Na história da humanidade, o mundo nunca foi dominado por uma potência como os EUA, que deixa para trás qualquer adversário ou potencial concorrente e, com o fim do contrapeso soviético e as possibilidades sem precedentes oferecidas pela tecnologia militar e de comunicação, pode alcançar o que quiser, quando quiser, podendo estender um tapete de bombas a quem a incomode, desagrade ou simplesmente esteja em lugar errado. Pode também dominar economicamente ou matar de fome os povos. De acordo com o caso, utiliza classificações como “direitos humanos”, “democracia contra a ditadura”, “luta contra o terrorismo” ou “Estados-crápula”. Pode acionar instituições internacionais que lhe sirvam e dispensá-las quando se transformarem em obstáculos, a seu bel-prazer.

Os Estados Unidos, potência única, mas por quanto tempo?

Esse império está fadado a 1.000 anos de “prosperidade”? Na sua última obra, o famoso estrategista americano Zbigniew Brzezinski, expressava uma convicção contrária: “a hegemonia mundial americana está estabelecida. […] Mas, para qualquer potência, o declínio é inevitável” e, no final, “mesmo se distante, a hegemonia mundial da América será erodida”.

Portanto, é só uma questão de tempo. Prolongar a vantagem o máximo possível. Tirar proveito dessa “fase histórica transitória”. Os Estados Unidos só terão diante de si uma janela de oportunidades conferida pelo estatuto histórico-estratégico de sua hegemonia: ao mesmo tempo em que declinarão em longo prazo (a parte dos Estados Unidos no PNB mundial passou de 50%, em 1945, para 22%, em 2004), acabarão por aumentar nitidamente o fosso que os separa de todos os seus oponentes juntos.

É essa dupla circunstância que torna sua agressividade tão flagrante, universal e premente, levando a compensar tecnológica, militar e estrategicamente o lento declínio em curso. Essa agressividade utiliza diferentes instrumentos. Submeter os Estados, enfeudá-los na medida do possível, destruí-los ou retalhá-los se resistirem, colonizá-los de novo quando for indispensável. Controlar as fontes estratégicas do planeta. Manter o avanço tecnológico e militar. Seria uma via real? Os dissabores encontrados no Afeganistão e principalmente diante da resistência iraquiana mostram o contrário: obstáculos cada vez mais sérios.

Esses dois campos de batalha apresentam também a vantagem de revelar a manipulação no centro da relação de forças internacionais no século XXI. Na verdade, lembra Brzezinski, o “torneio pela supremacia global” é disputado “na Eurásia, o maior continente do globo, onde vivem 75% da população mundial e onde se concentra uma grande parte da riqueza do mundo, tanto industrial quanto de recursos naturais. O que equivale a 60% do PIB mundial e três quartos dos recursos energéticos conhecidos”.

Ora, não se trata de uma coincidência que no centro desse grande continente “o ritmo do crescimento econômico e o montante dos investimentos estrangeiros, os maiores do mundo, permitiram estabelecer que daqui a aproximadamente vinte anos a China irá se tornar uma potência mundial da mesma envergadura, ou quase, que os Estados Unidos ou a Europa […], o que representaria não apenas o Estado dominante do Extremo Oriente, mas também uma potência global de primeira ordem”, como escreveu Zbigniew Brzezinski.

Mais depressa do que teriam imaginado num primeiro momento, só alguns anos depois da queda da União Soviética, os Estados Unidos já sentem, em um horizonte de aproximadamente duas décadas, surgir um novo adversário à altura e que talvez seja melhor respaldado do ponto de vista das alianças internacionais. Assim, o paradoxo da história seria representado pelo fato de, após terem vencido o país-símbolo do socialismo e do comunismo no século XX, os Estados Unidos se encontrem de novo, no século XXI, diante de um adversário que ostenta aqueles mesmos valores.

