Financeirização, concentração de renda e desemprego. Como valorizar o trabalho?
A década de 1990 foi marcada pela abertura comercial, privatizações com elevado desemprego e desnacionalização da economia brasileira. Inaugurou-se um período de Investimentos Estrangeiros Diretos voltados para a aquisição de unidades produtivas no Brasil e não para a instalação de novas plantas. Poderia se afirmar que a classe operária industrial diminuiu de tamanho no Brasil desde então?
Pochmannn – Temos fatos novos nas duas últimas décadas, mas que ficaram mais claros a partir dos anos 1990 e que apontam para uma crescente polarização social no Brasil. Quando comparamos a estrutura da sociedade brasileira no início do novo século – com os dados que a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD, do IBGE) permite, inclusive de 2003, ou mesmo o censo demográfico de 2000 – com as informações de 1980, por exemplo, visualizamos um nítido movimento que mostra, de um lado, a ampliação da população com níveis de renda até três salários mínimos e, de outro, o crescimento da população considerada rica.
Nos dias de hoje identificamos como famílias com um elevado nível de riqueza aquelas que dispõem de renda superior a R$ 45 mil mensais per capita. E observamos – na comparação dos anos 1980 com o ano 2000 – que houve um aumento significativo das famílias com elevado nível de riqueza.
Portanto, o primeiro aspecto a ser ressaltado diz respeito a essa polarização social que está associada à ampliação das classes baixas em termos quantitativos e relativos e à expansão das classes muito ricas da população. Por conseqüência temos, então, uma redução absoluta e relativa da classe média.
A classe média foi produto do projeto de industrialização nacional dos anos 1930-1980 em que tivemos uma expansão importante de empregos seja na grande indústria privada, seja no próprio setor público. E esses dois setores – industrial e público – foram fortemente afetados com o que ocorreu a partir dos anos 1990. Em primeiro lugar, a abertura comercial, produtiva, tecnológica e financeira, levou a um acirramento da competição no setor privado, cuja conseqüência principal foi a terceirização e a redução de empregos à classe média. No setor público tivemos um esvaziamento do papel do Estado. E isso trouxe como conseqüências não apenas a redução do nível de renda do setor público de um modo geral, mas também a queda relativa na quantidade de pessoas nele ocupadas. Por exemplo, em 1980 tínhamos em torno de 12% do total da ocupação brasileira absorvidos pelo setor público; em 2003 o setor público representa não mais do que 8%.
O segundo ponto que podemos destacar diz respeito à fuga de cérebros do país. As opções que foram tomadas nessas últimas décadas fizeram com que o Brasil se inserisse na economia mundial como produtor de bens de baixo valor agregado. O Brasil tem aumentado sua participação – especialmente na segunda metade dos anos 1990 para cá, com a mudança do regime cambial – no mercado mundial produzindo e exportando bens de menor valor agregado, especialmente agronegócios e extrativismo mineral.
E o diferencial de competitividade nesses setores basicamente se sustenta no reduzido custo/ trabalho. O custo/trabalho na indústria de transformação no Brasil dos anos 1980 era em torno de 3 a 4 dólares/hora. Em 2003 tal relação caiu para 1 dólar/hora. Isso indica que as oportunidades que o Brasil tem em termos de ampliar sua exportação da forma como vem se inserindo economicamente terminam sendo fruto da geração de postos de trabalho de reduzida remuneração e, em geral, aqueles que absorvem trabalhadores de escolaridade média, não os de escolaridade alta. Logo, parcela daqueles jovens de baixa escolaridade que estão hoje conseguindo completar o ensino superior não encontra oportunidade de trabalho no Brasil. Entre o censo de 1991 e o de 2000 tivemos uma fuga de 1.350 milhões de jovens do Brasil. Geralmente são jovens de maior escolaridade. Há uma estimativa de que a cada ano haja uma saída de aproximadamente 120 mil jovens de alta escolaridade do Brasil.
