O mercado financeiro internacional tem surpreendido por sua amplitude e persistente liquidez, apesar da volatilidade nos fluxos de capitais e nos preços dos ativos. Segundo pesquisa do McKinsey Global Institute, o estoque total de ativos financeiros – depósitos bancários, títulos de dívida pública e privada e ações – cresceu de US$ 12 trilhões em 1980, o equivalente a 109% do PIB (Produto Interno Bruto) mundial para US$ 118 trilhões em 2003, mais de três vezes o PIB mundial (1). Os dados revelam, portanto, um dinamismo dos mercados financeiros muito acima da taxa de crescimento do setor produtivo.

A estimativa do McKinsey Global Institute não considera os derivativos financeiros. Os valores nocionais dos derivativos de balcão atingiram US$ 197 trilhões em dezembro de 2003 (cujo valor bruto de mercado alcançava US$ 7 trilhões) e os derivativos negociados em bolsas somaram US$ 36 trilhões, de acordo com o BIS (Bank for International Settlements).

A expansão dessa extraordinária massa de riqueza financeira está associada à segunda onda de internacionalização financeira após a II Grande Guerra, a partir do início dos anos 1980, que configurou a globalização financeira sob a liderança do dólar e do sistema financeiro americano (2). Como eixo do sistema financeiro global, o mercado americano respondia por 37% do estoque total de ativos em 2003, seguido pela Europa com 31%, pela participação declinante do Japão com 15% e pelo movimento ascendente da China com 4% (ver Tabela 2). Os depósitos bancários perderam participação relativa no estoque de ativos financeiros, caindo de 45% do total em 1980 para 30% em 2003 (ver Tabela 1). Por sua vez, os ativos negociáveis (títulos de dívida e ações) expandiram a participação de 55% do total para 72% no mesmo período. Isso resultou na redução dos empréstimos bancários não-negociáveis e no crescimento das finanças diretas, sob a égide dos mercados de capitais.

Grande parte desse estoque de riqueza financeira tem sido gerida por fundos de investimento, fundos de pensão, hedge funds, bancos globais, tesouros das grandes corporações e bancos centrais – que procuram preservar e ampliar seus valores (3). Apenas os fundos de pensão dos países da OECD (Organização para a Cooperação Econômica e o Desenvolvimento) administravam um estoque de ativos, estimado em US$ 7,4 trilhões, representando 27% do PIB desses países e 39,1% do valor da capitalização das ações nos mercados de capitais desses mesmos países (OECD, Financial Market Trends, nº 88, March, 2005, p. 193, disponível na página eletrônica – http://www.oecd.org). Os mecanismos de gestão dessa riqueza – na forma de investimento de portfólio – condicionaram o funcionamento do mercado monetário e financeiro internacional, que ficou sujeito a movimentos erráticos decorrentes das expectativas dos gestores e da realização de de operações de arbitragem, algumas vezes, altamente alavancadas, em busca de ganhos de capital de curtíssimo prazo.

Em uma perspectiva mais restrita, a renitente liquidez hodierna está relacionada com a manutenção de baixas taxas de juros nas principais áreas monetárias – dólar, euro e iene –, a fim de facilitar a digestão do processo de desvalorização dos ativos financeiros ocorrido após março de 2000, a partir da crise das ações de tecnologia negociadas na Nasdaq. Os investidores passaram, então, a adotar agressivas estratégias de investimento, chamadas de carry trades. Eles tomam recursos emprestados no curto prazo com taxas de juros baixas (dólar, franco suíço e iene) e investem em ativos de maior risco e rendimento (ações e bônus dos países industrializados e dos países emergentes, moedas, commodities, petróleo etc.). Isso resulta em um elevado volume de capitais flutuando no planeta, sobretudo em direção aos países com maiores taxas de juros (Reino Unido, Austrália, Canadá, Nova Zelândia, mercados emergentes etc.). O movimento no mercado internacional de moedas atingiu US$ 1,9 trilhão por dia, desencadeando uma relativa tendência à desvalorização das moedas que fornecem os recursos e à valorização daquelas que recebem os investimentos (inclusive a brasileira).

Em suma, a manutenção de baixas taxas de juros amplificou os movimentos especulativos nos mercados domésticos e internacionais e exacerbou os desequilíbrios financeiros globais (elevado déficit americano e superávit do resto do mundo). Centro e periferia: um paradoxal contra fluxo

A partir de 1999, o conjunto dos países em desenvolvimento passou a apresentar superávits em conta corrente, sob a liderança dos países asiáticos e exportadores de petróleo. De acordo com o Fundo Monetário Internacional, o superávit em conta corrente desses países somou US$ 336,3 bilhões em 2004 (ver Tabela 3). Apenas os países em transição (Europa Central e Oriental) ainda apresentam déficits em conta corrente, cujo financiamento tem sido apoiado pelo processo de integração na área do euro. A experiência dos países asiáticos parece indicar que a obtenção de saldos comerciais expressivos e a acumulação de reservas têm propiciado o avanço tecnológico das economias, bem como permitido a adoção de políticas monetárias mais lassas que favorecem a expansão do crédito doméstico, da produção e do emprego. A acumulação de reservas – mediante saldos comerciais elevados e não pela contratação de novas dívidas – atende a demanda por liquidez em moeda forte e assegura a estabilidade da taxa de câmbio (4).