Os EUA poderiam aparentar satisfação, com o sentimento de ver suas certezas confortadas no coração desse gigante histórica e culturalmente tão diferente e – por que não? –, convencerem-se de que o tempo trabalha a seu favor, conforme lhes prometia a profecia do “final da história”. No entanto – com exceção de algumas raras expressões de retórica flácida –, não é nada disso.
Diretor de Geopolítica da Escola de Guerra, Aymeric Chauprade explica o sentimento de inquietação americana: “vê-se muito bem que a China é o objeto principal de sua obsessão, e a estratégia global dos Estados Unidos busca neutralizar a emergência desse gigante” que “representa um bilhão e 400 milhões de pessoas. Essa massa enorme ainda se mantém ao abrigo do capitalismo mundial”.

Cara a cara com uma China modesta e pacífica, mas cada vez mais forte

Contrastando com o sentimento americano de potência – mesmo atenuado pelo íntimo pavor que a China emergente lhe inspira –, a visão chinesa aparece sob uma serenidade impregnada de paciente modéstia. Esse gigante de ritmo espantosamente crescente (mais de 9% ao ano em vinte anos), ritmo reforçado por sua resistência à crise asiática de 1997-1998, define-se como um simples país em vias de desenvolvimento. Sua política é de acumulação de conhecimentos (política de abertura), de bem-estar (com o objetivo de duplicar o PIB per capita até 2020) e de forças (modernização industrial, tecnológica e militar). A China atual se considera apenas na primeira etapa da construção do socialismo, que deve durar uns 100 anos!

A China não é mais aquela que denunciava o imperialismo como um “tigre de papel”. A visão chinesa oficial é pacífica e otimista: “a paz e o desenvolvimento são dois temas primordiais de nossa época. Salvaguardar a paz e promover o desenvolvimento constituem uma obra que concerne o bem-estar dos povos do mundo e traduz sua aspiração comum, e é também uma corrente histórica irresistível. A evolução do mundo para a multipolarização e a globalização econômica trouxe oportunidades e criou condições favoráveis à paz e ao desenvolvimento do mundo”, diz um documento oficial apresentado ao XVI Congresso do Partido Comunista da China em 8 de novembro de 2002.

Cara a cara e cooperação

Oficialmente, o cara a cara entre China e EUA não foi acionado por nenhum dos lados. A escolha feita, há tempos, é de estreitar a relação e a qualidade da cooperação.

Em inúmeros pontos eles são muito diferentes, até mesmo opostos. De um lado, a potência americana dominada pela burguesia impregnada de cristianismo conservador e messiânico. Do outro, uma elite política forjada em um partido marxista-leninista, ateu, em uma população impregnada de taoísmo, budismo e confucionismo. De um lado, uma jovem nação fundada há alguns séculos e campeã mundial do “curto termismo”. Do outro, uma civilização antiga, de 5.000 anos, que atrela seu comportamento em longo prazo. País urbano de um lado, rural do outro. Para os EUA, a guerra é sempre na terra dos outros; para a China é quase sempre em seu território.

Mesmo assim, a cooperação entre os dois países cresceu nas últimas décadas. Esse movimento favorece e é favorecido pela opção da China, principalmente desde 1995, de participar ativamente do multilateralismo, aderindo à OMC. A potência comercial da China é um acontecimento primordial de nossa época. Em 2004, ela tornou-se a terceira exportadora mundial. Há sete anos, mal chegava ao
décimo lugar.

Nitidamente, o peso crescente das trocas entre os dois países (que se multiplicaram por 50 desde 1979) favorece a China, o que suscita nos Estados Unidos uma campanha de hostilidade. Em 2003, o comércio com os EUA era cerca de três vezes mais favorável aos chineses: 92,5 bilhões de dólares em exportações contra 33,8 bilhões de dólares em importações, ou seja, um excedente de cerca de 59 bilhões de dólares (mais de 25% em um ano).

Hoje, o peso dessas trocas permite à China armazenar enormes reservas em divisas americanas: mais de 500 bilhões de dólares (contra 200, em 2001) – montante superior ao dos investimentos estrangeiros recebidos na última década. Entre 1991 e 2001 a China atraiu 370 bilhões em investimentos estrangeiros diretos, dos quais 75% provinham da Ásia, sendo 50% de Hong Kong, e dos quais um quarto poderia vir da própria China popular. Os EUA só detêm 8% desse total, assim como a União Européia.