O terceiro aspecto relacionado à dinâmica da financeirização da riqueza é que temos hoje – nesses primeiros cinco anos desta nova década – uma dívida pública equivalente a aproximadamente 50% do PIB. Temos uma dívida pública que oferece a cerca de 20 mil clãs de famílias a possibilidade de terem uma remuneração, a cada ano, equivalendo a 7% a 8% do PIB. São as famílias de extrema riqueza que respondem por aproximadamente 86% dos títulos públicos nacionais e absorvem de 7% a 8% da riqueza nacional na forma de pagamento do serviço da dívida.
Essa é a chamada riqueza financeirizada que se concentra cada vez mais num segmento bastante reduzido da população. Esses “clãs” absorvem um recurso considerável da riqueza nacional e não têm compromisso algum com emprego e produção. Esse segmento tem importância significativa, pois são famílias vinculadas não apenas ao setor financeiro, mas também à parte do setor produtivo, de comunicações etc. Ao mesmo tempo, percebe-se que há uma concentração dos ricos em poucas áreas físicas do país – especialmente a cidade de São Paulo vem cada vez mais concentrando esses ricos financeirizados.
O neoliberalismo, além de desemprego, produziu alterações no perfil de diversas camadas trabalhadoras. Como o senhor caracteriza essa fragmentação? A dinâmica dessa mutação?
Pochmann – A expansão dos “novos agregados sociais” é um elemento bastante interessante a ser considerado nas análises sobre o comportamento no mundo do trabalho, especialmente na década de 1990. Observamos que nas duas últimas décadas cresceu o que poderia ser considerado um corpo de ocupações vinculadas diretamente à renda dos ricos.
Por exemplo, nos anos 1990 a ocupação que mais cresceu no Brasil foi a de trabalho doméstico – de cada dez ocupações abertas nessa época quase três foram de trabalho doméstico. A segunda foi a do trabalho ambulante; a terceira, segurança pública e privada. Então, como observamos, no entorno de um condomínio de alta renda se verifica a existência de praticamente um exército de servidores das famílias residentes nos condomínios. São ocupações que vão de limpeza tradicional, trabalho doméstico, mas também manicure, segurança, cortador de grama, personal trainer e demais formas de assessoria à vida dessas famílias de extrema riqueza.
Esse importante conjunto, expressivo dos ocupados, basicamente, não se vincula à classe operária, não está diretamente relacionado às defesas de direitos, como a própria legislação trabalhista. Então, isso é de fato uma novidade importante porque, embora seja um segmento que dependa fundamentalmente da renda dos ricos, em geral são ocupações de remunerações relativamente muito baixas. No entanto, representa um segmento que vocaliza muito mais o interesse dos ricos do que da população mais pobre à qual eles pertencem. Um exemplo concreto disso, que ocorreu na cidade de São Paulo nas eleições do ano passado foi o fato de, apesar desses mesmos segmentos populacionais terem sido beneficiários de políticas da administração, terminaram votando contra Marta Suplicy, justamente porque guardavam implicâncias originárias dos ricos que foram penalizados pela política tributária e pela orientação da aplicação dos gastos nas regiões mais periféricas.
Outro fenômeno importante em relação à dinâmica do mundo do trabalho está associado à realização de uma reforma trabalhista branca que ocorreu muito mais pelo comportamento do mercado de trabalho (pelas decisões dos capitalistas) do que pela realização de uma mudança legal. Embora mais de 30 medidas tenham sido implementadas nos anos 1990 em termos de descaracterização/alteração do código trabalhista, o que se percebeu, na verdade, foi a difusão de novas formas de contratação.
Tínhamos basicamente até os anos 1980 um padrão de contratação que era a carteira de trabalho assinada, o contrato individual de trabalho. Hoje, verificamos que, ao longo dos anos 1990, ocorreu uma difusão de outras formas de contrato. Observamos que uma grande empresa tem, hoje, possivelmente entre oito e dez tipos de contrato (de trabalhadores terceirizados, que significa níveis de contratação bastante distintos; consultores; os trabalhadores autônomos; o contrato com pessoa jurídica, isto é, a empresa em que a pessoa é prestadora de serviço; contratos com estagiários em crescimento; free lancer; a isso vão se juntando, as cooperativas). Há uma pulverização de formas de contratação que, em geral, são contratos que terminam oferecendo custos relativamente menores.
