A formação do capitalismo: uma introdução
As condições fundamentais da produção capitalista advieram, por um lado, da separação do trabalhador da propriedade dos instrumentos de seu trabalho. Por outro, somou-se a essa mudança social a gênese e dinâmica da produção colonial, promotora da circulação comercial e do lucro mercantil. (1)
Não bastou a formação do Estado nacional para que se desse o capitalismo, foi necessário ainda que a monarquia mantivesse certo grau de solidariedade com os interesses burgueses. Quando as lutas sociais da crise do feudalismo resultaram em vitória das forças particularistas, cidades, principados, frente às forças unificadoras, o avanço da burguesia foi retardado ou mesmo bloqueado. No plano externo, a estreita base municipal tornou este capitalismo extremamente vulnerável frente à agressiva concorrência do capital comercial das novas nações (2).
Durante a expansão ultramarina, onde a burguesia mercantil ibérica permaneceu subordinada aos interesses nobiliárquicos, houve uma incapacidade de superação de formas pretéritas da organização da produção do capital comercial. Em pleno século XVIII, a economia portuguesa caminhava para o não-capitalismo, predominando ali a economia agrária, com a aristocracia detendo metade das terras e a Igreja outro terço; as cidades mantinham suas funções administrativas e mercantis, sendo a indústria restrita à produção artesanal (3).
A colonização ultramarina, com a transferência da renda colonial para a metrópole, possibilitou a preservação da sociedade portuguesa em uma estrutura parasitária, hipertrofiando o Estado e fortalecendo a figura do mercador-fidalgo. Já a política de colonização espanhola orientou-se na transformação das colônias em sistemas econômicos auto-suficientes e produtores de excedentes líquidos, exportados em forma de metais preciosos, para a metrópole. O aumento do poder econômico do Estado gerou um aumento de gastos públicos, ou privados subsidiados pelo governo, gerando uma crônica inflação traduzida no déficit da balança comercial (4)
A posição dominante da burguesia holandesa, na direção dos negócios nacionais implicou crescente fortalecimento do capital mercantil e usurário. No âmbito interno, a burguesia mercantil e bancária subordinava as outras forças sociais e, no externo, foi capaz de transformar Amsterdã no grande centro do mercado mundial. No entanto, estavam ausentes as condições para o pleno desenvolvimento de forma capitalista de organização da produção e as atividades artesanais e manufatureiras enfrentavam falta de mão-de-obra, emigração de trabalhadores especializados, tendência à alta de salários etc. (5)
O processo de superação da servidão na Inglaterra foi iniciado entre o final do século XV e o início do século XVI. A grande maioria da população era composta por camponeses economicamente autônomos. O poder feudal que se baseava na quantidade de camponeses autônomos ficou abalado quando se deu a expulsão do campesinato da sua base fundiária, processo impulsionado pela demanda de lã inglesa por parte da crescente manufatura flamenga.
O processo de expropriação recebeu novo impulso com a reforma, e o conseqüente roubo dos bens da Igreja, que, de certa forma, lançou para as cidades os camponeses empobrecidos que eram protegidos pelos dízimos.
Com a revolução gloriosa, os capitalistas chegaram ao poder e iniciaram a expropriação das terras estatais anexando-as à propriedade privada, visando à especulação comercial fundiária.
A expulsão de parte do povo do campo transformou esses trabalhadores, não apenas livres dos seus meios de sobrevivência e de seu material de trabalho – portanto, disponíveis para o capital industrial –, mas criou também o mercado interno, com a destruição da indústria subsidiária rural, separando a agricultura e a manufatura. Portanto, as razões para o avanço capitalista ter se dado na Inglaterra não devem ser atribuídas a nenhum tipo de superioridade tecnológica ou científica. As condições para o avanço britânico estavam nas transformações políticas, com a revolução gloriosa, na aceitação do lucro privado e do desenvolvimento econômico como elementos da política governamental, nas transformações da agricultura e das relações de trabalho no campo, que permitiram a agricultura cumprir as três funções básicas à industrialização: aumento da produção e da produtividade para alimentar uma população não-agrícola em rápido crescimento; fornecimento de excedente de força de trabalho para a indústria; e fornecimento da possibilidade de acúmulo de capital. Além disso, um elevado volume de capital social era empregado na criação de uma frota mercante, facilidades portuárias, melhorias nas estradas e nas vias de navegação (6).
Comparando as condições históricas entre a Inglaterra e a França, Carlos Alonso Barbosa de Oliveira aponta como marcantes as diferenças entre as duas evoluções sociais, pois apesar de surgir entre os grandes proprietários a tendência de avanço sobre as terras comuns e sobre as parcelas camponesas, estabelecendo a grande exploração dominial sob seu controle direto ou através do arrendamento, esta não foi a direção dominante do processo de transformação agrária na França. A solução típica encontrada pelos grandes proprietários frente à redução de suas rendas pela inflação foi, por um lado, o aumento de cargas através da restauração de esquecidos direitos feudais e, por outro, o estabelecimento do sistema de parceria, pela qual o proprietário recebia parte do produto da exploração camponesa em espécie (7).
