A democracia brasileira é jovem, mas já deu demonstrações de maturidade e solidez. Os acontecimentos do passado recente são testemunhos incontestes disso. Em 1992, o Congresso Nacional abriu um processo de impeachment contra o então presidente da República, Fernando Collor.

Três meses depois, Collor foi afastado. Tivemos inúmeras Comissões Parlamentares de Inquérito, sendo a mais famosa a CPI do Orçamento, que culminou com a cassação de parlamentares. Juízes federais, envolvidos em corrupção, foram investigados pelo Ministério Público e acabaram atrás das grades. Recentemente, pela primeira vez na história, foi eleito e empossado um presidente de origem operária.

Nenhum desses fatos históricos provocou qualquer real ameaça ao Estado de Direito. Em outros tempos de triste memória as instituições democráticas por muito menos foram duramente golpeadas.
O Brasil é hoje um modelo no que diz respeito à organização eleitoral. Somos capazes de promover eleições para inúmeros cargos e de apresentarmos, no mesmo dia, os resultados do pleito, sem que haja qualquer contestação. Os EUA operam um sistema no qual o menos votado é eleito, os resultados levam semanas para serem anunciados e, muitas vezes, geram controvérsias jurídicas intermináveis.

Apesar dessa vitalidade juvenil, o aprofundamento da democracia exige que sejam enfrentados os problemas do sistema político-eleitoral brasileiro – parte deles herança do período autoritário. É nesse contexto que o debate em torno da Reforma Política ganha relevância na agenda de mudanças estruturais prioritárias para o país.

É possível distinguir claramente duas correntes opostas nessa discussão. Cada qual faz um diagnóstico distinto e propõe soluções igualmente diferenciadas para as disfunções que identificam na organização política nacional. Uma delas pretende aperfeiçoar a democracia na direção do fortalecimento dos partidos políticos, na garantia da expressão plural da sociedade e na criação de instrumentos que coíbam a influência do poder econômico no processo eleitoral.

Do outro lado, há setores interessados em engessar o sistema político-eleitoral, de modo a preservar os espaços de poder que já ocupam. Esses atores políticos vêem as mudanças nas regras eleitorais como instrumentos de manutenção do status quo e, por isso mesmo, buscam introduzir amarras na legislação para impedir o surgimento, e o crescimento, de novas forças políticas.

Na nossa história, infelizmente, foram feitos inúmeros arremedos de reforma política que, em sua maioria, privilegiaram o viés restritivo das liberdades e tiveram por objetivo impor dificuldades aos adversários eleitorais, sufocando o desejo de renovação política da sociedade. É só lembrar o famoso Pacote de Abril (senador biônico, ampliação do mandato presidencial e outros), patrocinado pelo então presidente da República, Ernesto Geisel, que tinha por objetivo impedir a vitória da oposição nas eleições seguintes.

Os setores mais conservadores da política nacional, geralmente abrigados em grandes partidos, evocam periodicamente a necessidade de promover alterações na legislação partidária. Na contramão da visão democrática e sistêmica, eles propõem intervenções pontuais que pretendem estabelecer verdadeiras “reservas de mercado” para os grandes partidos, condenando os pequenos e médios à extinção.

Três são os elementos essenciais desse discurso conservador. Primeiro, confundem fidelidade partidária com aumento do tempo necessário de filiação ao partido, como condição para que o indivíduo possa se candidatar a cargos eletivos. A legislação atual exige um ano de filiação, tenta-se ampliar esse prazo para até quatro anos, o que daria aos grandes partidos uma verdadeira “reserva de mercado”. Nessas condições, “congela-se” o quadro partidário de modo a preservar os espaços de poder dos grandes partidos, que deixam de submeter-se à dinâmica natural do jogo político, acobertados pela legislação. O que já é uma aberração por si só, agiganta-se quando ocorre em um ambiente no qual a democracia está em formação, em processo de consolidação.