Por outro lado existe hoje uma classe operária de maior escolaridade, mas também muito mais fragmentada, justamente pelas dinâmicas de contratação que foram difundidas nos anos 1990 sem nenhum controle – muitas vezes até estimuladas pelo Ministério do Trabalho, que optou ao longo desses anos por não exercer fiscalização.
Com o desemprego avassalador nos 8 anos da era FHC, o que ocorreu com os setores mais desprotegidos do mercado de trabalho, ou seja, jovens, mulheres e negros? Pochmannn – Temos um problema gravíssimo em termos de desemprego no Brasil para a juventude. Metade do desemprego nacional está concentrada em pessoas dessa faixa etária. Parte disso diz respeito ao perfil das ocupações e outra parte justamente ao fato de haver muitas pessoas desempregadas adultas, com maior escolaridade e maior experiência profissional, que terminam disputando vagas com os jovens.
Outro aspecto importante diz respeito ao aumento do desemprego entre as pessoas com mais de 40 anos de idade. Isso significa enorme dificuldade para voltar ao mercado de trabalho como assalariado. Por isso, têm crescido alternativas de ocupação, via formas de cooperativa, de trabalho autônomo ou um certo empreendedorismo. Mas, em síntese, dificilmente as pessoas dessa faixa etária, que perdem seu posto – após até 25 anos de trabalho assalariado – têm condições de voltar.
Por fim, em termos de gênero, inegavelmente tem crescido a participação feminina. De cada dez ocupações que foram abertas nos anos 1990, seis delas foram ocupadas por mulheres. Mas o aumento desta participação – e isso é importante ser salientado – ocorreu praticamente em ocupações tradicionalmente já ocupadas pelas mulheres como no setor de serviços, sobretudo com a descentralização do gasto público em áreas sociais. Em setores como a indústria, por exemplo, ainda é relativamente reduzida a participação feminina. Mas o mais grave é que, a despeito de ter havido uma redução na diferença entre a remuneração média feminina e a masculina, isso foi influenciado, sobretudo, pela maior perda do poder aquisitivo da remuneração masculina e não pelo aumento da remuneração feminina.
Logo, é possível perceber que a redução da diferença de remuneração masculina e feminina diz respeito justamente à maior precarização do mercado de trabalho que atingiu ao homem. E a grande questão é que a despeito de as mulheres terem maior escolaridade, isso não vem acompanhado de remuneração equivalente à do homem. Isso mostra um mercado de trabalho com grande discriminação no diz respeito a gênero, raça etc.
Há um estudo que tivemos oportunidade de fazer sobre o perfil do desemprego e observamos também que à medida que a população negra aumenta sua escolaridade, aumenta também sua relação com o desemprego. Se tomarmos como referência brancos e negros com um ano de escolaridade a diferença da taxa de desemprego é em torno de cinco vezes. Quando se considera brancos e negros com quinze anos de escolaridade a diferença da taxa de desemprego chega a sete vezes. Em relação à população negra, mesmo melhorando a escolaridade há uma grande discriminação na contratação.
Especialmente porque com maior escolaridade funciona justamente o critério de indicações de relações sociais que, na maior parte das vezes, termina precarizando não apenas os negros como também os mais pobres, que a despeito de seu esforço de elevar a escolaridade não resulta em situação ocupacional melhor.
O alastramento do trabalho feminino parece um fenômeno mundial, com a adoção das políticas econômicas liberais, o desemprego a precarização do trabalho. Há também uma grande discussão sobre a constatação desse sério problema do empobrecimento da classe média…
Pochmann – Na verdade, a pressão pelo ingresso da mulher no mercado de trabalho em geral se relaciona ao rebaixamento da renda do chefe da família. E isso termina estimulando o ingresso antecipado da mulher no mercado de trabalho, como também dos filhos, que terminam contribuindo como mecanismo de ajuste de renda.