Durante a era feudal, o comércio exterior inglês era dominado por comerciantes dos Países Baixos, da Itália e da Alemanha, caracterizando, portanto, uma relação subordinada da Inglaterra no mercado externo, relação que os mercadores ingleses, apoiados pelo rei, conseguem ir alterando no longo do século XVI.
Os Atos de Navegação (1651-1660) foram instrumentos de luta comercial contra a Holanda, na verdade representavam uma legislação contra o capital comercial estrangeiro e revelaram-se em ponto de apoio fundamental para o desenvolvimento do comércio exterior e da marinha inglesa. Quanto à esfera produtiva, se antes dos movimentos revolucionários, as tarifas alfandegárias eram simplesmente instrumento de arrecadação tributária, a partir de então passaram a ser utilizadas como meio de proteção a produção.
A indústria algodoeira surgiu como um subproduto do comércio ultramarino, conquistando o mercado europeu com uma imitação do tecido indiano. Com a proibição da importação da chita indiana garantiu-se a substituição para a indústria algodoeira nativa, mas era ainda o comércio ultramarino que garantia o crescimento do setor, os escravos africanos eram adquiridos por tecidos ingleses, principalmente quando as guerras ou revoltas na Índia impediam que a indústria desta viesse a jogar esse papel (8).
A América Latina veio a depender das importações britânicas durante as guerras napoleônicas e depois os movimentos de independência se atrelaram à Inglaterra. Já a índia foi totalmente desindustrializada passando de exportador a consumidor do algodão de Lancashire. O avanço sobre o comércio oriental se completou com o fim da resistência chinesa, graças à exportação do ópio para todo o oriente, imposto pela força entre 1815 e 1842.
Em 1830 a indústria e a fábrica moderna eram quase exclusivamente as áreas algodoeiras do Reino Unido. Em princípios de 1840 conheciam-se os problemas gerados pelo crescimento e as agitações revolucionárias levaram a uma desaceleração no ritmo inicialmente apresentado. Com o acúmulo da primeira geração da revolução industrial veio a necessidade de novos investimentos, que acabaram sendo absorvidos pela construção de estradas de ferro. Estava então consolidada a retomada de impulso quase vertical da economia inglesa.
A ação de difusão do capitalismo viabilizada pela livre concorrência obteve suas mais expressivas vitórias em Canadá, Austrália e Nova Zelândia. A inexistência de resistências internas permitiu que os colonizadores rapidamente exterminassem os nativos, abrindo assim um verdadeiro vazio social no qual a livre concorrência pôde moldar o surgimento de novas sociedades. Dessa forma, emigrantes europeus e capitais ingleses puderam organizar, através de pequenas propriedades ou do trabalho assalariado, uma estrutura produtiva que desde suas origens estava voltada para o comércio externo.
Pujantes economias capitalistas exportadoras de matérias primas e de alimentos foram sendo conformadas e conseqüentemente também nestes domínios a política livre cambista foi adotada.
Com a afirmação do modelo original do capitalismo, o novo modo de produção espalhou-se em outros pontos do globo. Carlos Alonso Barbosa de Oliveira chama de capitalismo atrasado os modelos desenvolvidos por EUA, França, Alemanha, Japão, Rússia, etc (9).
As colônias inglesas da América do Norte tiveram na contradição entre o sul exportador – que adotou uma política agrícola semelhante à que se conhecia nas colônias portuguesas e espanholas, voltadas para produtos tropicais complementares ao mercado europeu – e o norte – baseado no modelo da pequena propriedade voltada para a produção de subconsumo que acabou funcionando ao fornecimento de alimentos para o setor agro-exportador – o surgimento de um mercado interno capaz não apenas de fazer circular a riqueza, mas também fez gerar um desenvolvimento endógeno no interior do próprio sistema colonial (10).
Apesar da importação de produtos ingleses, os altos custos de transporte e a favorável dotação de recursos permitiam vigoroso desenvolvimento de certos ramos do artesanato e manufatura, tais como os moinhos de cereais, a construção naval, a manufatura de alimentos e bebidas, a mineração do ferro e a metalurgia; também o sistema de putting-out implantou-se no campo.
Na conjuntura das guerras napoleônicas, a destruição das marinhas dos países continentais e a posição de neutralidade dos Estados Unidos criaram as condições para a entrada de mercadores americanos em praticamente todos os portos da Europa.
A Revolução varreu radicalmente a superestrutura do antigo regime na França. Os direitos feudais foram abolidos na agricultura e firmou-se uma sólida organização camponesa da produção. As regulamentações gremiais da produção artesanal foram revogadas e os privilégios das grandes companhias, suprimidos. Após as guerras napoleônicas, as tarifas foram reduzidas, mas continuavam altas, oferecendo proteção tanto ao artesanato e à manufatura quanto à agricultura.
A manufatura ganhou impulso, um moderno sistema bancário foi sendo criado e, tal como nos Estados Unidos, a indústria têxtil implantou-se, sem, entretanto, revolucionar a estrutura da economia. Dessa maneira foram sendo criadas as condições para que a industrialização se desencadeasse na década de 1840.
