Sob o signo de Narciso
A subjetividade que vigora sob o neoliberalismo está centrada no “EU”, na competição e no hedonismo – resultado das mudanças profundas do capitalismo e sua exigência de um homem educado para o consumo.
O cinema foi o veículo privilegiado da sensibilidade que seria dominante desde as décadas finais do século XX. Em Crônica de um amor louco (1981), de Marco Ferreri, o poeta Charles Serking, bêbado e trôpego, proclamava que “o fundamental é ter estilo!”. No final daqueles anos o professor John Keating declamava, em Sociedade dos poetas mortos (1989), de Peter Weir, o carpe diem, do poeta latino Horácio: “Vive o dia de hoje. Capture-o / não confie no incerto amanhã”. Keating impulsiona a rebeldia em um ambiente conservador e sua ética restritiva e autoritária, despertando nos alunos a descoberta da poesia como a “essência da vida” e o desejo de registrarem seus próprios versos neste longo poema que é a história humana. E, assim, ao criticar o saber alienado pregava a estetização da vida.
Refletindo mudanças que vinham desde a década de 1960, e às vésperas de transformar-se em neoliberalismo, a ideologia liberal traduzia-se em uma crítica social conservadora, voltada para o eu e pregando que é dentro de cada um de nós, nas profundezas solitárias do nosso coração, que aquela descoberta acontece; a saída é individual, não coletiva. Seu protagonista mais visível, naqueles anos revoltosos, foi o hippie, com suas viagens individuais pela mente, que o levava a um arremedo de sociedade alternativa de fôlego curto. Sua bandeira foi o individualismo e seu carpe diem foi o lema cada-um-na-sua. Ela floresceu na geração seguinte, em Wall Street e seus yuppies, conservadores, integrados socialmente, narcisistas, dedicados a viver intensamente suas vidas, sem limites éticos ou morais.
“O fundamental é ter estilo!” – esta frase soou como um programa, prenúncio de um modo de vida onde a arrogância e a alienação seriam a tônica. A estetização da existência, a relatividade absoluta como critério de verdade, a sacralização do consumo (de luxo, obviamente) como metas da existência. A vida como um eterno presente, a ânsia da juventude eterna, a busca frenética do prazer; o individualismo, o irracionalismo, o idealismo, estes são alguns dos traços da sensibilidade que emergia. Marcada pela fragmentação, pela rejeição do conhecimento objetivo, perda do sentido de continuidade histórica e do “senso de pertencermos a uma sucessão de gerações que se originaram no passado e que se prolongarão no futuro”, como disse Christopher Lash. Na política, o abandono dos projetos coletivos, da perspectiva progressista, da crítica ao capitalismo e da busca por uma sociedade avançada. O cidadão cede lugar, gradualmente, ao consumidor e o Estado (mais precisamente, o governo) deixa de ser uma instância de dominação de classe para ser um prestador de serviços.
Aqueles filmes registraram, no momento em que o neoliberalismo se difundia pelo mundo, o retrato de uma época marcada pela auto-proclamada vitória do capitalismo após a queda do muro de Berlim, vista como sinal da derrota final do socialismo e símbolo do fim da história, como proclamou o funcionário do Departamento de Estado dos EUA, Francis Fukuyama.
Mas, ao contrário do que pensam os apologetas do indivíduo, a consciência – ou a subjetividade, outra forma de designar a mesma realidade –, não surge no cérebro dos homens de forma espontânea nem é inata, mas resulta da interação entre cada ser humano com a sociedade e a natureza. “Será necessário uma inteligência profunda para compreender que ao mudarem as relações de vida dos homens, as suas relações sociais, a sua existência social, mudam também as suas representações, as suas concepções e os seus conceitos, numa palavra, a sua consciência?”, perguntavam Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista há mais de século e meio, registrando o axioma materialista e dialético de que é no contato com os outros homens, é nas relações sociais, que a consciência se desenvolve, e não há indivíduo, sujeito, subjetividade, sem existência social.