EUA: potência, cerco e controle geoestratégico

Se a vontade hegemônica americana é compartilhada por toda a elite político-econômica, no entanto, podem-se distinguir dois pólos de influência na política externa dos Estados Unidos. Um dos pólos inclina-se à “realpolitik”; o outro, ao espírito de “cruzada”. A “realpolitik” é mais favorável aos democratas, apoiada por personalidades como Zbigniew Brzezinski e Madeleine Albright. O espírito de “cruzada” marca principalmente a direita republicana, “neoconservadora”, que influencia diretamente George W. Bush. Esta corrente acusa a “realpolitik” de ter dominado a política externa desde a guerra do Vietnã, a partir de um complexo nascido dessa derrota, de não acreditar suficientemente nos “valores da América” e de não ter coragem de utilizar plenamente sua “potência”.

Mas a diferença é de método, não de objetivos. É forçoso constatar que, ao contrário do resto de sua política externa, a política chinesa dos EUA continua dominada pela abordagem da realpolitik, propensa a não exagerar o perigo chinês, como ilustra um relatório sobre a capacidade militar chinesa, revelado pelo jornal Washington Post, em 22 de maio de 2003.

A posição americana realista prefere não entrar prematuramente em um enfrentamento direto com a China, mas aproveitar os vinte próximos anos para ganhar depois. Julga-se que um enfrentamento prematuro seja muito arriscado. Parece um jogo, no qual deve-se sair ou dobrar a aposta. Os EUA engendram uma estratégia de cerco. Ao dispor de aliados a leste da China (Coréia do Sul, Japão, Taiwan), eles fecham o círculo a oeste, ao aproveitar a desagregação da URSS e ao tomar pé no Afeganistão.

A estratégia petrolífera americana visa, por seu lado, ao calcanhar de Aquiles da economia chinesa: o extraordinário aumento de suas necessidades energéticas, que leva a uma dependência crescente diante das importações. Realmente, um quarto do crescimento do consumo petrolífero mundial é de origem chinesa. A China, deficitária desde 1993, é hoje o segundo importador mundial. Enquanto ela tenta diversificar suas zonas de provisão, os Estados Unidos procuram tomar o controle (Iraque).

China: multipolaridade, interdependência e modernização

A estratégia chinesa é simétrica à americana: a multipolaridade diante da hegemonia, a interdependência diante do controle unilateral sobre os recursos estratégicos, a modernização para reduzir a defasagem entre as duas potências.

A Aliança sino-russa e o Grupo de Xangai

Durante boa parte da Guerra Fria, a deterioração das relações sino-soviéticas favoreceu a potência americana. Hoje, o tratado de aliança sino-russa, assinado em 16 de julho de 2001 por Jiang Zemin e Vladimir Putin – o primeiro acordo desse nível desde o de 1950, assinado por Josef Stálin e Mao Tsetung –, é o símbolo de uma mudança completa na natureza das relações entre os dois países, com reflexos mundiais, criando uma relação privilegiada que também permitiu construir um espaço de cooperação de Xangai e que reúne, além desses dois países, o Cazaquistão, o Tadjiquistão, o Quirquistão e o Uzbequistão.

O espaço asiático: espaço natural

Se os EUA e a China concordam quanto à importância estratégica da Ásia, a China, por sua vez, dispõe de um argumento suplementar, que é um trunfo: ela opera em um ambiente natural, do qual é o verdadeiro coração.

Diante de seu entorno (uns trinta Estados), a China multiplicou os sinais e as iniciativas de boa vizinhança, abrindo grandes concessões para favorecer as relações amistosas com seus vizinhos. “Desde 1991, a China solucionou os conflitos fronteiriços com Cazaquistão, Quirquistão, Laos, Rússia, Tadjiquistão e Vietnã e, às vezes em termos desvantajosos para ela”, para resolver, “por exemplo, o longo conflito nas montanhas de Pamir, que o Tadjiquistão herdou da União Soviética, do qual a China aceitou apenas 1.000 dos 28.000 km2 contestados”, dizem Evan S. Medeiros e M. Taylor Fravel, em artigo publicado na revista Foreign Affairs, em novembro/dezembro de 2003.

