Sobre ética e valores
A ética voltou a ser um dos temas mais abordados do pensamento filosófico contemporâneo. Que mudanças ocorreram no mundo para trazer a questão da moral à tona com tanta ênfase? Sem dúvida a crise de paradigmas provocada pela derrota da experiência socialista está no centro dessa preocupação. Os blocos ideológicos desmoronaram, a hegemonia das metrópoles capitalistas (sob a égide dos Estados Unidos) é total. É difícil pensar no futuro após a desintegração dos países do Leste europeu e a realidade de um mundo unipolar.
A ideologia dominante coloca na moda a falta de valores. No entanto, esta ausência é apenas aparente, uma vez que, evidentemente, toda sociedade tem sua ética e suas referências. E o valor dominante hoje, na sociedade neoliberal, pode ser traduzido por uma só palavra: dinheiro. Por ele pode-se tudo: negociar sua dignidade, seu corpo, sua liberdade. Em nome dele, tudo se transforma em mercadoria: os ideais, as crenças, as esperanças.
Em decorrência dessa concepção dominante, vivemos, como previa Marx na Miséria da Filosofia, num “tempo da corrupção geral, da venalidade universal ou, para falar em termos de economia política, o tempo em que qualquer coisa, moral ou física, tendo-se tornado valor venal, é levada ao mercado para ser apreciada por seu valor adequado”.
O ideal que o sistema capitalista prega só pode ser alcançado por alguns, às expensas da maioria. Esta é a essência do capitalismo. As relações econômicas assumem um caráter impessoal, dando a impressão de serem puramente relações objetivas de mercadorias entre si, com as quais nada têm a ver considerações morais (Pompe: 2001) (1).
Isso não significa que dentro do próprio sistema não existam valores morais conflitantes com o padrão dominante. Mas a própria natureza deste sistema econômico cria seus “valores morais” que, na prática, colocam na marginalidade as manifestações de uma ética humanitária (Pompe 2001).
No capitalismo, que surge historicamente defendendo liberdade, igualdade e fraternidade, estes lemas perderam totalmente seu significado e só são invocados em favor de um pequeno grupo de privilegiados e multimilionários. O que é mesmo ética?
O termo ética tem sido muito invocado em nosso cotidiano com significados diversos, nem sempre indicando a mesma coisa. Essa multiplicidade de significados também aparece nas discussões filosóficas da Grécia Antiga. Entretanto, mesmo sendo uma palavra usada com sentidos e intuitos muito diferentes ética se refere sempre ao que um dado grupo social entende como o que deve ser o bom comportamento humano. Sendo assim, as discussões sobre ética se referem aos modos de valorar os próprios comportamentos e o das outras pessoas e, também, aos parâmetros que servem para orientar essas ações.
O termo ética tem origem no termo grego “ethos”, que significa costumes e hábitos sociais. Já a palavra moral tem origem no termo “mores”, do latim, e tem o mesmo significado. No entanto, historicamente, esses conceitos foram adquirindo significados diferentes. Alguns autores definem moral como conjunto de princípios, crenças, regras que orientam o comportamento das pessoas nas diversas sociedades e ética como reflexão crítica sobre a moral e também como a própria realização de um tipo de comportamento. Outros autores, por sua vez, procuram distinguir as duas palavras, usando o termo moral para os códigos de valores diferentes e específicos que existem e o termo ética para a busca de valores universais, que seriam válidos no âmbito da humanidade como um todo e não apenas em um grupo específico (Ernica: 2003) (2).
Os valores morais são juízos sobre as ações humanas que se baseiam em definições do que é bom/ mau ou do que é o bem ou o mal. Eles são imprescindíveis para que possamos guiar nossa compreensão do mundo e de nós mesmos e servem de parâmetros pelos quais fazemos escolhas e orientamos nossas ações. Esses valores são desenvolvidos pela consciência humana, ao longo da história.
Mas os seres humanos, embora tendo uma origem animal, precisam transformar sua natureza. A intermediação da consciência é decisiva para a constituição da ação humana. O homem transforma a natureza por meio do trabalho. E, ao transformar a natureza em relações sociais de produção, cria um mundo material próprio e produz também as idéias. As esferas ontológicas, inorgânica e orgânica, continuam existindo e delas os seres humanos não podem prescindir. Mas, obviamente, quanto mais complexo se torna o ser social tanto maior será o número de mediações entre o inorgânico e o orgânico, de um lado, e o ser social, de outro, sendo este o realizador das mediações.
Em outras palavras, a premissa é a de que o reino da necessidade cria o primeiro impulso da construção da história que se dará no sentido da busca permanente do homem da realização de suas necessidades e carências, partindo das bases naturais com que conta: seu patrimônio corporal e uma dada natureza. Como afirmam Marx e Engels em A Ideologia Alemã (3), o homem se distingue do animal pela consciência de que é portador e que lhe permite conceber, por exemplo, uma casa, antes de construí-la. Num primeiro momento, o homem produz para satisfazer suas necessidades básicas de sobrevivência; num segundo, para satisfazer as necessidades que vão se criando na medida em que a base material vai sendo modificada por essa ação e esse é o primeiro ato histórico.