Em 1930, Vygotski, criador de uma psicologia materialista dialética, aprofundou a expressão dessa verdade. A psique – escreveu ele –, é “parte da própria natureza, ligada diretamente às funções da matéria altamente organizada de nosso cérebro”. Ela “não foi criada, mas resulta de um processo de desenvolvimento”, e “não deve ser considerada como uma série de processos especiais que existem em algum lugar como complementos acima e aparte dos cerebrais, mas como expressão subjetiva desses mesmos processos”.
A consciência reflete a organização da vida, e não há subjetividade à margem do tempo e da história. Ela é o resultado histórico da experiência concreta vivida pelos seres humanos nas diferentes épocas e sociedades. E as formas contemporâneas de sensibilidade e subjetividade exprimem a forma de viver dominante sob o capitalismo de nosso tempo, cuja expressão é o neoliberalismo.
Assim, o indivíduo de hoje e o individualismo que o caracteriza são o resultado da guerra de todos contra todos que se generalizou na época da crise histórica desse sistema – o capitalismo –, que exauriu sua capacidade de fazer a humanidade avançar e de satisfazer as necessidades (materiais e espirituais) dos seres humanos.
A atual hegemonia capitalista e o féretro de infelicidades e mazelas que a acompanha resultam de uma mudança de perspectiva marcada pela revolução comportamental da década de 1960 e pela dupla derrota do movimento operário nas décadas seguintes.
Muitos viram um caráter libertário e avançado na revolução dos anos 60. Ele existiu, sem dúvida – naqueles anos a agenda anti-racista se impôs nos EUA e, de lá, ganhou o mundo. As greves e lutas operárias, que tomaram toda a segunda metade daqueles anos – nos EUA e na Europa – e a rebeldia operária que varreu 120 cidades norte-americanas no “verão quente” de 1970, colocaram o combate à pobreza na ordem do dia. Corria paralelamente a luta das mulheres contra a opressão sexista e o levante estudantil –este, assolando o mundo, trouxe a juventude para o primeiro plano.
Mas aquelas lutas não conseguiram unir-se e o combate dos operários (que, muitas vezes, era também o dos negros nos EUA) seguiu paralelo à luta das mulheres e à dos estudantes. Daí os limitados resultados daquele esforço que, apesar de intenso, não formulou um programa anticapitalista comum e viável. Mas foram lutas que criaram as condições para a emergência, anos depois, da subjetividade contemporânea. Os EUA tornaram-se, nas décadas de 1950 e 1960, uma sociedade de consumo de massas, de abundância para as classes médias e de relativo bem-estar para os trabalhadores. A produção capitalista crescente impunha mudanças comportamentais que estão na base do abandono da ética do trabalho, que vinha desde os primórdios do capitalismo e impunha uma vida austera, módica, marcada pela poupança, e que já não correspondia às necessidades da reprodução capitalista.
Essa situação, que já havia se esboçado nas primeiras décadas do século XX, mas não prosperou devido à crise de 1929 e às duas guerras mundiais, exigia um tipo de cidadão (um homem novo) adequado às novas necessidades de reprodução do capital: o consumidor. Edward A. Filene, magnata das lojas de departamento de Boston, já havia previsto isso em 1919: “A produção de massa exige a educação das massas; as massas devem aprender a comportar-se como seres humanos em um mundo de produção maciça”.
Foi no mundo do pós-guerra, e na década de 1960 em particular, que esse homem novo do capitalismo contemporâneo emergiu, com seu hedonismo e sua ética do prazer e do consumo que – como mostrou Christopher Lasch – transformou-se em alternativa para o protesto e a rebelião. “A propaganda do consumo transforma a própria alienação em uma mercadoria” e, ao se dirigir à desolação da vida moderna, “propõe o consumo como sendo a cura”.