Os alemães não haviam ainda resolvido a questão nacional e conformavam pequenos Estados autônomos, na maioria dos quais ainda com base na servidão. As sucessivas derrotas políticas sofridas pela burguesia alemã culminaram com a vitória das forças conservadoras em 1848.
Os Estados absolutistas apoiados na nobreza iniciaram no século XIX um lento processo de eliminação dos entraves ao avanço do capitalismo e as reformas foram sendo implantadas sempre preservando os privilégios das antigas classes dominantes. Assim, a burguesia, apesar de não deter o poder político, obteve concessões dos governos conservadores.
Uma segunda onda de industrializações atrasadas aconteceu entre (1873-1896), alcançando Rússia, Japão etc.
O Japão constituía um Estado nacional no qual se desenvolvia o capitalismo a partir do regime feudal que se decompunha. A restauração Meiji criou as condições para a execução de um programa de reformas. As reformas estabeleciam ainda a igualdade formal entre os cidadãos e, sob a inspiração do ocidente, firmava-se uma nova ordem jurídica.
O financiamento da industrialização dependeu da ação do Estado. O governo garantia a rentabilidade mínima das companhias de estradas de ferro, construía ele próprio ferrovias, investia diretamente na indústria e na mineração, subsidiava ou garantia encomendas a certos ramos da indústria etc. Entretanto, a implantação do parque industrial dependeu também da ação do capital bancário e também aí se manifestava a presença fundamental do Estado, através da fundação de bancos oficiais, fornecendo recursos para a fundação de bancos etc.
Ao final do século XIX, a exportação de capitais, fenômeno decorrente da queda da taxa de lucros, lançou os tentáculos da forma de produção e reprodução da sociedade burguesa para os quatro cantos do mundo. Além dos processos originários, e atrasados, vieram as formações tardias, aprofundando a divisão internacional do trabalho e o abismo entre ricos e pobres no mundo contemporâneo.
Por outro lado, além do exposto, é mister salientar que em mais de 250 anos de história, tal modo de produção passou por revoluções técnico-científicas, reproduziu-se a ponto de transformar o mundo em um verdadeiro “cassino”: a real face do sistema capitalista moderno sob a predominância do capital financeiro.
Ricardo Moreno é historiador e professor.
Notas
(1) Marx analisou assim chamada acumulação primitiva de capital no livro 1 d’O Capital, onde a classifica como a pré-história do capitalismo.
(2) Carlos Alonso Barbosa de Oliveira lembra que as cidades alemãs e italianas não foram capazes de manter o domínio que exerciam sobre determinados circuitos mercantis.
(3) João Fragoso discute os limites do capital mercantil português para justificar a tese de desenvolvimentos endógeno brasileiro.
(4) Celso Furtado compara as formas de colonização nas Américas e apresenta a colonização portuguesa como a mais adequada aos interesses metropolitanos.
(5) Ver Carlos Alonso Barbosa do Oliveira.
(6) Ver Eric Hobsbawn.
(7) Essa evolução é explicada por varias razoes: Em primeiro lugar, o clima ideológico e político do antigo regime Frances levava os novos proprietários de origem burguesa adquirirem da antiga nobreza, cuja tendência sempre fora aumentar as cargas feudais; o mais baixo grau de mercantilização da produção do campo e a menor diferenciação social e econômica entre os camponeses não permitiam a generalização do arrendamento capitalista; onde surge o arrendamento capitalista na França o empresário não era um camponês enriquecido, mas geralmente o arrendatário de censos e cargas devidas pelos camponeses, acumulando estas funções coma direção da grande empresa capitalista; assim como na Inglaterra antes dos movimentos revolucionários, na França do antigo regime os camponeses gozavam de certa proteção pelos tribunais reais, contra as arbitrariedades da nobreza.
(8) Ver Eric Hobsbawn.
(9) Carlos Alonso Barbosa de Oliveira classifica os modelos de formação capitalista de originários e atrasados.
(10) Celso Furtado discute a formação deste mercado nos EUA. Compreendendo-se daí o fenômeno do crescimento da autonomia das colônias inglesas na America do Norte.
Referências bibliográficas
HOBSBAWN, Erick. A era das revoluções. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
FRAGOSO, João Luis Ribeiro. Homens de grossa aventura: a hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1970-1830). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
FURTADO< Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1997.
KAHHALE, Edna; PEIXOTO, Madalena Guasco; Gonçalves, Maria da Graça. “A produção do conhecimento nas revoluções burguesas – aspectos ligados à questão metodológica”. In Kahhale (org.). A diversidade da psicologia: uma construção teórica São Paulo: Cortez, 2002.
MARX, Karl. O Capital: critica à economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
OLIVEIRA, Carlos Alonso Barbosa de. Processo de industrialização – Do capitalismo originário ao atrasado.
EDIÇÃO 79, JUN/JUL, 2005, PÁGINAS 18, 19, 20, 21, 22