Por outro lado, percebe-se que justamente na classe média as mulheres têm um desempenho escolar superior ao dos homens, porque já é perceptível no ensino médio e também na universidade maior taxa de participação feminina no ensino. Então, temos na verdade, uma pressão feminina pelo ingresso no mercado de trabalho e na maior parte das vezes isso vem associado a postos de trabalho relativamente simples. De cada dez postos de trabalho abertos, seis são ocupados pelas mulheres porque o grosso da ocupação se concentrou basicamente em trabalho doméstico, e mesmo em trabalho ambulante, que conta com o aumento da participação feminina. O que acontece é que em geral o rendimento auferido pelas mulheres é menor que o dos homens. E se percebe também novas realidades em termos de relacionamento familiar. No que diz respeito, sobretudo, à menor presença dos pais no acompanhamento/evolução dos filhos isso tem tido alguma relação com o problema, por exemplo, da violência. Um estudo feito na cidade de São Paulo demonstrou que os filhos da população mais pauperizada não tinham possibilidades de maior convivência com os seus pais e, ao mesmo tempo, há uma enorme carência de serviços públicos – escolas próximas às localidades de população mais pobre, ausência de creches – que termina afunilando por um desenvolvimento familiar desestruturado.
Um dado interessante é aquele relacionado entre desemprego na classe média e participação feminina no mercado de trabalho. Isso implica em maior permanência dos filhos com a família, ocasionando um conflito inter-relacional dos filhos nas famílias de classe média. Se olharmos para três décadas atrás era muito comum que o jovem já tivesse capacidade de alçar à autonomia financeira e constituição de uma nova família, sobretudo porque o mercado de trabalho lhe daria, de alguma maneira, condições para isso.
Hoje, justamente a construção da família ou a autonomização financeira está cada vez mais postergada. Significa que os filhos foram ficando cada vez mais tempo dentro da casa dos pais. Isso tem repercussão porque, de um lado, os pais permanecem mais tempo comprometidos com o financiamento de seus filhos, quando – no passado, pelo menos – muitas vezes eram os filhos que ajudavam no financiamento dos pais.
Hoje se percebe em termos de classe média a dificuldade de encontrar um posto de trabalho que permita aos filhos reproduzir um padrão equivalente ao que seus pais tiveram anteriormente. Isso aponta para um quadro de imobilidade social. O grande charme do capitalismo brasileiro no pós-guerra foi justamente o charme da mobilidade social. O que verificamos hoje é que esse charme praticamente desapareceu. Quer dizer, há um quadro de imobilidade geral, quando não de regressão.
Olhando inclusive a PNAD de 1996, que tratou da mobilidade social, ascensão social, percebe-se que quando comparamos a ocupação dos entrevistados com a ocupação que eles tinham há dez anos, se verifica que, na verdade, eles permaneceram, quando muito, no mesmo posto de trabalho. Por outro lado, na comparação do emprego do filho com o do pai, percebe-se na maior parte das vezes que os filhos não conseguem, apesar de ter o mesmo tipo de ocupação do pai, alçar a uma situação de renda superior à que tinham seus pais. Portanto, há uma tensão, um conflito intergeracional gravíssimo no Brasil. E isso, no meu modo de ver, está associado a essa situação pouco conhecida em termos de regressão ou imobilidade social.
O crescimento do emprego formal no governo Lula chama atenção se comparado com as tendências contrárias de todo o período de Fernando Henrique Cardoso. Como o senhor já comentou, os salários, ainda baixos, têm sido concentrados em alguns setores exportadores. A questão mais relevante para nós é: como enfrentamos o problema da valorização do trabalho no atual contexto?
Pochmann – A temática do trabalho é extremamente complexa e na maior da parte das vezes há uma dificuldade de os governos estabelecerem uma ação direta sobre ela. Justamente porque o trabalho termina sendo resultado de um conjunto de ações que estão associadas não apenas às políticas públicas, mas também a uma orientação em termos de desenvolvimento econômico e social. Atualmente, estamos diante de duas ordens de questões novas. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) foi na verdade uma ação antecipadora que abriu a perspectiva da organização do trabalho por intermédio do assalariamento. Sabemos que essa valorização foi relativa. No entanto, do ponto de vista estrutural, se compararmos a 1980 o Brasil tinha mais de 2/3 dos seus ocupados sendo assalariados, enquanto em 1940 havia 1/3 dos ocupados assalariados. Então, houve um movimento em torno do assalariamento, que abriu a perspectiva de estruturação do mercado de trabalho, mesmo que incompleto – mas inegavelmente superior quando se compara o início do século XXI com a década de 1980.