O estoque de reservas internacionais alcançou US$ 3 trilhões em dezembro de 2003 (ver Tabela 4). Os países desenvolvidos, exceto o Japão, reduziram seus volumes relativos de reservas internacionais de 61% em 1990 para 36,7% em 2003. No final de 2003, o Japão detinha US$ 652,8 bilhões, representando 21,7% das reservas globais e 59,2% das reservas internacionais dos países industrializados. Por sua vez, os países em desenvolvimento passaram a deter um volume crescente de reservas em moeda forte, cujo estoque saltou de 39% do total em 1990 para 63,3% em 2003. Os países asiáticos em desenvolvimento acumularam US$ 1,2 trilhão de reservas, sendo US$ 404,3 bilhões da China (5). Assim, o Japão e os países asiáticos concentraram 62,8% das reservas internacionais. O Japão procura conter os efeitos do permanente superávit comercial sobre a tendência à valorização do iene e à deflação dos preços doméstica. Já os países asiáticos, mediante uma estratégia agressiva de obtenção de superávit em conta corrente – que permite a acumulação de reservas –, buscam diminuir a vulnerabilidade externa de suas economias e evitar novas crises financeiras e cambiais, com a ocorrida em 1997. Todavia, a brutal acumulação de reservas internacionais pode expor esses bancos centrais a possíveis perdas associadas às variações das taxas de juros e de câmbio. Praticamente, 70% das reservas internacionais estão em dólar. Ademais, a acumulação de reservas implica a necessidade de esterilizar, pelo menos em parte, os recursos externos, a fim de conter a expansão doméstica do consumo e os movimentos especulativos em ativos imobiliários (Coréia, Tailândia e países da Europa Central).

No que se refere ao acesso ao sistema bancário internacional, a despeito da volatilidade dos fluxos, entre 1998 e 2004 os países em desenvolvimento acumularam um fluxo líquido negativo (saídas líquidas de recursos dos países) de US$ 426,3 bilhões. Apenas durante o ano de 2002, houve um fluxo positivo da ordem de US$ 8,9 bilhões, associado a saques nos depósitos internacionais e não ao volume de novos empréstimos. Em momentos de restrição de crédito, os agentes econômicos (bancos, corporações e bancos centrais) dos países em desenvolvimento são obrigados a sacar seus depósitos nos bancos internacionais para honrar seus compromissos em divisas. Nos três primeiros trimestres de 2004, observou-se um fluxo líquido negativo de US$ 84 bilhões, em decorrência de um elevado volume de depósitos efetuados pelos agentes econômicos no exterior, muito acima das operações de empréstimos, que somaram US$ 91,6 bilhões (6).

No agregado, a posição líquida do estoque de empréstimos dos bancos internacionais direcionados aos países em desenvolvimento menos os depósitos dos agentes econômicos desses países nos mesmos bancos resulta negativa em US$ 291,7 bilhões. Isso significa que os países em desenvolvimento tornaram-se emprestadores líquidos de capital para o sistema bancário internacional.

Em grande parte esses fluxos de saída começaram com a fuga abrupta dos bancos das economias em desenvolvimento em 1997-1998 – concentrada inicialmente nos países asiáticos, a qual desencadeou grande volatilidade nos preços dos ativos e desvalorização das moedas. Após a fuga dos credores, as empresas e os governos dos países em desenvolvimento procuraram saldar as dívidas e aumentar os depósitos externos (reservas dos bancos centrais e de outros agentes privados), a fim de amortecer os efeitos deletérios da desvalorização das moedas e garantir capacidade de importação de insumos, máquinas etc. Em suma, o superávit em transações correntes, a acumulação de reservas e a desalavancagem das corporações tornaram os empréstimos bancários menos necessários.

Os países latino-americanos, após dez trimestres consecutivos de saída de capitais, tornaram-se também credores líquidos do sistema financeiro internacional em US$ 25,7 bilhões em setembro de 2004. O Brasil acumulava um estoque de empréstimos de US$ 78,4 bilhões e depósitos no valor de
US$ 51,1 bilhões, perfazendo um saldo líquido devedor de US$ 27 bilhões.