Nesse contexto, a China cultiva suas ligações em particular com seus vizinhos socialistas. As relações com o Vietnã reforçaram-se de maneira muito nítida. Ela tornou-se a terceira parceira comercial do Vietnã. As relações políticas intensificaram-se, inclusive no plano teórico, com seminários anuais a respeito do socialismo, entre os dois partidos. As relações com a Coréia do Norte, por ocasião dos colóquios sobre um eventual desarmamento nuclear, revelaram uma China a desempenhar um papel de primeira grandeza nas intermediações com os Estados Unidos, sem deixar de lado sua firmeza em relação à soberania coreana.

As relações com o Japão, por sua vez, apesar de alguns esforços, continuam imbuídas de uma desconfiança mútua, alimentada pela história e pela recente competição. O Japão é o principal aliado dos Estados Unidos e de Taiwan na região e, atualmente, seu orçamento militar é o segundo do mundo.

Com o Sul

A China tampouco esqueceu sua velha estratégia de tecer uma sólida rede com os países mais pobres, sendo o episódio mais espetacular o fracasso da conferência da OMC em Cancun, em 14 de setembro de 2003, com a intervenção do G21, conduzido por Brasil, Índia, África do Sul, englobando 90 países pobres.

A evolução recente e autônoma do sub-continente latino-americano, que se desvencilha progressivamente da tutela americana, oscilando entre esquerda e centro-esquerda, provocou naturalmente verdadeiras convergências para uma China surgida como o indispensável contraponto à potência americana. Com o Brasil, dirigido por Lula, as relações deram um salto qualitativo.

Atualmente, ele é o principal parceiro comercial da China na América Latina. Além disso, toda a estratégia brasileira insere-se na construção de um contraponto concreto aos Estados Unidos. Quando de sua visita à China, em maio de 2004, o próprio Lula declarou: “O Brasil sempre aderiu à política de uma China única, e sustenta a posição chinesa a respeito de Taiwan e dos direitos humanos”.
A chegada ao poder de Chávez, na Venezuela, levou a uma melhora das relações que, hoje, compreendem os campos da energia, da agricultura e das questões militares.

As relações com Cuba melhoram em todos os campos. O fim da URSS custou-lhe a perda de 80% do seu comércio exterior. Hoje, a China é a 3ª parceira comercial de Cuba, atrás da Venezuela e da Espanha. A viagem chinesa a Cuba, em novembro de 2004, com os encontros de Hu Jintao e Fidel Castro, propiciou-lhe importantes acordos econômicos. A imprensa ressaltou certas declarações de Hu Jintao, saudando “o heróico povo cubano” e encorajando-o “a não capitular na via da construção socialista”.

Uma Europa adulada

A China julga a União Européia essencial. Na tríade dos países desenvolvidos é o ângulo mais atraente por ser, ao mesmo tempo, ameaçador; o menos contraditório e potencialmente o mais distante dos Estados Unidos. Mas a China também sabe que, nesse continente, ela pode contar com amizades e inimizades. A França aparece em primeiro plano entre os primeiros, com uma “associação de exceção”. Ela garante uma certa independência, de tecnologias avançadas, principalmente a nuclear. E quando a União Européia empreende um processo de acabar progressivamente com o embargo das vendas de armas à China, estabelecido após os eventos de Tian An Men, a França anunciou ser favorável ao fim imediato do embargo. É claro que, na Europa, a China começar a despertar alguns temores.