O ponto de partida da história não pode, portanto, ser a idéia. É a vida material que determina, em última instância, a consciência. No entanto, Marx e Engels também consideravam que, ao serem assimiladas pelas massas, as idéias adquirem força material. Não por acaso, historicamente, o trabalho de pensar, de desenvolver teorias, foi se transformando em função de um segmento privilegiado da classe dominante, enquanto o trabalho manual passava a ser exercido pelos explorados. Ao tomarmos parte da vida social, vamos desenvolvendo uma vida interior marcada por representações das relações que estabelecemos conosco, com os outros e com o meio externo a nós. O desenvolvimento da consciência e da linguagem nos permite trazer à consciência nossas necessidades, vontades e nossos desejos.
A ética é histórica
Portanto, ética, assim como os valores que defende, é um conceito constituído historicamente. Como o
pensamento dominante de uma época é o pensamento da classe dominante, o mesmo vale para a ética. Portanto, os valores defendidos pelo capitalismo são os valores do capitalismo e não a expressão “natural” (ou seja, determinada pela natureza) de uma determinada situação social. A exploração do homem pelo homem não é natural. Faz parte de um determinado momento histórico, o da luta de classes.
Criados na vida social para orientar as ações humanas e regular a relação entre as pessoas os valores morais não têm validade universal. Têm significado apenas em um contexto específico, no quadro de uma cultura determinada, e têm existência histórica porque são criações humanas e por isso podem ser alterados.
Um comportamento considerado correto e aprovável em um certo momento pode ser avaliado como ruim e profundamente reprovável em outro. Uma sociedade escravista não pode defender fraternidade e igualdade para todos.
Durante milênios, as mulheres foram consideradas inferiores aos homens. As concepções de Santo Agostinho a respeito do gênero feminino tornaram-se herança de todas as gerações subseqüentes de cristãos e influenciaram o pensamento político e psicológico do Ocidente. Como podemos ver, os valores morais não estão organizados em uma tábua de prescrições de condutas, que levam automaticamente a uma vida boa. Ao contrário, eles são criações humanas ligadas às condições de vida historicamente criadas.
A ética é uma criação humana, um reflexo das necessidades e desejos, esperanças e aspirações do homem em sua própria consciência. Este reflexo surge sempre das condições materiais, do processo em desenvolvimento e das relações existentes em todo lugar em que o homem cria suas necessidades vitais e de reprodução. Os conceitos morais mudam da mesma forma que as condições materiais de vida, as forças de produção e as relações produtivas e não podem ser em nenhuma época mais elevados que o nível da estrutura sócio-econômica.
A ética é um conjunto de ideais e de obrigações, cuja base se encontra em determinadas aspirações de bem-estar, justiça e direito. A vida social é impossível sem certos princípios, regras e ideais que prescrevem a maneira como os indivíduos têm de se relacionar um com o outro ou diante de uma situação determinada. Ao tratar-se de uma sociedade dividida em classes, os conflitos morais refletem as divisões classistas e tratam de justificar as relações econômicas existentes, ou de mudar essas relações. Com base nesse posicionamento, os conceitos de bem, de justiça e outros similares tomam seu significado e as mudanças propostas nestas condições devem realizar-se de acordo com as necessidades e os interesses do setor mais amplo ou da minoria da menor comunidade social. Não há uma identidade universal, quando se trata do justo e do injusto, do que é desejável ou indesejável.
Os homens fazem seus juízos relacionando-os com suas necessidades e desejos, os quais operam e se condicionam mutuamente uns aos outros segundo as sociedades correspondentes e segundo as condições em que os homens vivem dentro destas sociedades.
A ética tem classe
Existem, há tempos, condições concretas para a produção de artigos materiais suficientes para garantir uma existência decente para todos os seres humanos. No entanto, em vez de observarmos uma melhoria das condições de vida das populações em geral, constatamos que o fosso entre ricos e pobres aprofunda-se em todo o mundo. As causas da pobreza e da exploração não podem ser explicadas, portanto, pela escassez de alimentos e produtos, mas sim pela forma de apropriação e distribuição desses produtos.
Residem nas relações econômicas do capitalismo, fundadas sobre a propriedade privada dos meios de produção.
Ser ético, na atualidade, segundo Heller (4), significa atuar em defesa dos direitos e dos interesses dos trabalhadores e das instituições por meio das quais esses direitos e interesses são preservados – entidades democráticas e populares, sem as quais não há perspectiva de avanço humano. A tentativa para resolver os problemas atuais, recorrendo às chamadas verdades morais universais e eternas, ao “bem comum” da humanidade em abstrato, corre o grave risco de ser simplesmente um gesto vão e até de obstaculizar as soluções possíveis. Quando a moral se apresenta como uma esfera autônoma, segundo Marx, trata-se de uma moral alienada: suas exigências se opõem rigidamente às particularidades da vida individual e a moral esmaga o indivíduo, tal como o esmagam a Justiça e o Estado. Mas a moral também se acha alienada quando os interesses de uma classe tornam-se um postulado moral “natural” para os indivíduos que a integram (Heller: 1970:120).
