“Se a revolução não for cultural, não é revolução”
Os rumos da cultura na Venezuela, em tempos de Revolução Bolivariana
Qual é a importância da cultura para a revolução bolivariana?
Hector Soto – Se a revolução não for cultural não é revolução. O povo fala cultura. E definimos como cultura o que fomos, o que somos e o que queremos ser. Como políticas gerais temos três idéias fundamentais: massificação, deselitização e democratização da cultura. Estamos reivindicando o caráter integrador em toda a sede de saber do povo. Para nós, essa é a definição de cultura. E também a tradição culinária, com relação à comida, assim como as tradições orais, religiosas, o artesanato, a cultura popular.
Por isso, afirmo: a política do novo ministério de cultura venezuelano contém essa bandeira a que chamamos deselitização, envolvendo a democratização e a integração. Pelo nosso planejamento, o tema cultural tem de ser apropriado pelas massas, pelo povo. Queremos quebrar o conceito anterior equivocado de que a cultura é conceito de um grupo, que controla a informação. Por isso, temos programas de massificação importantes e muitos planos para o futuro.
Por exemplo, distribuímos 25 milhões de livros de diversos autores venezuelanos, nas praças públicas da Venezuela, totalmente grátis com o objetivo de promover o interesse pela leitura. O nosso maior teatro é o Tereza Carrenho, uma pianista venezuelana do século passado, muito conhecida nacional e internacionalmente. Esse teatro havia se tornado um símbolo exclusivo das apresentações dos grupos de elite para uma parte da sociedade a um custo enormemente alto, de impossível acesso para as bases. Então, ele – como muitos outros teatros da Venezuela –, se tornou um teatro de portas abertas, onde acontecem apresentações de espetáculos de toda natureza, desde música clássica, com orquestra sinfônica, até músicas populares. E totalmente gratuito à população.
Com relação à política cultural no país, o que mudou?
Hector Soto – O presidente Chávez tem sido muito coerente. Faz três anos que foi criado o vice-ministério da Cultura, associado ao ministério da Educação. Dois anos depois, ele lhe deu caráter de ministro de Estado, que até então não existia. A cultura na Venezuela era para uma parcela muito pequena, centralizada em um centro muito pequeno chamado Conselho Nacional da Cultura – o que nunca ocorreu porque se concentrava em Caracas e era controlado por muito poucos. Não havia política nacional para a cultura massiva. E agora, faz um mês, acaba de criar um Ministério estruturado com verba e organizado como Ministério de Cultura, com Francisco Sesto, arquiteto de alta sensibilidade social e política, um dirigente político muito importante, como ministro. E esse ministério funciona com três vice-ministérios: o de Preservação e Resgate da Identidade, do Patrimônio cultural; o de Desenvolvimento Humano, que tem a ver com a formação e a capacitação das pessoas pelo conceito mais amplo de cultura, o martiano (José Martí), de ser culto para ser livre. E o da Indústria e da Economia Cultural, um pouco para dar ao setor organização e possibilidade de desenvolvimento econômico ao grupo cultural.
Os grupos culturais de base não conseguem financiamento, não só na Venezuela, mas no mundo todo. Eles vão ao Ministério implorar ou mendigar cotas de dinheiro todos os anos. Estamos trabalhando na Venezuela pelo fomento da indústria cultural e para que o próprio movimento cultural tenha possibilidade de viver de sua atividade. Esse é o novo desenho da política cultural venezuelana.
Estamos lançando o projeto Missão Cultura, que é a formação de 28 mil ativadores culturais, posicionados até na última paróquia (menor unidade política depois do município). Ela tem como objetivo formar os ativadores com projeto sócio-cultural baseado nas necessidades da comunidade. É um programa de nível superior, de licenciatura, em convênio com a Universidade Simón Rodriguez – numericamente a maior do país, representada em 20 estados e com mais de 60 mil estudantes –, e o Ministério da Cultura. No ano que vem, também firmaremos o convênio com a Universidade Bolivariana.
Esse projeto tem três tarefas. A primeira é levar cada uma das manifestações culturais a cada uma das paróquias onde vivem. Entendendo como manifestação cultural a importância do que a comunidade diz ser importante para a cultura. Não por especialistas ou acadêmicos que decidam o que é importante.