A liquidez prevalente nos mercados internacionais de dívida (bônus, notas, commercial papers etc), associada ao superávit em conta corrente e às reservas dos países em desenvolvimento tem permitido o acesso desses países aos fluxos de capitais, desde o quarto trimestre de 2001, sob a liderança dos países asiáticos. Nesse período, o estoque de dívida internacional dos países em desenvolvimento saltou de US$ 486,2 bilhões, o equivalente a 6,6% do total, para US$ 737,1 bilhões, o correspondente a 5,2% do total.

Fuga do risco e tensões estruturais

Em resumo, os mercados financeiros internacionais privados – bancário e de dívida – deixaram de ter um papel ativo no financiamento do desenvolvimento dos países periféricos. Isso não significa que não tenham importância relativa na liquidez das suas transações externas. O fato relevante é que, no conjunto, em uma aproximação simples, o estoque de reservas internacionais, estimado em US$ 1,9 trilhão, acrescido do saldo de US$ 291,7 bilhões em depósitos nos bancos globais (que pode conter uma parcela das reservas internacionais), resulta em um volume de recursos dos países em desenvolvimento muito superior ao estoque de dívida, estimado em US$ 737,1 bilhões.

De um lado, esses dados revelam a perversidade da arquitetura financeira internacional, inadequada ao financiamento do desenvolvimento econômico, pois os fluxos de capitais ficam sujeitos aos surtos de euforia e pessimismo dos investidores de portfólio e dos bancos globais, o que obriga os países em desenvolvimento a acumular reservas em moeda forte e, por conseguinte, a financiar o déficit em conta corrente dos Estados Unidos e, paradoxalmente, a fomentar a liquidez do sistema bancário internacional (6).

De outro, as estratégias adotadas pelos países em desenvolvimento reduzem a vulnerabilidade aos fluxos internacionais de capitais, diminuindo a probabilidade de turbulências como as ocorridas durante a segunda metade da década de 1990.

Persistem outros riscos no horizonte, tais como as pressões pela valorização da moeda chinesa, a fim de reduzir o superávit comercial com os EUA e a União Européia, a manutenção do preço do petróleo em patamar elevado por longo período etc. Além disso, há tensões no centro do sistema financeiro global, refletidas nas pressões pela desvalorização do dólar, bem como o acirramento da concorrência que fragiliza o balanço de grandes corporações, como a General Motors e a Ford. Essas tensões podem elevar os “spreads” nas captações dos países em desenvolvimento e restringir a oferta de recursos. Todavia, a dinâmica contemporânea dos países em desenvolvimento parece afastar a possibilidade de uma crise financeira e cambial, nos moldes daquela que se propagou no final dos anos 1990.

As contradições e as assimetrias da ordem monetária e financeira mundial, com os países em desenvolvimento contribuindo para o financiamento dos países ricos, no entanto, recolocam a importância de se retomar o debate em torno de uma reforma dessa arquitetura financeira internacional.

Marcos Antonio Macedo Cintra é professor do Instituto de Economia da Unicamp.

Notas
(1) BRAGA, J. C. de S. & CINTRA, M. A. M. “Finanças dolarizadas e capital financeiro: exasperação sob comando americano”, in: FIORI, J. L. (Org.) O poder americano. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 253-307.
(2) O Fundo Monetário Internacional, que contabiliza os ativos bancários e não os depósitos, estimou o estoque total de ativos financeiros em US$ 130,3 trilhões em 2003 (IMF, Global Financial Stability Report, April, 2005, p. 163, disponível na página eletrônica – http://www.imf.org).
(3) SAUVIAT, C. “Les fonds de pension et les fonds mutuels: acteurs majeurs de la finance mondialisée et du nouveau pouvoir actionnarial”, in CHESNAIS, F. (Org.) La finance mondialisée: racines sociales et politiques, configuration, conséquences. Paris: Éditions La Découverte, 2004, p. 99-124.
(4) BELLUZZO, L. G. de M. & CARNEIRO, R. “O paradoxo da credibilidade”, Política Econômica em Foco, n. 2, “Introdução”, Campinas, Instituto de Economia/Unicamp, set./dez., 2003, p. 1-10. Disponível na página eletrônica – http://www.eco.unicamp.br.
(5) Salienta-se que a acumulação de reservas pelos países asiáticos ocorre mediante a apresentação de superávits comerciais elevados, mas também a atração de investimento estrangeiro direto e de portfólio.
(6) Salienta-se que a expansão de US$ 94,4 bilhões nos empréstimos bancários para os países em desenvolvimento ocorreu nos dois primeiros trimestres de 2004; no terceiro, houve uma retração de US$ 2,9 bilhões, mediante a não renovação das linhas de crédito.
(7) Porém, as captações em moeda estrangeira dos países asiáticos pagam juros 3%-4% acima daqueles recebidos pelos estoques de reservas (aplicados em bônus dos Tesouros ou das corporações dos países desenvolvidos) – dada a assimetria de risco.

EDIÇÃO 79, JUN/JUL, 2005, PÁGINAS 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29