Pontos de atrito – Iugoslávia e Iraque: as estratégias à prova

Pode-se medir melhor as estratégias, mesmo as de grande porte, com um dos grandes acontecimentos internacionais. É o caso das duas maiores crises da década: a crise iugoslava e a crise iraquiana. Geralmente, conhece-se bem melhor a posição e a estratégia americanas do que as chinesas. A atitude americana foi relativamente simples e identificável em três fases de ofensiva planejada, com a Iugoslávia e o Iraque como exercícios aplicados. Os Estados Unidos colocam-se com gosto no centro do dispositivo midiático, político e militar, assumindo sem complexo sua posição hegemônica.

Em 1999, a China defendeu as posições da Iugoslávia, principalmente quanto à integridade territorial e Kosovo. Durante a guerra, o bombardeio da embaixada chinesa em Belgrado, pela OTAN, foi interpretado como uma advertência americana à China.

As relações da China com o Iraque datam da revolução de 1958, inaugurando uma “longa amizade” entre ambos, como lembrou o primeiro-ministro chinês em visita oficial a Bagdá, em 28 de janeiro de 2002. A China, ao mesmo tempo em que reclama que o Iraque aplica honestamente as resoluções do Conselho de Segurança da ONU para não deixar margem aos Estados Unidos, opõe-se firmemente à guerra, juntando-se à frente formada por Rússia, França e Alemanha, mas tomando cuidado para aparecer mais como um amparo fiel do que como um líder. “Deve-se manter um perfil humilde, nunca de líder”, dizia Deng Xiaoping. Sem dúvida, pareceu à China ser mais útil romper o campo capitalista, jogando com suas rivalidades internas, do que favorecer sua homogeneidade.

A unidade da China e de Taiwan

A China ficou marcada pela lembrança da humilhação nacional passada. Essa questão tem um impacto direto sobre as relações internacionais. A maneira como evoluirá refletirá o exato estado da relação internacional de forças.

Os vestígios do passado colonial, seqüelas dessa humilhação: Taiwan, Hong Kong, Macau. A Guerra Fria havia congelado a situação. Após o lançamento da política “um país, dois sistemas”, para garantir a integração dos recém-chegados à China popular, com a manutenção de seus hábitos econômicos e políticos, Hong Kong voltou ao domínio chinês em 1º de julho de 1997 e Macau em 20 de dezembro de 1999. As diferenças econômicas foram diluídas, dando vez a um tipo de lapidação centro-periferia, com uma periferia, como no resto do mundo, que sempre pode contar com um potencial aliado estrangeiro interessado em conservar a divisão da China, para melhor contê-la.

Mas a peça mais importante é Taiwan, com seus 23 milhões de habitantes. Se, como em Hong Kong, a China popular pode se apoiar nas forças locais de esquerda, aqui elas parecem mais modestas e, mais recentemente, o antigo rival Guomintang, favorável à unidade da China como Hong Kong, também reflete os interesses particulares de uma burguesia melhor integrada à China continental, que é a aliada potencial, prudente e mais notável. Por outro lado, esta enfrenta uma poderosa corrente pró-independência de Taiwan, apoiada de forma escancarada pelo Japão e os Estados Unidos.

Embora sejam obrigados a reconhecer a legitimidade da posição chinesa, os EUA também não podem abandonar uma posição estratégica tão próxima da China continental. Ora, hoje qualquer declaração de independência de Taiwan seria interpretada em Pequim como uma declaração de guerra e, provavelmente, seria tratada como tal, envolvendo os Estados Unidos no conflito.

Os direitos humanos

A pressão diplomática dos Estados Unidos quanto aos direitos humanos na China constitui uma outra peça forte, visando conter sua influência. Mesmo se a campanha diminuiu de intensidade desde os eventos de Tian An Men, os EUA sempre procuram condenar a China junto às instâncias internacionais. Mas esta pretende também agir de outra forma, procurando retirar dos Estados Unidos o direito de falar sem culpa em nome dos direitos humanos, e publica longos relatórios sobre os desrespeitos nos EUA, destacando as discriminações, principalmente sociais e raciais.

Sem risco de enfrentamento militar?