Vejamos o caso de um governador que consiga uma vitória acachapante na eleição. A tendência natural dele será atrair o apoio das lideranças locais, históricas e emergentes.

Valendo a regra dos quatro anos de filiação, terá o governador assegurado com essa estratégia o aniquilamento da possibilidade de ter novos líderes para fazer-lhe oposição na eleição seguinte.
A proibição das coligações é outro objetivo desses setores. Tal medida, na prática, torna quase impossível a eleição, em certos estados, de parlamentares cujos partidos não apresentarem candidaturas majoritárias. Ora, muitas vezes, o partido sente-se perfeitamente representado por um candidato de outra legenda, tornando legítima a formação de aliança político-eleitoral.

Por fim, há a tentativa de criar dificuldades à sobrevivência dos pequenos e médios partidos. Isso é feito através da elevação do percentual de votos necessários para que uma agremiação partidária tenha direito ao funcionamento parlamentar, a conhecida cláusula de barreira. A legislação em vigor prevê que, a partir de 2007, só terão direito ao funcionamento parlamentar os partidos que atingirem, nas eleições para a Câmara dos Deputados em 2006, 5% dos votos válidos (não computados os brancos e os nulos) distribuídos em, pelo menos, um terço dos Estados, com um mínimo de dois por cento do total em cada um deles. Se prevalecer essa regra, apenas três ou quatro partidos atingirão a quantidade de votos exigida pela legislação.

Sobre essa questão, vale a pena discutir alguns dos argumentos utilizados na defesa desse dispositivo legal. Costuma-se alegar que a proliferação de legendas favorece a criação de “partidos de aluguel”, aqueles que negociam no varejo apoio aos governos de turno. Tal prática redundaria em problemas de governabilidade, à medida que exigiria constantes e desgastantes negociações não em torno de acordos políticos, mas sim, envolvendo o atendimento de pequenos e grandes pleitos.

A análise é consistente; porém, falta dizer que não são, em geral, os pequenos e médios partidos os responsáveis pela criação dos “balcões de negócios”. São as grandes legendas, PFL e PMDB entre outras, que não possuem unidade ideológica e consistência programática, que acabam protagonizando cenas explícitas de “troca-troca”. Se lembrarmos as últimas eleições presidenciais, veremos que metade do PMDB apoiou José Serra e a outra metade, cerrou fileiras com Lula. Já o PFL dividiu-se entre Ciro e Serra no primeiro turno e Serra e Lula no segundo. Ou seja, a metade do partido apoiou um candidato e a outra ficou com aquele que lhe fazia oposição.

Somos uma democracia em formação, assentada em uma sociedade plural, cuja diversidade não pode ser representada por duas ou três legendas apenas. Além disso, quem deve decidir qual partido irá crescer e qual irá diminuir de tamanho, ou desaparecer, é a sociedade pela via eleitoral. Há partidos que já foram pequenos e hoje estão no poder por obra e graça da vontade popular. Longe de ser uma distorção, esse movimento explicita o dinamismo e a vitalidade da nossa democracia.

Para produzirmos uma reforma política de corte democrático, e ampla, temos que identificar e enfrentar os problemas do sistema político-eleitoral. A influência do poder econômico nas eleições é um dos pontos fundamentais que precisa ser prontamente combatido. Promover alterações na legislação para fortalecer os partidos políticos é outra necessidade imperiosa. Sem esquecermos, é claro, de remover os entulhos autoritários introduzidos por reformas anteriores.

Participei da Comissão Especial da Reforma Política da Câmara dos Deputados (2003/2004), na qual coube ao deputado Ronaldo Caiado (PFL-GO) fazer a relatoria das proposições e venho acompanhando a continuidade desses debates na Comissão de Constituição e Justiça, cujo relator é o deputado Rubens Otoni (PT-GO). Acredito que, em essência, a abordagem dos relatores vem sendo democrática e focada nos principais problemas da nossa estrutura político-eleitoral. Resultado de um acordo político, o texto em discussão na Câmara dos Deputados traz uma abordagem sistêmica e democrática da reforma política. A seguir, faremos uma análise e reflexão sobre os principais aspectos dessa proposta.

