Precisamos descobrir o Brasil! (1) Precisamos desesconder o Brasil, mostrá-lo para nós mesmos e para o mundo. Precisamos entender o Brasil; no lugar de conceitos rígidos, noções líquidas, no lugar da reta, a curva. Precisamos nos fundir com o Brasil, tomar um banho em suas águas, que são muitas (2). Precisamos conhecer mais os fenômenos em ebulição e construir conceitos que se modelem no contato com a realidade viva. Para compreender o Brasil, precisamos nos transformar em poetas (3). Precisamos transformar o Brasil!

O Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania – Cultura Viva, nasce desse desejo. . Por enquanto, o Cultura Viva é um programa do Ministério da Cultura, do governo do Brasil, mas nosso objetivo é consolida-lo como política de Estado, desenvolvendo ações transversais entre ministérios, estados e municípios. A primeira ação foi assinada com o Ministério do Trabalho e vai garantir 50 mil bolsas anuais para jovens do Primeiro Emprego; na seqüência, parceria com os Ministérios das Comunicações (4) e os Correios (ligação por internet em Banda Larga – G-Sac – e distribuição de produtos culturais produzidos pelas comunidades); Meio Ambiente (Salas Verdes); Educação (Escola Viva); Desenvolvimento Social (Erradicação do trabalho infantil e Fome Zero); Ciência e Tecnologia (Casa Brasil e Telecentros); Defesa (Projeto Rondom); e todos os outros programas e ações onde a cultura couber. (E a Cultura cabe em todo lugar.)

Para transformar o Brasil é preciso ir além de uma política de Estado, afinal, o Estado ainda é de tão poucos. É preciso transformar o Cultura Viva em política pública efetivamente apropriada por seu povo. “A sociedade é produzida por nossas necessidades, o governo por nossa perversidade” (Thomas Paine, O Bom Senso). Mais que oferecer serviços públicos “para” o povo, é preciso compartilhar, unir afeições, promover felicidade. “A alegria é a prova dos nove” (Oswald de Andrade, Manifesto Antropofágico). Qualidades que o povo brasileiro tem de sobra. Porém, o caminho não é fácil.

Ao mesmo tempo em que olhamos para o Brasil e encontramos criatividade e solidariedade, nos defrontamos com iniqüidade, injustiças, maus cheiros, maus tratos… Milhões habitando periferias, favelas e cortiços; outros tantos em municípios desassistidos; trabalhadores sem emprego; camponeses sem terra; famílias sem teto; jovens sem perspectiva de futuro; estudantes sem ensino de qualidade; índios sem direitos; um povo mestiço, mas sem igualdade racial; os esquecidos, os desvalidos… Os sem Estado.

Mesmo assim, o país resiste na solidariedade popular. Mães sem emprego cuidam dos filhos das mães que encontram trabalho. Aos domingos, amigos fazem mutirão para construir casas; ao fim da jornada, churrasco, samba e cerveja. Os brasileiros são inventivos, empreendedores e alegres. ”Serão os atenienses da América se não forem comprimidos e desanimados pelo despotismo” (José Bonifácio de Andrada, Patriarca da Independência do Brasil). Precisamos moldar o Estado à imagem de seu povo.

O Cultura Viva deseja contribuir para essa aproximação, em busca de um Estado Ampliado. É um programa de acesso aos meios de formação, criação, difusão e fruição cultural, cujos parceiros imediatos são agentes culturais, artistas, professores e militantes sociais que percebem a cultura não somente como linguagens artísticas, mas também como direitos, comportamento e economia. Há muitas ações de combate à exclusão social, cultural e digital já acontecendo. Fala-se da criminalidade e do tráfico de drogas nas favelas do Rio de Janeiro (e em todas as outras grandes cidades), mas as pessoas envolvidas com isso são minoria. Muito mais gente se mobiliza para recuperar os morros, desenvolver música, dança, teatro… E com estética inovadora! Quem assistiu ao filme Cidade de Deus, se impressiona com a narrativa ágil e atores vibrantes. Gente das favelas. Na maior favela de São Paulo, Heliópolis, as casas estão sendo pintadas com cores vivas, unindo comunidade, um conceituado arquiteto e empresas. No morro da Mangueira, o samba é fator de inclusão, mas vem junto com uma orquestra de violinos, emissoras de rádio e TV comunitárias e grafitagem colorindo paredes e muros. No campo, trabalhadores sem terra criam suas próprias escolas educando mais de 120 mil crianças, além de alfabetizar jovens, adultos e velhos. Em um lixão em Maceió há um circo-escola e valentes guerreiras lutando contra a exclusão social. Uma nova postura vai sendo construída em um Brasil escondido.