Nesse contexto, em 19 de setembro de 2004, Hu Jintao, secretário-geral do Partido Comunista da China e chefe de Estado há dois anos, foi nomeado ao posto que lhe outorgava a posição de incontestável número 1: a de presidente da Comissão militar do Comitê central do Partido Comunista da China. Ou seja, um posto político-militar que lembrava as origens revolucionárias do PCCh, mas lembrava também a este último um mundo com perigos.

George Bush, do outro lado do Pacífico, também gostaria de ser chamado de “Commander in chief” e mostrar, no Afeganistão e no Iraque, que não se tratava de um simples título honorífico, mas, principalmente, de dois terrenos de ação que se aproximavam muito claramente da China e de suas fontes de abastecimento energético.

A China, ao contrário dos EUA, desde 1979, quando interveio no Vietnã, não o fez militarmente e nem assentou bases militares pelo planeta. Pacífica, ela conheceu um quarto de século sem conflitos externos. Já durante o primeiro quarto do século de sua existência as tropas chinesas lutaram nas fronteiras com Coréia (1952-53), Índia (1962-63) e URSS (1969-70).

O clima de paz é mais propício ao desenvolvimento econômico chinês, enquanto o caráter predador do capitalismo americano favorece mais seu expansionismo. Assim, na China, como alhures, o contexto pacífico tem uma dimensão estratégica. A paz é a condição do desenvolvimento tecnológico e militar chinês. Só ela dá o tempo de preencher a defasagem e de restabelecer um equilíbrio estável. Além disso, o orçamento militar chinês aumenta atualmente em 18% ao ano, ou seja, duas vezes mais do que o seu PIB. A capacidade militar, quantitativa e qualitativamente, é fruto da potência econômica e tecnológica.

É também o resultado de um fator subjetivo. Costuma-se ressaltar a grande tradição chinesa em matéria de estratégia, a mais antiga conhecida até hoje, por meio dos famosos escritos de Sun Tzu, provavelmente do século IV a.C. Muitas das coisas escritas foram ensinadas a gerações de chineses e os americanos não as ignoram, pois elas inspiraram experiências generalizáveis.

Relações interpartidárias

Não se pode abstrair o fato de a China contar com um Partido Comunista totalmente imbricado com o Estado, mas que obriga a examinar sua própria diplomacia.

Ao contrário do ex-PC soviético ou do Partido do Trabalho albanês, não há nenhum vestígio na China da tentativa de criar um pólo internacional. Em contraposição, a última década foi de uma abertura considerável, pondo fim a uma situação que beirava o isolamento. As relações internacionais passam agora por um crescimento quase exponencial.

No final de 2004, o PCCh anunciou que mantinha relação com 400 partidos (comunistas, socialistas e de outras tendências) de 140 países, sendo 100 partidos de 34 países asiáticos.
Geralmente, verificam-se por trás dessa cartografia as marcas das relações construídas historicamente com os Estados e a preocupação em não descuidar de nenhuma grande força que tenha a vocação de exercer o poder. No entanto, é significativo que, entre os partidos comunistas, os dirigentes chineses mantenham relações não apenas com aqueles que exercem o poder ou que detêm posições importantes (África do Sul, Rússia, Índia, Japão), como também com formações modestas como as dos Estados Unidos e da Bélgica.

Diante dos partidos socialistas, o PCCh parece dar particular importância ao fato de eles terem se constituído em Internacional. Em 17 de fevereiro de 2004, um alto dirigente do PCCH, Huang Ju, encontrou o presidente da Internacional socialista, Guterres, para lhe propor, com sucesso, que intensificasse as relações bilaterais. Essa corrente política também é vista na China como a expressão de uma certa Europa com a qual as relações deveriam ser estrategicamente reforçadas.