Dessa forma, a CLT teve um papel estratégico porque ela foi constituída para o trabalho assalariado quando ele era praticamente residual no Brasil – menos de 1/3 das ocupações era assalariada – e o seu protagonismo foi tão importante que representou uma orientação em praticamente 50 anos. Então, o primeiro aspecto que precisamos considerar diz respeito a que trabalho nós queremos ter no Brasil nos próximos 30 ou 40 anos. Porque é esse o papel que a CLT teve quando da sua constituição na década de 1940. Tinha-se clareza de que o Brasil seria um país assalariado dali a três ou quatro décadas. Mesmo não tendo essa certeza foi se construindo uma série de elementos que apontaram perspectivas para o Brasil se industrializar, urbanizar-se e constituir uma classe operária assalariada, como de fato se constituiu a despeito das dificuldades etc.
Como estamos pensando o projeto nacional, o primeiro elemento que nos vem à mente é a sociedade que queremos daqui a 30 anos. Vai ser uma sociedade do trabalho assalariado? Vai ser uma sociedade do trabalho de diferentes tipos de contratação, não apenas assalariado, de cooperativas, de autônomos? Se nós não temos certeza sobre esse futuro, evidentemente, teremos de ter alguns princípios orientadores.
Logo, pensar o Brasil para as próximas décadas certamente representa levar em consideração a capacidade de as novas regras de regulação do mercado de trabalho terem capacidade de incorporar esses segmentos dando a eles condições de organizar seus interesses e, mais do que isso, terem condições mínimas de proteção. Por exemplo, os trabalhadores ambulantes – que em São Paulo já ultrapassa a casa dos 70 mil – precisam ser incorporados por uma legislação que lhes dê alguma segurança. Então, olhar o trabalho para o futuro em termos de desenvolvimento nacional requer, no meu modo de ver, a constituição de um padrão mais amplo em termos de regulação do trabalho, que não seja tão somente assalariado.
O segundo ponto, em termos de possibilidade de valorização do trabalho, significa ver as possibilidades que o Brasil tem perante o contexto da nova divisão internacional do trabalho. Em termos mundiais, a divisão do trabalho não é mais o que era tradição da divisão internacional do trabalho do século XX – o trabalho industrial e o trabalho agrícola. Parte da América Latina, especialmente o Brasil, conseguiu alterar a sua forma e se colocou como país industrial. Abriu assim a perspectiva de valorização do trabalho em melhores condições.
Hoje, os países que têm melhores condições de elevar a qualidade do trabalho foram os que fizeram fortes investimentos em tecnologia. Há um exemplo concreto disso: em 1979, segundo dados da OIT, o mundo tinha algo em torno de 45 milhões de desempregados – o desemprego aberto que é o conceito mais restrito de desemprego. E o G-7 (os sete países mais ricos do mundo) respondia por praticamente 33% do desemprego mundial. Em 2002, segundo a OIT também, o volume de desempregados no mundo havia aumentado para 160 milhões; e destes o G-7 responde agora por 12% do desemprego total. O que indica, na verdade, que o desemprego está se concentrando cada vez mais em termos absolutos nos países que menos investimentos tecnológicos têm feito.
Então, as oportunidades de valorizarmos o trabalho dizem respeito à inserção do Brasil na economia mundial e às opções que ele faz em termos de ampliar ocupações de maior qualidade. Portanto, o projeto nacional precisa levar em consideração os investimentos em tecnologia que, no meu modo de ver, são estratégicos; porque do contrário o Brasil torna-se um país com oportunidade de expansão do trabalho mas, em geral, um trabalho, mesmo com maior escolaridade dos trabalhadores, com postos muito simplificados – postos de trabalho que dependem basicamente do diferencial de competitividade no custo reduzido da mão-de-obra. Então, nesse sentido é muito difícil construir um país que tenha na sua unidade nacional trabalho, mesmo que em grande quantidade, com uma qualidade extremamente precária e que não ofereça aos ocupados uma condição de vida digna.