A segunda é fazer um censo do patrimônio cultural, buscando a história local, da comunidade e dos bairros. Como se constituíram; qual sua trajetória; quem foram seus fundadores; que música é tocada ali; que comida comem; quais os personagens populares de maior importância. Não só a história escrita, mas também a oral. Então, os ativadores culturais têm de entrevistar nosso ancião antes que morra para que conte sua história ainda não registrada. Todo esse conhecimento será incorporado nos planos de estudo da escola de educação primária e secundária [o correspondente a nosso básico e fundamental] dessa região. As crianças de um bairro particular não podem estudar a história só pelos fatos gerais mundiais e nacionais. A história tem de ser ensinada também pelos personagens que as crianças conhecem em seus bairros.
E a terceira, é que esses 28 mil ativadores estão recebendo uma profunda formação política e ideológica. No bom sentido da palavra, nem partidista, nem politiqueira. Eles estão hoje conhecendo e transmitindo nos bairros onde vivem o pensamento de Simon Bolívar e Simon Rodriguez; mas também discutem sobre a Alca, os danos que ela pode trazer no sentido político, econômico, social e ecológico. Estão discutindo na comunidade as novas alternativas multilaterais como a Alba – uma proposta venezuelana de integração latino-americana. Então, não estamos escondendo que esses 28 mil ativadores são quadros que estão se formando política e ideologicamente.
Alguns setores da Igreja Católica apoiaram o golpe contra Chávez em 2002. Na época, essa ação foi assumida pela cúpula isoladamente. Hoje, como o governo se relaciona com esses segmentos?
Hector Soto – A cúpula da igreja foi muito comprometida com o passado, recebia ajudas econômicas nos outros governos, a ponto de o cardeal Ignacio Velazco – morreu e está onde tinha de estar –, ter sido um dos assinantes da ata do governo de Pedro Carmona, o golpista. E muitos componentes da alta igreja continuamente dão declarações incitando o desconhecimento da legitimidade do governo revolucionário. Mas isso é uma batalha da cúpula. Nós estamos muito satisfeitos com a atitude dos padres e religiosos nos bairros da periferia.
Na Venezuela, temos experiência com os párocos. Os padres que estão nas favelas, que sabem da necessidade do povo e estão incorporados ao trabalho, por reivindicação do povo, de alguma maneira fazem seu trabalho de orientação espiritual sempre a favor dos menos favorecidos. A massificação do pensamento neoliberal quer, inclusive, liquidar a variedade na religião que tem o povo venezuelano. A Venezuela é um país multiétnico e pluricultural como o Brasil. Aqui convivem crenças de todo tipo, como a magia, a lenda indígena, a cultura africana, com seu próprio santo e sua própria maneira religiosa de se expressar. Mas também temos uma comunidade evangélica muito importante. Por sinal, ela se incorporou muito bem ao processo revolucionário. Mas também temos uma comunidade católica importante. O presidente Chávez tem uma profunda fé cristã, do que nós compartilhamos, mas vendo Cristo ser humano, não Cristo mitificado. Nós acreditamos no Cristo revolucionário, o lutador pelos pobres, o defensor. Eu mesmo sou vice-ministro da Cultura na Venezuela e sempre carrego a minha imagem de Cristo no peito.
Passados cinco meses do referendo revogatório (em que Chávez saiu vencedor com o apoio de 60% da população), como está a relação com a oposição? No âmbito da cultura, essa disputa tem quais conseqüências?
Hector Soto – Quando se fala de oposição na Venezuela, temos de diferenciar duas coisas. Uma porcentagem importante de venezuelano, quase 3 milhões e meio, votou no referendo contra o presidente e isso representa uma posição legítima. Mas 7 milhões disseram sim. Nós vivemos numa democracia e na democracia existem posições diferentes que devem conviver e tomara que convivam.