A recente iniciativa tomada pelo Partido Comunista da China foi a 3ª conferência dos países asiáticos, de 3 a 5 de setembro de 2004, que reuniu (depois de Manilha, em 2000, e Bangkok, em 2002) 80 partidos políticos de todas as tendências. Um artigo chinês, Renmin Ribao (de 2 de setembro de 2004), expôs uma tipologia dos partidos políticos asiáticos, revelando seus quadros de análise, nos quais os partidos são subdivididos em cinco grandes famílias apresentadas em uma ordem que revela uma relação concêntrica de proximidade: 1. os partidos que continuam a reclamar do socialismo e do comunismo; 2. os partidos social-democratas; 3. os partidos nacionalista-democratas, os mais numerosos; 4. os partidos conservadores, que têm “um perfume de tradições liberais misturado a influências nacionalistas”; 5. os partidos com um ponto de vista claramente religioso. E o capitalismo?

E o socialismo?

O confronto e o espírito de cooperação entre a China e os Estados Unidos é central para o equilíbrio e a paz do mundo, além de garantir a sobrevivência da humanidade. É essencial para o respeito ou desrespeito das outras nações, o direito ou não do mundo ser plural. Para tanto, ela exerce uma influência na luta tradicional entre o socialismo e o capitalismo? Em que sentido? Sob que forma?
Em caso afirmativo, não se trata mais de uma luta de contrários em tudo, nem de uma oposição entre dois sistemas que queiram ser estanques, nem se trata de uma competição entre duas vitrines concorrentes que precisam ganhar mercado, mesmo se essas considerações não possam ser totalmente eliminadas do pensamento.

Com uma China que entra no mundo e o resto do mundo que entra na China, a questão da nova sociedade, como ela se colocava até os anos 1920, é do mundo inteiro e não de uma parte e menos ainda de sua única parte mais periférica e mais pobre. O fato de a China ter saído do isolamento tem um peso de quase um quarto da humanidade, cada vez mais interdependente, o que deslocou a questão para o centro do desenvolvimento humano.

As relações sociais internacionais e nacionais assim reconfiguradas, e por transformar em um desenvolvimento inevitável de suas contradições, revelam menos modelos de modos de produção “puros e perfeitos” e mais formações sociais complexas, historicamente definidas e internacionalmente determinadas, expressões de diferentes maneiras de imprimir à realidade objetivos similares ou fruto de compromissos de lutas de contrários.

Essa intimidade, nos laços vitais como nas contradições não menos vitais, acentua de uma parte a outra o caráter subjetivo das escolhas estratégicas. Nesse sentido, a economia aberta pressiona objetivamente as funções de guia das direções políticas (partidos, expressões de agregação de interesses econômicos e sociais reais), assim como a globalização reforça o peso e o papel de nações como atores subjetivos de ação e de reação.

De uma parte a outra do planeta emerge, assim, internacionalmente, aos poucos, um novo “príncipe moderno” à Gramsci e o cérebro da elite da nova armada “cruzada” – igualmente animados pela confiança com prazo no poder de subjugar o outro.

Há os que pensam que “aqueles que criticam Bush enganam-se quando pensam que nosso lugar no mundo consiste em algo diferente da dominação mundial. A América possui um poder e uma influência sem precedentes […], ela detém uma posição sem equivalentes desde a época em que Roma dominava o mundo mediterrâneo”, e seus “princípios econômicos, o capitalismo liberal e a livre-troca foram quase que universalmente aceitos como o melhor modelo possível para gerar riquezas, e a própria América está no centro da ordem econômica internacional. Seu sistema político, o da democracia liberal, se propaga por todos os continentes e por todas as culturas”.

O jornal do Exército Popular de Libertação chinês defende posição contrária: “a realização do comunismo é um processo histórico que se desenvolve de maneira não-linear. O desenvolvimento da sociedade humana sempre avançou por espirais e ondas. Nós devemos forjar o ideal de uma luta de longo fôlego e realizar uma boa preparação ideológica para enfrentar todas as formas de dificuldades e de fracassos. Se a causa comunista internacional continuar sofrendo fracassos, devemos nos manter prudentes nos momentos de perigo e sempre manter a convicção de que o socialismo triunfará e que o comunismo, com certeza, prevalecerá”.

Patrick Theuret é diretor da publicação marxista: Correspondências Internacionais.

EDIÇÃO 79, JUN/JUL, 2005, PÁGINAS 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59