Objetiva e subjetivamente está em marcha uma nova luta pelo socialismo. Mais precisamente, uma jornada de acumulação de forças pela retomada do processo revolucionário. Esse período que assim caracterizamos instaurou-se evolutivamente a partir da queda dos governos do Leste europeu e da dissolução da União Soviética, no triênio 1989-91.

Desde a publicação do Manifesto do Partido Comunista, por Marx e Engels em 1848, a luta pela superação do capitalismo e sua substituição por uma sociedade mais avançada, passaram-se 157 anos. As primeiras experiências concretas de socialismo iniciaram-se há 88 anos. Do ponto de vista histórico, um período curto para que o socialismo pudesse superar o capitalismo.

A revolução Russa de 1917 e a constituição da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS); a instauração de governos avançados e socialistas no Leste da Europa no período pós-II Guerra Mundial; e ainda as revoluções na China, no Vietnã, em Cuba e em outros países formaram um amplo campo socialista. Todavia, esse campo, com tal dimensão, do ponto de vista do relógio da história teve uma vida efêmera: 72 anos. O Comecom, por exemplo, teve poucas décadas de vida útil.

Ao empreendermos esforços para a retomada de um processo transformador temos de considerar três questões: as lições da experiência do primeiro ciclo socialista; o domínio, com maior rigor, do ponto de vista teórico e concreto, do capitalismo contemporâneo; e a situação atual do movimento transformador.

A relação entre esses itens – sobretudo, a relação entre as duas últimas questões – nos oferece as dimensões objetivas e subjetivas do que estamos denominando de nova luta pelo socialismo. De antemão argumentamos que essa etapa contemporânea da jornada libertária emerge, objetivamente, das contradições, dos paradoxos, da crise sistêmica do capitalismo e, simultaneamente, do grau alcançado de superação da denominada crise do socialismo.

Dissolução da URSS, derrota de longo alcance histórico

A União Soviética enquanto existiu foi uma grande experiência e deixou um significativo legado aos trabalhadores e à humanidade. Contudo, ela fracassou. Este fato se configura numa derrota de caráter estratégico. Apesar de China, Vietnã, Cuba e outros países terem mantido a perspectiva do socialismo e apesar de inúmeros partidos terem se mantido fiéis aos princípios revolucionários, instaurou-se um ciclo conservador contra-revolucionário que, para ser superado, exige uma resistência prolongada.

O histórico dirigente do PCdoB, João Amazonas, num encontro internacionalista, realizado em 1992, apresentou o seguinte juízo sobre essa quadra histórica: “Vivemos uma situação de generalizado abalo das convicções progressistas de transformação radical da sociedade. Estende-se o ceticismo, o desalento, as vacilações acerca da justeza das teorias de Marx, Engels, Lênin. Voltam à cena políticas velhas e ilusórias utopias de reforma do capitalismo, como saída para os irreparáveis desajustes originados da decomposição desse sistema”.

Seguiu-se a esse verdadeiro tremor de terra, o desafio de levantar do chão o projeto socialista. Reiniciar, do ponto de vista objetivo e subjetivo, uma nova etapa de acumulação estratégica de forças à retomada do processo revolucionário. A esse desafio é que denominamos “nova luta pelo socialismo”. Algo distinto, diferente, da jornada empreendida no século passado.

A crise que eclodiu tem uma envergadura superior a outras que o movimento transformador já houvera enfrentado. Não é a primeira e, provavelmente, não será a última. Entre situações semelhantes já enfrentadas, podemos citar o grande surto revisionista que se estabeleceu no âmbito da II Internacional, por volta da I Guerra Mundial. Lênin, à época, fez uma convocação ao conjunto dos revolucionários para superar a crise do marxismo e do próprio movimento revolucionário. Convocação que resultou em êxito.

Na atualidade tarefa semelhante tem de ser vencida. E a luta por esse objetivo se realiza num período histórico de “pacifismo” que carrega um condicionamento singular – a derrota das primeiras experiências históricas do socialismo.