O Sistema eleitoral brasileiro estabelece o voto uninominal que consagra o indivíduo em detrimento da formação de uma cultura partidária. O eleitor é compelido a se identificar com o candidato, pessoalmente, e não com a orientação partidária que sustenta a candidatura. Por isso, o parlamentar busca a visibilidade pessoal para justificar individualmente o voto que recebeu e para credenciar-se novamente como opção do eleitor.

A votação em nomes provoca uma polêmica: a quem deve o parlamentar ser fiel, ao eleitor, ou ao partido ao qual pertence? Como se comportará quando o seu partido exigir um voto contrário aos interesses da região, ou da categoria, que o elegeu? Deveria o parlamentar, primordialmente, ser fiel ao compromisso com a sua organização partidária. Ocorre que essa não é a realidade do sistema político assentado no voto uninominal. O eleitor não exige fidelidade partidária. De 2003 a 2004, na Câmara dos Deputados, 215 parlamentares mudaram de partido. Eles até poderão perder a eleição em decorrência de outros fatores, mas não por terem mudado de partido.

Em contraposição ao voto uninominal, a proposta de reforma política em tramitação na Câmara prevê a introdução do voto em lista pré-ordenada. Quer dizer, o eleitor vota não em indivíduos, mas em uma lista de nomes determinados pela Convenção do Partido, dispostos em ordem decrescente de prioridade. A grande vantagem desse dispositivo é que ele induz a fidelidade partidária, não por decreto, e sim por compromisso programático.

Enquanto o voto uninominal traz dentro de si o gene da divisão e da disputa interna – já que o seu adversário eleitoral não está no outro partido, mas dentro da sua própria legenda –, a lista pré-ordenada traz dentro de si o gene da unidade e da solidariedade partidária.

No desenho atual, há candidatos que chegam mesmo a excluir os colegas de partido das atividades na sua base eleitoral, receosos de sofrerem baixas nos seus redutos. Instaura-se um clima de desconfiança entre companheiros de legenda. Com a lista pré-ordenada, a realidade é outra. Os candidatos terão interesse em capitalizar a influência das lideranças do partido na conquista de votos para o conjunto das candidaturas. Afinal de contas, quanto mais votos o partido conquistar, maiores serão as chances daqueles que estão na lista.

Com as listas, os potenciais candidatos precisarão se credenciar junto ao partido se pretendem ocupar uma boa posição no rol das candidaturas. O filiado terá de se envolver com a vida partidária, discutir as teses políticas e demonstrar sintonia com a orientação programática da sua agremiação. Fatalmente, serão criados laços fortes com o partido e será desencadeado um processo de educação política da militância, que conduzirá a maior organicidade estrutural e coerência ideológica da legenda.

A lista pré-ordenada, também uma exigência para que seja adotado o financiamento público exclusivo de campanha, pode diminuir a influência do poder econômico. Hoje, alguns candidatos com muito dinheiro (próprio ou de financiadores) valem-se disso para conseguir apoios de vereadores, prefeitos, ex-prefeitos e lideranças, a fim de tornarem-se os candidatos mais votados do partido, superando os seus concorrentes dentro da legenda. Ou seja, com muito dinheiro é possível ultrapassá-los. Com a lista, esse poder econômico é estéril já que não produzirá mudança na posição relativa da lista.

O financiamento público exclusivo é outra importante conquista, sem a qual, continuaremos a assistir impotentes ao crescimento da interferência do poder do dinheiro no resultado eleitoral. Também previsto no texto em discussão, o financiamento público impede que os interesses privados – – dos financiadores – influenciem a tomada de decisões do Legislativo e/ou do Executivo.

