se dirigem as pretensões exatamente diante da recusa da parte contrária em negociar ou acordar. A reforma trabalhista de FHC já vinha dificultando o acesso individual à Justiça do Trabalho ao exigir prévia discussão nas Comissões de Conciliação Prévia. O que essa reforma implementa é um novo obstáculo intransponível para o ajuizamento das demandas coletivas pelos trabalhadores – a prévia anuência do patronato.

Sem negociações e sem Justiça do Trabalho, prevalecem as condições vigentes da contratação, inclusive o congelamento dos salários, rebaixados pelo efeito da inflação e dos ganhos de produtividade. Em geral, em todos os tipos de contratos, pode-se recorrer ao Judiciário para a repactuação das condições, especialmente para recompor o equilíbrio econômico em seus contratos. Sem essa recomposição, o prejuízo imposto a uma das partes resulta em enriquecimento sem causa à outra. Pela reforma, restará ao trabalhador, se inconformado com a recusa dos patrões à negociação, pedir demissão – o que nem sempre é opção.

Um posicionamento frente à PEC de Reforma Sindical

Amplos setores, pelos mais diversos motivos, pretendem pôr fim à unicidade sindical e, especialmente, viabilizar o processo de negociação coletiva, fundamental para a reforma trabalhista. Há quem defenda reformas visando democratizar e fortalecer o movimento sindical e a luta dos trabalhadores por melhores salários. Mas, é por outros motivos que essas reformas constam da agenda e dos acordos dos vários organismos internacionais.

Um ponto importante para o enraizamento e o fortalecimento da estrutura sindical é a criação e a disseminação da representação sindical por local de trabalho. Nesse caso, houve um avanço na nova redação da PEC: suprime da Constituição serem essas representações fóruns “com a finalidade exclusiva de promover-lhes [dos trabalhadores] o entendimento direto com os empregadores”. Mas, na regulamentação contida no anteprojeto de lei ainda está presente essa grande restrição, colocando as estruturas por local de trabalho mais identificadas com as atuais Comissões de Negociação Prévia do que com o movimento sindical propriamente dito.

A preocupação com a democratização das entidades também não está plenamente incorporada na nova reforma. Pelo anteprojeto de lei, a democratização não é um pressuposto universal aplicável a todas as entidades – ficará restrita àqueles sindicatos que adotarem a exclusividade de representação.
A proposta dos comunistas preconiza a universalização da democratização das entidades, abrangendo eleições, estatutos e a própria gestão das entidades e o aprimoramento da unicidade, concedendo a todos os trabalhadores o direito à opção da exclusividade, sem restrições, tanto para os atuais sindicatos, quanto para os que vierem a ser formados.

É acertada a estratégia que coloca a reforma sindical, visando ao fortalecimento e à democratização do movimento sindical, precedendo os debates ou movimentos de reforma trabalhista. Esta, inclusive, deveria aguardar ainda um cenário de crescimento econômico que diminuísse o desemprego e criasse melhores condições para a atuação e o fortalecimento das entidades. Mas, não há garantias para o seu sucesso; veja a grande pressão do empresariado. A PEC não trata diretamente da reforma trabalhista. Contudo, durante a sua tramitação pode haver resultados indesejáveis. E o cenário surgido com a eleição da nova Mesa da Câmara dos Deputados somente reforça esses receios.

A PEC do Executivo tramitará em conjunto com outras propostas que buscam também alterar o art. 8° da Constituição Federal (que trata da questão sindical). E existem várias delas, muitas de autoria de parlamentares do PT. A tramitação em conjunto significa, dentre outras questões, que o conteúdo constante de todas as proposições poderá ser tratado como uma única matéria.

Tomemos por exemplo a PEC n° 252, de 2000, de autoria do deputado federal Ricardo Berzoini. Uma modificação contida nessa proposta altera o mesmo art. 8° para introduzir um inciso com a seguinte redação:

“VI – o contrato coletivo de trabalho por ramo de produção é a base do sistema jurídico do trabalho, podendo ocorrer a contratação complementar por empresa, por região ou local de trabalho, sendo obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações e nas contratações coletivas de trabalho (…)”

Uma redação como essa, ou outra similar que transforme o contrato de trabalho na base do sistema jurídico do trabalho, resume uma reforma trabalhista, colocando inclusive a prevalência do contrato sobre a legislação mínima de direitos e de proteção ao trabalho.
Todas essas questões indicam que essa reforma não pode tramitar assodadamente, nem é possível qualquer compromisso com o seu conteúdo atual. É indispensável ampliar a mobilização contra a PEC 369.

João Batista Lemos é coordenador da Corrente Sindical Classista e Flávio Tonelli Vaz é assessor técnico da liderança do PCdoB na Câmara dos Deputados.

Notas
(1) Nota Técnica nº 4 – A REGULAÇÃO DO TRABALHO NO BRASIL: obstáculo ao aumento da renda e do emprego – CNI – janeiro de 2005.
(2) Essas expressões aparecem tanto na Mensagem do Presidente para abertura da Sessão Legislativa do Congresso Nacional, quanto nos documentos do Ministério do Trabalho e do Emprego.
(3) Siqueira Neto, José Francisco; Direito do trabalho e democracia; p. 229 e ss; São Paulo; LTr; 1996.
(4) A reforma do Judiciário iniciou-se em 1992; mas somente em 1999, com a CPI do Judiciário, ganhou corpo e atenção. A Câmara concluiu as votações em 2000, enviou a proposta ao Senado, onde tramitou até novembro de 2004. Parte do texto foi promulgado, com a Emenda Constitucional n° 45; partes controversas ainda tramitam.

EDIÇÃO 78, ABR/MAI, 2005, PÁGINAS 63, 64, 65, 66, 67