O que é o capitalismo contemporâneo?

Entre os trabalhos a serem realizados pelas forças avançadas nesta fase de acumulação de forças destaca-se o desafio teórico e político de compreendermos de modo preciso e rigoroso a fase atual do desenvolvimento capitalista.

Vivemos uma fase expansiva – nunca vista –, da internacionalização do capital, porque engloba o mundo inteiro de forma bastante ampla. Internacionalização essa que vem do século antepassado. Esse movimento eleva ainda mais a concentração e a centralização do capital. Evidentemente, se há concentração e centralização do capital há poder também mais concentrado. A orientação que define o padrão de acumulação capitalista contemporânea é o neoliberalismo. É a época de predomínio do neoliberalismo. A essa fase da etapa de internacionalização do capital se convencionou chamar de globalização neoliberal.

O que é globalização neoliberal? É exatamente esta fase atual que incorpora o mundo inteiro ao capital de forma inédita através de um vasto e intenso processo de financeirização. Tal processo visa a dar livre acesso ao capital em qualquer parte do mundo. Nenhum óbice, nenhuma fronteira, ao capital. É a época do auge do capital financeiro, a desregulamentação que permite esse ir e vir do capital financeiro. Para isso se impôs a abertura das contas de capitais nos diversos países para facilitar esse livre trânsito.

O problema é justamente este: a internacionalização do capital – já assinalada por Marx e posteriormente por Lênin, que chega a um nível nunca visto. Portanto, vivemos uma espécie de apogeu do capital financeiro.

Dessa lógica econômico-financeira deriva uma nova política de dominação: o neocolonialismo que representa, num plano, uma pressão ainda maior para submeter os países soberanos e, noutro, um crescente aviltamento dos direitos dos trabalhadores.

Disso deriva o bombardeio teórico, político, ideológico para debilitar os Estados nacionais. Daí a justa hierarquização da centralidade da questão nacional, questão teórica e política relevante – sublinhada, inclusive, por importantes intelectuais como Carlos Lessa e Maria Conceição Tavares.
A lógica do capital financeiro – o lucro máximo –, neste apogeu de financeirização, eleva sobremodo a exploração sobre o trabalho e gera a contenção do trabalho vivo – e desemprego estrutural, crônico, em elevação.

Acirramento de contradições e paradoxos

Esse quadro de dependência e exploração crescente leva a um aguçamento das contradições de todo o sistema. As forças produtivas crescem como nunca, mas o sistema é incapaz de incluir maiores parcelas da população para auferir os resultados desse desenvolvimento, provocando maior exclusão.
A riqueza, o poder, a ciência, a tecnologia, o consumo, o poderio militar são centralizados num restrito círculo de grandes potências. Noutro pólo, um grande número de países e povos se movimenta em ações diplomáticas e comerciais sob as bandeiras do direito à soberania e ao desenvolvimento.

Esse aguçamento das contradições cria as condições para que o emergir da exigência de uma nova e superior forma de organização econômica, política e social se imponha.

Objetivamente!

O capitalismo instaura um paradoxo. Vivemos uma situação em que as forças produtivas, desenvolvidas pelo capitalismo, chegaram a um nível extraordinário, também nunca visto na história. Contraditoriamente, a exclusão, a marginalização do povo e dos trabalhadores dos frutos do desenvolvimento ocorrerá quanto mais forem desenvolvidas a ciência, a tecnologia e a capacidade real de produção, mantidas as relações de produção capitalista.

O sistema é cada vez mais impotente para dar resposta às aspirações da grande maioria da humanidade a uma vida digna. Muito ao contrário. O trabalho vivo é contido. Ocorre crescentemente a expansão do desemprego estrutural, crônico. Efetiva-se uma hipertrofia da esfera financeira em detrimento da produção, gerando, com isso tudo, esse quadro, que permeia o mundo – o Brasil é exemplo disso – de especulação, parasitismo, rentismo. Fenômenos esses nada mais do que sintomas de um sistema ultrapassado.