Esses 3 milhões e meio de venezuelanos não têm uma posição homogênea. Há uma cúpula pequena que toma os caminhos da violência, da conspiração, da insurreição e até do magnicídio. Então, esse grupo, que não passa de duas mil pessoas, tem um grande poder econômico e está vinculado aos meios de comunicação. Temos apresentado o problema no âmbito internacional, à própria OEA (Organização dos Estados Americanos), de que ele é financiado pelo Departamento de Estado norte-americano e pela CIA (Companhia de Investigação dos Estados Unidos da América). Esse é o motivo de estarmos apelando ao mundo. Porque a oposição venezuelana não tem dinheiro para ir ao Brasil e falar sobre o presidente Chávez. Alguns sim, mas estou falando de maneira geral. Aqui, a Fox, dos Estados Unidos, lhes tem dado grande abertura. E nós estamos monitorando seu caráter antidemocrático e a repressão relacionada ao governo venezuelano nos canais norte-americanos. De cada 100 pessoas que eles convidam para falar, 90 são dessa oposição teimosa e dez são personagens do governo ou vinculados à posição chavista. Isso é o que estamos vivendo na nossa América Latina. Todos conhecem a posição das grandes cadeias dos meios de comunicação. Acredito que o próprio governo de Lula no Brasil também esteja enfrentando esse problema da tentativa de desprestígio permanente dos meios de comunicação vinculados ao centro econômico mundial.
Contudo, a revolução bolivariana avança. E internamente estamos muito fortalecidos. O próprio presidente está cumprindo uma tarefa também de recorrer ao mundo, para divulgar as conquistas e a posição da revolução bolivariana: democrática, pacífica e gradual.
Em relação à cultura, estamos coordenando o programa vinculado à cultura de uma maneira muito ampla. No projeto de distribuição de 25 mil livros em praças públicas, já citado, há vários títulos de autores declarados contrários ao projeto bolivariano. Mas são excelentes escritores, novelistas, poetas, e nós não vamos convertê-los, nem pretendemos fazê-lo, em inquisidores da criação cultural. Isso seria repetir um erro e não o queremos. Precisamente o que fazia a direita na Venezuela era nunca dar espaço a nossos escritores de esquerda, poetas, pintores etc. Nós abrimos espaço a esses cultores e preservamos o que já tinham.
Chávez tem afirmado nos últimos meses que a revolução bolivariana é socialista. Como é esse socialismo?
Hector Soto – Nós temos uma forte tendência de pensamento socialista. Basta ler a Constituição da República Bolivariana da Venezuela. Nela há um caleidoscópio ideológico e pode-se sentir a presença de muitas doutrinas. Na nossa revolução bebemos de diversas doutrinas as coisas que nos parecem ser úteis. Mas temos claro haver uma orientação ideológica geral maior: o coletivismo. Apenas propomos uma sociedade coletivista, para enfrentar a nova sociedade individualista do neoliberalismo. Estamos construindo, acreditamos, o novo socialismo, a que nós chamamos socialismo do século 21, que se está discutindo e aberto à discussão.
Na Constituição está o objetivo estratégico para o lançamento da nova etapa da revolução. E esse é o objetivo que já temos claramente expressado. Nós sabemos e pensamos não estarmos construindo o comunismo na Venezuela. Mas sim uma economia diferente, igualitária, solidária, com sensibilidade social. Um socialismo novo, baseado na preservação dos recursos coletivos e não privatizados. Uma sociedade onde convive a propriedade privada, mas regulada com uma lei antimonopólio. Uma sociedade onde todos se expressem. Na Venezuela não vamos fechar nenhum meio de comunicação, mesmo que a mídia tenha trabalhado duro para atrapalhar o governo. Aqui não há presos políticos. Nem um só preso por sua forma de pensar. Há um grupo escasso de presos vinculados ao golpe militar, responsáveis por mortes no dia do golpe militar; mas aqui não se persegue pela idéia política. Nós acreditamos num novo socialismo que inclui o desenvolvimento endógeno, que inclui o desenvolvimento econômico social das comunidades, e não um país monoprodutor associado apenas ao petróleo e amarrado aos desígnios dos grandes compradores de petróleo, como a grande potência dos Estados Unidos, nossos primeiros compradores de petróleo.
Assim é o socialismo em que acreditamos. Em que diversifica a economia, desenvolve o turismo, a economia cultural popular, em que as pessoas se apoderem de conhecimento. Estamos falando de um novo socialismo, mas o estamos discutindo e o construindo. Nós temos um forte componente do pensamento marxista. O marxismo não é um programa político senão um método de análise. Lembre-se, Marx dizia que o econômico determina em grande medida o comportamento sócio-histórico do povo. E a Constituição Bolivariana toma esse pensamento e planifica muito bem sua economia. Uma economia solidária, onde está o corporativismo, e estejam descentralizados os recursos.
Mônica Simioni é jornalista e mestranda em Ciências Sociais pela PUC-SP.
EDIÇÃO 78, ABR/MAI, 2005, PÁGINAS 55, 56, 57, 58