Por isso potenciar o que já existe. Acreditar no povo, firmar pactos e parcerias com o que o Brasil tem de melhor: o brasileiro. “O melhor do Brasil é o brasileiro” (Câmara Cascudo, folclorista). Mas isso não significa um simples “deixar fazer”, porque, neste caso, os gostos e imposições da indústria cultural acabariam por prevalecer. Da mesma forma, querer levar “luzes”, selecionar cursos e espetáculos que julgamos mais adequados e sofisticados, também continuaria reproduzindo a mesma relação de dependência e subordinação e apenas trocaríamos o dirigismo de mercado pelo de Estado.

Com o Cultura Viva vamos experimentar uma outra alternativa: o desenvolvimento aproximal entre Pontos de Cultura. Nossa idéia é de que a troca, a instigação e o questionamento, elementos essenciais para o desenvolvimento da cultura, aconteça num contato horizontal entre os Pontos, sem relação de hierarquia ou superioridade entre culturas. Um Ponto auxiliando outro Ponto. Alguns oferecem uma experiência mais avançada em teatro, outros em dança; ações sócio-educativas aprendem com a vanguarda estética que se encontra com a tradição e ajudam a construir o novo. Uma troca entre iguais que aprendem entre si e se respeitam na diferença.

O papel da coordenação do programa é localizar e formar mediadores na relação entre Estado e sociedade, aproximando as diferentes formas de expressão e representação artística, bem como as diferentes visões de mundo. O programa Cultura Viva ainda não tem uma resposta acabada a todo esse processo que apenas se inicia, mas tenta, ao menos, identificar caminhos. Ou pelo menos, identificar aqueles que não devem ser trilhados.

De partida, evitamos uma estrutura fortemente institucionalizada e hierarquizada, pesada na forma de gestão e controle, muito comum na burocracia pública. Menos consensos fabricados (e sonhos roubados) e mais conexões de trabalho que respeitem a diversidade e a busca de micro-soluções no fortalecimento de redes sociais. Para sedimentar essas redes, os Pontos de Cultura.

O nome Ponto de Cultura surge do discurso de posse do ministro Gilberto Gil: “um do-in antropológico, um massageamento de pontos vitais da nação”. E que nação é essa? De certo não é uma massa compacta e estática, muito menos um conjunto de estereótipos e tradições inventadas. A nação para qual olhamos precisa ser vista como um organismo vivo, pulsante, envolvido em contradições e que necessita ser constantemente energizado e equilibrado. Uma acupuntura social que vai direto aos Pontos. “Quando há vida, há inacabamento” (Paulo Freire, educador), mais processo e menos estruturas pré-definidas, menos fossilização e mais vida.

A rede Cultura Viva deve ser maleável, menos impositiva na sua forma de interagir com a realidade e por isso ágil e tolerante; como um organismo vivo. O objetivo é fazer uma integração dos Pontos em uma rede global que acontece a partir das necessidades e ações locais. A interação entre o global e o local (5) deve respeitar o crescimento das ações desenvolvidas em cada Ponto de Cultura, de modo que eles ganhem musculatura e estrutura óssea e conquistem sua sustentabilidade e emancipação.

Esse modo de pactuar com a sociedade foi definido como Gestão Compartilhada e Transformadora e envolve os conceitos de empoderamento, autonomia e protagonismo social. Enquanto nos afastamos das velhas “neo”cartilhas, clareamos os conceitos à medida que a experiência social avança e os fenômenos vão sendo explicitados. Menos receitadores e mais educadores; este parece ser um bom caminho.