Evidentemente, esse quadro gera uma crise social e existencial avassaladora no mundo. Ao se
condenar amplas camadas das massas à marginalização, irrompe-se a barbárie.
Barbárie essa que leva o imperialismo a lançar cada vez mais o uso da força, da militarização, da guerra, da agressão para impor sua hegemonia.

Tudo isso são sintomas de um sistema decadente. Mas não quer dizer que o mesmo possa cair num curto espaço de tempo. Mas, historicamente, é um sistema decadente. E quanto mais tempo o capitalismo permanecer na cena da história, maior a possibilidade do crescimento dos horrores da barbárie.

O socialismo emerge dessa realidade objetiva

Como reação a esta realidade, crescem o anseio e a exigência de uma nova formação econômica, política e social superior – exatamente o socialismo, ou as diversas formas que possa tomar esse processo de socialização. Ressaltamos o aspecto de que objetivamente existe a exigência histórica de uma formação política, econômica e social superior ao capitalismo, independentemente de nossa vontade.

Mas, para tanto não basta existir essa realidade objetiva que leva à crise do próprio sistema. Se não houver crescimento e amadurecimento do fator subjetivo, do fator consciente, para se empreender um processo transformador, o capitalismo espontaneamente encontrará suas saídas econômicas e políticas. Se não houver esse fator subjetivo transformador, revolucionário, com grande influência e largo prestígio político, que englobe e organize os trabalhadores e as grandes massas para se contraporem em todos os níveis ao fator dominante conservador e aproveite as oportunidades históricas para que se possa superar o atual sistema, este perdurará, seguirá existindo.

E ao persistir na história, o capitalismo faz eclodir o que Engels denominou de barbárie. As saídas econômicas do capitalismo para contornar suas crises provocam crises sociais cada vez mais dramáticas. O capitalismo demonstra-se cada vez mais imprestável ao progresso social. Por sua lógica intrínseca as alternativas que ele engendra são negativas e destrutivas em sentido amplo – tanto aos povos e aos trabalhadores quanto à natureza.

Contudo, é inútil e anticientífico nutrir qualquer perspectiva de uma espécie de implosão do capitalismo. Mesmo que tenha no geral um sentido anti-social, antinatureza, o capitalismo se não for confrontado no âmbito mundial e no âmbito de um país determinado por uma poderosa força social e política transformadora, poderá, como fez até hoje, seguir seu itinerário de mais desigualdades e marginalização social.

Qual a situação do movimento revolucionário e transformador?

A superação do capitalismo e o surgimento de uma formação econômica, política e social avançada exigem a existência e a ação de forças políticas que tenham clareza e convicção do projeto histórico que defendem. Tais forças precisam ter raízes e liderança política entre as massas populares e os trabalhadores para que sejam capazes de liderar um processo de ruptura do capitalismo. Forças com prestígio e grande influência política.

Assim se deu no século passado, quando os bolcheviques alcançaram seu grande prestígio, sua grande autoridade, sua grande influência. E eles souberam, exatamente com uma orientação correta, aproveitar um momento histórico favorável e conduzir a revolução a bom termo.
Para aferir a situação do movimento temos de levar em conta as lições extraídas do primeiro ciclo histórico do socialismo e o nível atual de correlação de forças.

Quanto às lições, sublinhamos que a capacidade do movimento revolucionário de aprender com os erros, de não se aferrar aos dogmas que se revelaram um desastre, foi determinante para o soerguimento de suas ações. Resumidamente, citamos três dessas lições: inexistência de um modelo universal (único) de socialismo; não há trânsito, passagem direta à construção socialista após a conquista do poder político, sobretudo, nos países de capitalismo dependente; e, para, se iniciar o processo de transição do capitalismo ao socialismo é imperativo que forças avançadas comprometidas com este projeto conquistem o poder político e alcancem a hegemonia.