No estudo que fizemos algo é impressionante: temos, hoje, 1/3 dos trabalhadores com carteira assinada vivendo em condições de pobreza absoluta. Quer dizer, o fato de uma pessoa ter carteira assinada hoje não é condição suficiente para lhe permitir viver acima da linha de pobreza, quando se considera a renda desse trabalhador e o número de dependentes. Isso em 2002, pois em 1980 havia 7% dos trabalhadores com carteira assinada associados à vida abaixo da linha de pobreza.
Muitos – sobretudo os de visão neoliberal – dizem que o problema de enfrentar a pobreza é formado por aqueles que não têm carteira assinada. Esse não é mais o elemento diferenciador, no meu modo de ver, da situação de pobreza.
Para mim, o governo Lula ainda tem um bom problema. O mau problema é não ter empregos. Estamos numa situação em que a taxa de desemprego caiu, especialmente em 2004-5, comparativamente a 2003. Ou seja, havendo produção haverá aumento de emprego. O péssimo problema é não ter emprego. Nós estamos diante de uma situação diferente: aumentou o emprego. Não como gostaríamos, mas inegavelmente aumentou o nível de ocupação. Agora, precisamos ver como aumentar a qualidade dessa ocupação, que não é, no meu modo de ver, um problema de oferta da qualidade da mão de obra, mas, sobretudo, da demanda desses empregos que estão sendo gerados pelo padrão de produção. Atualmente se diferencia em termos de competitividade justamente pagando custos decrescentes em termos de trabalho. E nessa situação há um enfrentamento inegável com todas aquelas forças que pressupõem reduzir os direitos que os trabalhadores brasileiros conquistaram ao longo do século XX.
Toda uma mobilização que está em aberto, certamente, na hipótese de haver uma discussão maior a respeito da reforma trabalhista e inegavelmente a questão dos direitos vai ser recolocada novamente. Isso foi tentado por várias oportunidades do governo Fernando Henrique. Uma das primeiras medidas do governo Lula foi retirar a mudança que tinha sido aprovada pela Câmara e já estava no Senado que era, na verdade, a flexibilização da CLT em termos de flexibilização para baixo. A CLT é flexível para cima, ou seja, os trabalhadores, as empresas podem acertar jornadas inferiores de trabalho, inferiores a que a legislação da CLT estabelece. Quer dizer, não pode aumentar a jornada de trabalho. E o governo FHC apontava justamente a flexibilização para baixo. E isso foi interrompido pelo governo Lula em termos de medida institucional; embora verificamos ainda que, a despeito de ter sido interrompida, a realidade do mercado de trabalho frente à abundância da população que sobra às necessidades do capital termina tensionando para que se aceitem formas muito precárias de ocupação.
Então, um projeto de desenvolvimento nacional precisa olhar o Brasil para as próximas 30 décadas e perceber que nós estamos diante da possibilidade de ter um mercado de trabalho mais heterogêneo. Se essa for a dinâmica predominante é necessário contar com um regulação pública que dê conta dessa heterogeneidade. Não apenas o movimento de homogeneidade do mercado de trabalho assalariado, mas também outras formas de trabalho. Inclusive porque do contrário haverá uma tensão crescente em definir os trabalhadores assalariados com direitos como sendo privilegiados porque eles representam uma parcela pequena da população. Para se ter uma idéia somente um de cada três ocupados no Brasil tem carteira assinada (PNAD-2002). Nesse sentido, no meu modo de ver, é estratégico o ponto de vista do movimento sindical.
Por outro lado o futuro do trabalho valorizado no Brasil depende, na verdade, de uma alteração profunda da inserção do Brasil na economia mundial.
A. Sérgio Barroso é médico, membro do Comitê Central do PCdoB e doutorando em Economia Social e do Trabalho pela Unicamp.
Edvar Luiz Bonotto é doutor em direito pela PUC-SP e membro da comissão editorial de Princípios.
EDIÇÃO 80, AGO/SET, 2005, PÁGINAS 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32