Neste artigo estão algumas idéias, conceitos e ações que nos permitiram iniciar a caminhada (6): O Ponto de Cultura como espaço de sedimentação da macro-rede Cultura Viva, de organização da cultura no nível local e de mediação na relação entre Estado e sociedade e entre os outros Pontos, constituindo redes por afinidade; a Cultura Digital como um instrumento de aproximação entre os Pontos que desencadeia um novo modo de pensar a tecnologia, envolvendo generosidade intelectual e trabalho colaborativo (por isso, o software livre como opção tecnológica e filosófica); os Agentes Cultura Viva como protagonistas de um processo que integra inclusão social, econômica, cultural, digital e política na construção de uma cidadania emancipatória; a Escola Viva como uma ação que integra o Ponto de Cultura à escola, apontando para um outro modelo de envolvimento social com a educação, que vai além dos muros escolares na busca de uma cidade educativa.

Definidas essas quatro ações (Ponto de Cultura, Cultura Digital, Agentes Cultura Viva e Escola Viva) observamos que faltava uma integração dialética entre tradição, memória e ruptura. Tradição enquanto ponto de partida, memória enquanto re-interpretação do passado e ruptura enquanto invenção do futuro. Assim, incluímos uma quinta ação, o Griô, que será lançada até o final de 2005 e oferecerá bolsas para os velhos mestres do saber popular: os organizadores de quadrilhas, de folias de reis, congadeiros, artesãos, paneleiras, rendeiras, repentistas, rabequeiros, contadores de histórias, construtores de brinquedos, baianas do acarajé, mestres de capoeira… Velhos brasileiros que tanta sabedoria têm a nos oferecer. Cada um receberá um salário mínimo por mês para formar jovens aprendizes e continuar fazendo exatamente o que já fazem. Griô foi a forma abrasileirada que encontramos para a expressão em francês Griot, que designa artistas e narradores de história da África Ocidental, homens que caminhavam (e caminham) de aldeia em aldeia repassando a história de seu povo. Ao transformarmos o Griô em uma ação do programa Cultura Viva pretendemos nos aproximar ainda mais do saber popular e nos encontrar com a África. Unindo esse conjunto de ações, um programa na televisão, uma revista, cartaz mural e portal pela internet, efetivando a integração em rede e o protagonismo dos Pontos de Cultura.

Assim, mergulhamos em um Brasil profundo, escondido. “Um outro mundo é possível” (Fórum Social Mundial). Esse é o caminho que escolhemos e para o qual convidamos todos, brasileiros ou não, a caminhar conosco, por uma Cultura Viva.

Célio Turino é mestre em história pela UNICAMP e ensaísta. Atualmente exerce o cargo de Secretário Nacional de Programas e Projetos do Ministério da Cultura e coordena o programa Cultura Viva.

Notas
(1) Verso extraído do poema Hino Nacional, de Carlos Drummond de Andrade.
(2) “Águas são muitas”, da Carta do Descobrimento, de Pero Vaz de Caminha.
(3) “O sociólogo que quiser compreender o Brasil não raro precisa transformar-se em poeta”, conclusão de Roger Bastide, sociólogo francês e um dos primeiros professores da Universidade de São Paulo, in: Prefácio ao livro Brasil, país de contrastes.
(4) Assinada no dia 14 de março de 2005.
(5) Quem sabe com isso não estaremos criando uma nova palavra, “glocal”, que poderia expressar um conceito diferente de globalização, estabelecido a partir das necessidades e particularidades locais e não por imposição de um centro único.
(6) Quem se interessar por informações mais detalhadas do programa pode consultar o catálogo de apresentação do programa Cultura Viva na página eletrônica do Ministério da Cultura (www.cultura.gov.br). Até o momento há 262 Pontos de Cultura em processo de conveniamento.

EDIÇÃO 78, ABR/MAI, 2005, PÁGINAS 59, 60, 61, 62