Quanto à correlação de forças, inicialmente sublinhamos que não podemos subestimar a capacidade das forças dominantes do capitalismo e dos seus aparatos que impedem o avanço para a nova sociedade. Eles souberam se reorganizar e se refazer do golpe recebido com as revoluções proletárias do século XX e impuseram à humanidade – com base na força bruta e na pressão ideológica – o fomento de uma onda conservadora que ainda prossegue.

A reeleição de Bush nos Estados Unidos simboliza o respaldo social, numa sociedade capitalista avançada, a uma corrente obscurantista e conservadora. Outra face disso é a prevalência do neoliberalismo na Europa mesmo quando há vitória de correntes social-democratas. Mais recentemente houve as chamadas “revolução das rosas” na Geórgia e “revolução laranja” na Ucrânia e em outros países da ex-União Soviética, que têm levado ao poder forças vinculadas aos países imperialistas do ocidente, aos Estados Unidos.

Todos esses elementos demonstram que a onda conservadora ainda prossegue.
Por isso, o grande desafio das forças de transformação revolucionária, fora do poder, evidentemente, é terem de lutar para a conquista do poder numa tentativa de retomada do processo revolucionário.
Os processos revolucionários, transformadores, dependem da deflagração de profundas mudanças e de grandes acontecimentos em escala mundial, mas o curso revolucionário se dará nos marcos das realidades específicas, peculiares, de cada país.

Época de acumulação de forças

A derrota histórica das primeiras experiências socialistas e o ascenso de uma onda conservadora de longa duração nos levaram a um processo de acumulação e construção estratégica de forças avançadas a partir do nível da batalha política em curso.

Se não houver essa compreensão não sairemos do lugar e podemos perder a perspectiva. Por essa razão, o desafio dessas forças que se colocam numa posição de conquista do poder é construir uma ampla base política e social, procurando, evidentemente, buscar os aliados do proletariado, não só fundamentais, mas também conjunturais, para conseguirem o êxito.

A acumulação estratégica de forças é um processo que passa pela compreensão de frentes amplas, pela capacidade de unir amplas forças sociais e políticas, mesmo com aliados temporários e, evidentemente, com os aliados fundamentais.

Esta correlação de forças condiciona a atuação não apenas dos partidos revolucionários dos países capitalistas, mas também a dos partidos que estão no poder e mantêm com firmeza e a habilidade a perspectiva do socialismo. Eles tiveram de fazer flexões importantes para não perder seu objetivo maior. Cuba, China e Vietnã tiveram, por exemplo, de fazer não apenas flexões táticas, mas também flexões estratégicas.

Hoje, estes partidos comunistas em conjunto com os povos e os trabalhadores de seus países se concentram no desenvolvimento contínuo de suas economias, tendo em vista a rápida expansão das forças produtivas. São países ainda relativamente atrasados. Esse é o grande desafio deles. Vivem, portanto, um quadro de acumulação, de construção estratégica de forças nas condições de países em vias de desenvolvimento.

No Brasil, concretamente, nos dias atuais o PC doB participa ativamente da luta pela superação do neoliberalismo e pela implementação de um novo projeto nacional de desenvolvimento. Temos a convicção de que o alcance desses objetivos tático-estratégicos nos aproximará da conquista do objetivo maior.

No curso dessa luta, buscamos construir um partido com características e propriedades para disputar a hegemonia entre as forças avançadas. Um partido grande e influente, com uma estrutura de quadros preparados, engajado no movimento de massas, enraizado no proletariado e presente na luta dos trabalhadores. Um partido leninista, contemporâneo, que, com originalidade e criatividade, reafirme os princípios e renove formas, métodos de estruturação e ação política.

Renato Rabelo é presidente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB).

EDIÇÃO 79, JUN/JUL, 2005, PÁGINAS 38, 39, 40, 41, 42