Revoluções e materialismo histórico em Domenico Losurdo
A enorme força da ausculta dialética da história, em Marx, irrompe nessa idelével obra quando, antes, lá explica que, distintamente, as revoluções burguesas do século XVIII avançavam impetuosamente, obtendo êxito uma após outra! Sonoras ondulações da história.
É que para a apreensão analítica da verdade histórica – ensinara depois Marc Bloch, o mestre da escola dos Annales -, antes da interpretação dos fenômenos vem a sua descoberta; surgindo daí a utilidade do método da história comparada. Com efeito, nele pode se encontrar semelhança e dessemelhança, historicamente, entre fatos observados e os meios onde os mesmos ocorreram. Porém – afirmara Bloch -, “antes do mais, há que desembaraçar o terreno das fasas semelhanças, que muitas vezes não são mais do que homonomias” (História e Historiadores, Teorema, 1998, p.p. 120-132).
O que ele quer dizer com desembaraçar-se de falsidades? Observe-se o jogo de palavras do historiador Jacob Gorender, em seu Marxismo sem utopia (Ática, 1999, p.103), livro inspirado numa tenebrosa desilusão:
“[Lênin e Trotsky] mancharam seus nomes e a causa, que pretendiam defender, com a apelação ao fuzilamento de operários grevistas, com a inauguração de campos de concentração (…) de fazer reféns e de executá-los como ato de intimidação e represália (no que se anteciparam aos nazistas)”.
Não, a falsidade a qual nos referimos não é, digamos, especificamente ideológica, dado o sentido absolutamente direitista do julgamento do autor:
a) foram trabalhadores “grevistas” caminhoneiros, em 1973, no Chile, que, em ação golpista comandada pela CIA, aceleraram a operação que matou Salvador Allende. Igualmente, grevistas da petroleira PDVSA, na Venezuela, em 2000, encabeçaram entre os trabalhadores um golpe de Estado contra o presidente Chávez;
b) os campos de concentração da era moderna foram “inaugurados” pelos britânicos, durante a violenta guerra contra os colonos holandeses, Boêrs (1899-1902), na África do sul, quando morreram aproximadamente 30 mil pessoas, incluindo mulheres e crianças; campos considerados tão terríveis quanto os dos alemães, na II Guerra Mundial. Jogo de palavras…
Pois bem, o filósofo italiano Domenico Losurdo – em Fuga da História? -, exibe pleno domínio sobre as marcas profundas da tempestade contra-revolucionária que desabou sobre a condição comunista militante, desde 1989-91; interpreta polemicamente a derrota sistêmica da construção socialista, bem como o insolúvel desengano de náufragos em ataque violentíssimo às experiências revolucionárias – como esse exemplificado acima; e ainda aborda de maneira criativa êxitos e vicissitudes da grandiosa epopéia em defesa de uma sociedade socialista, superior à infâmia da irracionalidade do capital – ou, acusara Karl Polanyi, ao “moinho satânico” liberal burguês. De fato, neste livro, o culto marxista italiano reposiciona lentes às jornadas revolucionárias na Rússia e na China.
Vasta cultura marxista de Losurdo – aliás, lembremos (entrecruzadamente ao nossoargumento precedente) que já brilhantemente desvendara o reacionarismo da intelectualidade feudal (Burke, Haller), e a cruzda de Hegel contra esses invocadores da “natureza”, ou surfistas na onda jus-naturalista, contrapostas ao vigor da Revolução Francesa e especialmente à sua bandeira de igualdade. Do ataque enveredou-se por uma cultura e ideologia da reação, cevada pelos “teóricos da reação” – esgrime Losurdo (Hegel, Marx e a tradição liberal, Unesp, 1998, p.p. 94-96).
Brilhantismo qu Losurdo resgata, por exemplo, na análise de Noberto Bobbio, dos anos 1950-60 creditando aos Estados Socialistas do pós – 2ª Guerra, o início de uma nova fase de progresso civil em países politicamente atrasados, ao introduzir, além dos tradicionais institutos da democracia (sufrágio universal), outros de “democracia substancial, como a coletivização dos instrumentos de produção” (Bobbio, apud Losurdo, Democracia ou bonapartismo, Unesp, 2004, p.p. 258-9).
Assim, Fuga da história? Além de comprovar sólidas confluência teóricas e corajosa tomada de posição, é obra de raro enfoque à reflexão dos revolucionários; principalmente por começar denunciando “a devastação espiritual que tal fracasso [o colapso do “socialismo real”] produziu em determinados setores do movimento comunista” (p.p. 18-19). Asseverando que o desabamento do socialismo real ocorreu nos marcos de “uma cruela prova de forças”, onde o objetivo da “guerra fria” abarcavam todo o planeta e se prolongariam por décadas. (p.27)
Defendendo o direito à violência revolucionária – vista por ele como “terror” – à época de Lênin e Stálin, Losurdo enxerga um ambiente internacional então intensamente carregado, o qual periodiza numa “segunda Guerra dos Trinta Anos”, cujo caminho percorrido vai de 1914 a 1945.
O regime soviético – enfatiza o professor italiano – “foi obrigado a enfrentar uma permanente situação de exceção”, onde, de 1917 a 1953 (ano da morte de Stálin), aconteceram “pelo menos quatro ou cinco guerras, e duas revoluções” (p.p. 43-44). A propósito, ao lado da dura crítica de Losurdo a Stálin – “ditador”; “horrores” do stalinismo -, ataca os que o igualam a Hitler: “deixemos essa comparação tão absurda aos anticomunistas profissionais”(p. 49); acusaos comunistas que “demonizam” Stálin (p.p. 50-51); e pergunta: seria possível imaginar “a radical mudança” ocorrida no mundo, em relação a raça e racismo “sem a contribuição da URSS de Stálin?” (p.51).
Acerca da revolução resultante na China contemporânea, as opiniões de Losurdo já são conhecidas pelos leitores de Princípios (Ver: “A esquerda, a China e o imperialismo”, nº 58, 2000). Mas o livro traz um amplo painel, que adentra às características da sociedade chinesa à época da revolução; descreve a estratégia vitoriosa de Mão e o PCCh; atualizando ainda a análise sobre os desastres da “Revolução Cultural”: “Foram anos do triunfo, de fato, do bonapartismo” (p.64), fulmina Losurdo.
Uma NEP gigantesca e inédita – é assim que formula a revolução chinesa sinteticamente nosso autor e professor em Filosofia da História (Urbino, Itália), ao caracterizar seu atual estágio. Onde, diante da “grave derrota sofrida pela perspectiva socialista”, teórica e internacionalmente, da globalização e do apartheid tecnológico, a tentativa dos comunistas chineses de “construir uma economia socialista de mercado se dá em condições muito difíceis e se configura como uma luta bastante complexa” (p. 95).
Emfim, Fuga da história? É indispensável crítica à capitulação frente à crise do socialismo, uma fecunda defesa das revoluções proletárias.
Fuga da História? A revolução russa e a revolução chinesa vistas de hoje, Domenico Losurdo, Revan, 2004, 2006 p.p.