Essas mudanças tiveram forte impacto na cultura e na consciência socialista que se desenvolviam desde as lutas proletárias do início do século XIX, com sua crença no progresso social e no embate anticapitalista. Impacto acentuado pela dupla derrota representada, primeiro, pela incapacidade do movimento operário e social democrata, principalmente na Europa, em formular uma alternativa avançada, proletária, para a crise do capitalismo que vinha desde o final da década de 1960. Como conseqüência houve perda de influência dos partidos socialistas e comunistas e dos sindicatos, pavimentando o caminho do capitalismo popular de Margareth Thatcher, na Inglaterra, e da ascensão de Ronald Reagan, nos EUA, entre 1979 e 1980. O passo seguinte, em todos os lugares onde o neoliberalismo se implantou, foi o uso do poder público contra os sindicatos e a organização dos trabalhadores.
A segunda derrota, conseqüência desta, e que a confirmou, foi a derrocada do socialismo sinalizada pela queda do Muro de Berlim, em 1989, rapidamente adotada e difundida pela mídia e pelos pregoeiros da burguesia como signo de uma derrota definitiva de qualquer alternativa ao capitalismo.
Esta derrota – considerada por João Amazonas, com argúcia, como estratégica da luta operária – conduziu as formas de sentir típicas do capitalismo contemporâneo ao primeiro plano, que, ganhando as massas, alcançaram alguma “força material”, transformando-se nesse frágil e insípido substrato teórico do domínio de Narciso com sua fuga das questões públicas e coletivas e sua ênfase na esfera privada. Esta consciência contemporânea é resultado da desconstrução ativamente promovida pelos meios intelectuais e artísticos, pela propaganda e pela mídia que, comprometidos com a sobrevivência e manutenção do capitalismo, fazem do ideário burguês o seu evangelho, com o culto do vencedor e na abjeção dos “derrotados”.
Apresentam como “nova” uma ideologia enraizada no século XIX e na luta contra a classe operária que, tendo feito a experiência dura da dominação capitalista, emergia com seu programa próprio de organização da sociedade. Ela herdava os ideais de igualdade, fraternidade e liberdade da burguesia de 1789 que, agora, como classe dominante, mostrava as garras de seu reacionarismo. Das barricadas de 1848 – – e particularmente das lutas nas ruas de Paris, em 1871 – emergiu a aliança funesta e retrógrada dos proprietários, capitaneada pela burguesia, contra aqueles que sonhavam com o socialismo.
Sua filosofia refletia essa conversão conservadora e foi marcada pelo autoritarismo e pelo irracionalismo. O lugar que fora de um pensador como Georg Hegel, por exemplo, estava agora ocupado por pensadores saudosos da religião – críticos da ciência, da compreensão científica do mundo e do conhecimento objetivo – e por propagandistas do domínio absoluto dos senhores – como Sorren Kierkegaard, Arthur Schopenhauer ou Friedrich Nietzsche, voltados contra aquilo que Nietzsche chamou de “a hidra” que ameaçava a “cultura burguesa”, a Associação Internacional dos Trabalhadores.
Aquelas são as raízes mais longínquas do pensamento burguês dominante na época da globalização imperialista. Ele foi refinado, em nosso tempo, por filósofos como o alemão, nazista, Martin Heidegger, e seu esforço para renovar o idealismo e dar estofo intelectual à recusa da ciência, da técnica e da razão – isto apenas para recordar a ala direitista mais radical do irracionalismo que marca o pensamento burguês contemporâneo.
Outra vertente de onde deriva o pensamento conservador contemporâneo é o pragmatismo norte-americano e sua tese central de que o significado e a verdade “de qualquer conceito são determinados pelos efeitos práticos que dele emanam” (Bogomolov). Em sua origem está o espírito autoritário, antidemocrático e idealista de Charles Sanders Pierce (autor, em uma de suas conferências, da frase “Não temos a vã pretensão de ir além dos fenômenos” – isto é, de examinar o mundo real, objetivo, concreto), que lamentou a libertação dos escravos e defendeu a repressão contra os trabalhadores.