Para Marx e Engels, não existe o homem abstrato como conceito absoluto, mas sim o homem real, que estabelece uma relação real com outros homens e com a natureza.
Sobre esta base real levanta-se na sociedade a superestrutura política, jurídica, cultural e consciente, que emerge como reflexo das necessidades advindas da base econômica desta sociedade. A consciência social representa um conjunto de concepções políticas, jurídicas, morais e religiosas, artísticas, filosóficas, científicas etc. A filosofia marxista busca entender as doutrinas éticas, segundo suas bases reais e não as proclamadas, mostrando que na sociedade não existe ética independente dos interesses, fundamentalmente econômicos, dos homens. Portanto, numa sociedade dividida em classes sociais, como a capitalista, não existe ética acima das classes. Antes de classificar os homens que atuam na história como bons ou maus, é indispensável entender o mundo objetivo material dos homens e as necessidades objetivas que dele emergem. Como afirmava Engels (5),
“É preciso, na história da sociedade, investigar as verdadeiras alavancas da história, é necessário não se deter tanto nos objetivos dos homens isolados, por mais importantes que sejam, como aqueles que impulsionam as grandes massas, os povos em seu conjunto e, dentro de cada povo, grupos inteiros, é preciso estudar não só as explosões rápidas, mas as ações contínuas que se traduzem em grandes transformações históricas. É preciso pesquisar as causas determinantes que se refletem na consciência das massas, que atuam, e de seus chefes – os chamados grandes homens”.
A visão de socialismo científico de Marx, de Engels e de Lênin não se confunde com uma utopia moralizante. O socialismo constitui o objetivo de avançar no progresso da humanidade, proporcionando a cada homem o máximo do que necessita. Por isso, os principais preceitos da nova sociedade são as palavras de ordem histórica, que Marx e Engels deram ao movimento socialista: o fim da exploração do homem pelo homem, o fim da exploração de classes.
A ética tem cor e tem gênero
O que significará defender uma ética revolucionária hoje? Este é um grande enigma que desafia, sobretudo, a juventude. É preciso refletir muito. Discursos são, como dizia Guimarães Rosa, bolas de papel. Palavras vazias. Não adianta se dizer avançado, carregar bandeiras, posar de abnegado e, com o mesmo ímpeto, pisotear valores, desmerecer colegas, subestimar a companheira, ter agudo espírito individualista ou, no máximo, de grupo ou corporação. A pretexto da mudança, não podemos arquivar as “velhas” idéias que animaram o iluminismo, a defesa dos direitos dos cidadãos, o espírito de solidariedade.
Houve um tempo em que um revolucionário, um combatente, podia, ao mesmo tempo, ser um ditador em casa, oprimir mulher e filhos ou revelar preconceitos raciais. Isso ocorreu porque a teoria ainda não estava suficientemente desenvolvida e pouco se conhecia sobre os conflitos de gênero e as questões étnicas e culturais. Uma das grandes limitações da Revolução Francesa, de 1789, por exemplo, foi ter excluído as mulheres da cidadania. A feminista republicana Olympe de Gouges mostrou não ser possível ignorar a dominação-exploração de gênero nem a importância capital da luta das mulheres por sua libertação.
Mas o projeto neoliberal busca naturalizar a exploração de classe, os preconceitos e discriminações, reforçando o machismo, a xenofobia, o racismo, o individualismo do “salve-se quem puder”. Por isso, repetindo Heller, ser ético hoje significa atuar em defesa dos direitos e dos interesses dos trabalhadores (eu acrescentaria das mulheres, dos negros, dos oprimidos, em geral) e das instituições pelas quais esses direitos e interesses são preservados, entidades democráticas e populares, que se encontram ameaçadas e sem as quais não há perspectiva de progresso humano.
Olívia Rangel Joffily é professora do Departamento de Psicologia da PUC-SP
Notas
(1) POMPE, Carlos. “Ética, questão de classe”. A Classe Operária, edição 201, ano 76, de 17/5/2001.
(2) ERNICA, Maurício. Cidadania decidir entre humanos. Sessão “O assunto é”, Sitio Educarede.org.br Retirada em setembro de 2004.
(3) MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
(4) HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra, 1970.
(5) ENGELS, Friedrich. “Ludwig Feuerbach e o fim de filosofia clássica alemã”. Obras Escolhidas Marx/Engels, volume III, Alfa-Ômega, São Paulo.
EDIÇÃO 79, JUN/JUL, 2005, PÁGINAS 76, 77, 78, 79