E não só isso, a disputa será mais igual e transparente. Primeiro, porque vai ser do conhecimento prévio do eleitor a quantidade de recursos públicos de que cada partido disporá na eleição. Ainda, a fiscalização do uso desses recursos se dará ao longo da campanha e não ao final dela, como é hoje.
Aos que consideram um contra-senso um país, com tantas necessidades básicas ainda não atendidas, disponibilizar recursos públicos para financiar campanhas eleitorais, é útil lembrar que hoje, por vias transversas, é o contribuinte quem custeia algumas candidaturas, embora não haja mecanismos de acompanhamento e controle desse processo.

Isto ocorre porque em uma campanha eleitoral os interesses privados e públicos se fundem, gerando os escândalos que acontecem em todos os governos. Financiamento privado é uma porta aberta à corrupção que precisa ser fechada. O financiamento público de campanha acabará saindo mais barato para o contribuinte que manter o formato atual.

Aqueles que se contrapõem à adoção da lista pré-ordenada, argumentam que esse instituto pode permitir que indivíduos apropriem-se do partido, controlando-o e reservando aos seus apaniguados os lugares na lista fechada. Refuta-se facilmente essa hipótese. Se as pessoas escolhidas como candidatos não tiverem representatividade política, simplesmente não serão eleitas.

Por outro lado, no sistema uninominal há uma forte tendência para “familiarizar” o poder. Em outras palavras, como o compromisso dos eleitos com os que o apoiaram é pessoal (não-institucional), portanto sujeito a mudanças de “humores”, existe sempre o risco da “traição”. Para precaver-se, então, quem está no posto de comando procura ser substituído por “pessoas confiáveis”, em geral, os seus familiares. Visam com isso diminuir a chance de serem traídos. O que é muito comum na política brasileira. A lista pré-ordenada é também um instrumento para se opor a essa “oligarquização” da política.

Há ainda dois outros pontos bastante positivos da reforma. Um deles é a institucionalização da federação partidária – uma espécie de coligação mais sólida e permanente. A federação será nacional e poderá atuar como uma agremiação partidária inclusive no registro de candidatos e no funcionamento parlamentar. O outro aspecto positivo é a mudança no cálculo das sobras de votos na eleição. Determinando-se que, mesmo o partido que não atinja o quociente eleitoral possa participar da disputa das sobras no preenchimento das vagas restantes.

É imprescindível que se aprove uma reforma política que, se não extinguir, pelo menos reduza bastante a imposição de números de votos previstos na cláusula de barreira. Além disso, não se pode aceitar a proibição das coligações partidárias, que é uma medida de reforço da cláusula de barreira, visando à redução do número de partidos com representação parlamentar. Tais dispositivos afastariam do processo político as correntes de pensamento ideológico e doutrinário, comprometendo a legitimidade da nossa democracia e constituindo-se um verdadeiro retrocesso político.

A tese da reforma fatiada, defendida principalmente pelo Partido da Frente Liberal, representa um grande risco. A idéia é desmembrar as medidas dispostas nos textos e aprová-las isoladamente. Com isso, haverá a possibilidade de determinado partido abandonar a reforma assim que conseguir aprovar um ou outro dispositivo do seu interesse. As forças democráticas que compreendem a necessidade de remover a cláusula de barreira em vigor sabem que fora do ambiente da reforma será improvável, de maneira isolada, negociar esse item.

Para facilitar a construção de consensos em torno da reforma política, nada impede que seja discutida uma outra proposta: aprovar o texto de maneira global, mas determinar o escalonamento da vigência de cada conjunto de medidas. Assim sendo, os partidos políticos poderiam dispor de mais tempo para se adequarem às novas exigências legais. Do mesmo modo, a sociedade teria um período maior para absorver e melhor compreender as mudanças.

Renildo Calheiros é deputado federal (PCdoB-PE) e líder do PCdoB na Câmara dos Deputados

EDIÇÃO 78, ABR/MAI, 2005, PÁGINAS 6, 7, 8, 9, 10