Seu continuador foi William James, outro idealista para quem a verdade era relativa e dependia de sua utilidade. E que, como Pierce, foi um defensor da sociedade burguesa. “O instinto de propriedade”, escreveu, “é inerente à nossa natureza”, levando à suspeita antecipada das “utopias comunistas”.
Em nosso tempo, o pensamento hegemônico foi definido sob o rótulo de pós-modernismo e seu conjunto eclético de autores, artistas, categorias e conceitos enfeixados pela ênfase comum na superação da modernidade, da revolução proletária e do marxismo – embora existam, é preciso registrar, pós-modernos de “esquerda” –, na suspeita da compreensão objetiva e científica do mundo e
na difusão de um comportamento individualista, subjetivista e arbitrário expresso na fragmentação, na irresponsabilidade social e na estetização da vida.
O caráter de classe, burguês, dessa subjetividade dominante é marcado pela sua difusão, a partir das décadas de 1960 e 1970, entre as classes médias endinheiradas e consumistas, primeiro entre os países ricos e, depois, na periferia do mundo capitalista. As mudanças no mundo do trabalho criaram condições para sua difusão também entre os trabalhadores, facilitada pelo quadro de precarização dos vínculos empregatícios, desemprego, perda de direitos sociais, fragilização dos sindicatos e dos partidos operários e empobrecimento. Esta foi também a época da generalização da tese burguesa do fim da centralidade do trabalho e do papel histórico revolucionário da classe operária, e do abandono da visão de classe e da luta de classes como categorias para a compreensão da sociedade e de sua dinâmica, substituídas pelo indivíduo, pelos “grupos de prestígio” e por todo o rosário de conceitos da sociologia burguesa convencional.
O marxista britânico Raymond Williams acentua que “o pós-modernismo é o primeiro estilo global especificamente norte-americano” (citado por Perry Anderson), avaliação acompanhada pelo norte-americano Fredric Jameson que vê, no pós-modernismo, em sentido mais amplo, a lógica do capitalismo triunfante em escala mundial, que baniu o espectro a revolução e legitima a ação das empresas multinacionais e do imperialismo. E que impõe as formas de sensibilidade e de ver o mundo, traduzidas no indivíduo contemporâneo e seu consumismo.
Mas, lembraram Marx e Engels no Manifesto, na sociedade burguesa quem é independente e tem individualidade é o capital, enquanto o “indivíduo que trabalha é dependente e não tem individualidade própria”. No mundo do capitalismo, marcado pelo desemprego, só há lugar para o que “pode ser convertido em capital, em dinheiro, em renda da terra”, e só tem subjetividade, dizem os fundadores do materialismo moderno, “o burguês, o proprietário burguês”. Ou aqueles cujo trabalho, que valoriza o capital, pode ser apropriado pela burguesia e transformado em propriedade burguesa.
O individualismo típico de uma sociedade como essa é a expressão do domínio de todos pela lógica do capital, e mesmo o capitalista é um funcionário do capital, lembrou Marx em O Capital. A personalidade capitalista moderna é essa personalidade burguesa descrita por Marx e Engels, que existe em uma sociedade onde não há lugar para o desenvolvimento da individualidade, isto é, para a livre manifestação das múltiplas capacidades de cada ser humano.
Contra ela, e hoje soterrada sob o peso da propaganda da burguesia, sobrevive outra forma de sentir e compreender o mundo, as relações entre os homens e dos homens com a natureza, e que preconiza a superação do capitalismo por uma sociedade onde a exigência do Manifesto de que “o desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos” possa tornar-se realidade.
José Carlos Ruy é jornalista e editor de Princípios.
Referências bibliográficas
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EDIÇÃO 79, JUN/JUL, 2005, PÁGINAS 32, 33, 34, 35, 36, 37