Luta pela igualdade racial
O combate ao racismo é parte integrante do projeto de emancipação nacional e social que fundamenta a própria existência do Partido Comunista do Brasil. Por isso mesmo, trata-se de uma luta que envolve todo o coletivo partidário e não apenas os militantes que atuam na frente específica de combate às manifestações de racismo contra os negros brasileiros. É uma luta dos trabalhadores e de todo o nosso povo. Além disso, é uma luta libertadora de toda a humanidade, de todos os povos – portanto, uma causa internacionalista.
A plataforma política e de ação dos comunistas na luta contra o racismo no Brasil vincula-se às formulações programáticas e táticas do Partido. Estas atualmente afirmam a centralidade da questão nacional na luta para derrotar a agenda neoliberal e imperialista. O enquadramento político do combate ao racismo, portanto, deve situar essa luta nas singularidades que marcam a formação social do Brasil, contribuindo para a construção, a consolidação e o triunfo de uma agenda nacional de superação do neoliberalismo, e que abra a perspectiva de luta pelo socialismo renovado e de feição brasileira.
Apreender a singularidade de uma formação social concreta exige, na melhor tradição do pensamento marxista, o exame das mediações que se estabelecem entre o complexo de modos de produção e reprodução da vida material em determinada sociedade e a subjetividade social que se torna dominante no seu interior. Tal subjetividade inclui valores, manifestações culturais, formas de relacionamento interpessoal, psicologia social e individual etc.
A singularidade da formação social brasileira é resultado das próprias particularidades que marcaram a colonização portuguesa na América.
Entre elas, se destaca o dilema da ocupação e colonização de terras gigantescas e da sua incorporação aos novos circuitos globais de comércio a partir de uma base populacional extremamente reduzida na metrópole. Decorre disto o formato de poligamia patriarcal opressora assumido pela colonização escravocrata como prática de ocupação e dominação.
O domínio de classe confundiu-se, durante todo o período escravista de nossa história, com a opressão racista que subordinou indígenas e africanos escravizados ao colonizador europeu. O racismo é um aspecto fundamental do domínio de classes, sendo a faceta cruel da opressão social que complementa e reforça o domínio classista.
Estas marcas de nascença deixaram um legado contraditório na sociedade brasileira. O Brasil é uma Nação forjada pelo nosso povo com muitas lutas e sacrifícios. Sobre as bases da embrutecedora violência escravocrata, difundiu-se forçadamente a miscigenação e formou-se uma subjetividade própria que fundiu elementos da cultura indígena e africana aos da cultura portuguesa dominante (ela mesma fruto de uma singular fusão de elementos europeus e norte-africanos na península ibérica).
Estes traços nacionais originais sobreviveram à própria ordem escravocrata e foram enriquecidos (mas não decompostos ou suplantados) pelas levas de imigração (européia, árabe e asiática) que acompanharam, em seguida, a gênese do capitalismo no país.
Esse processo que foi criando o povo brasileiro, através dos séculos, ainda está em curso. Porém, mesmo ainda em formação, nosso povo possui uma identidade nacional e cultural, somos um povo-nação.
Conforme assinala o documento 500 anos de luta, do Comitê Central do PCdoB, o “processo histórico dessa formação foi doloroso, brutal, marcado pela escravidão e pela violência, condicionado pelos interesses de uma elite colonizada”. Todavia, o resultado é “um povo novo, uno, com um modo original de afirmar sua identidade”.
A mestiçagem, fenômeno objetivo e cultural, é um dos elementos fundamentais do processo que nos tornou brasileiros. Independentemente das aparências físicas diferenciadas, nas quais sobrevivem as ancestralidades de nossas matrizes, não há grupos étniconacionais que disputam autonomia frente ao Estado brasileiro, como é comum em vários países.
No entanto, essa situação singular do Brasil não configurou uma “democracia racial”. A origem escravista de nosso país deixou, igualmente, um duplo e perverso legado racista.
O primeiro, fruto do projeto das classes dominantes desde a escravidão, é um racismo estrutural que preserva ampla predominância de negros nas camadas mais pobres e oprimidas da população (ou seja, mesmo com a miscigenação, o capitalismo brasileiro manteve e realimentou o recorte racista da nossa estrutura de classes).
O segundo é um racismo de caráter ideológico explícito (embora, em geral, não assumido) que, apesar da decisiva contribuição dos africanos para a nossa identidade nacional, intenta legitimar-se associando a imagem do negro a condições de inferioridade, a manifestações irracionalistas ou a comportamentos anti-sociais.
O duplo legado racista na sociedade brasileira e a nossa singularidade nacional impõem aos comunistas uma política original e propriamente brasileira de combate ao racismo, que articule políticas públicas universais e específicas. É necessário defender e implementar políticas universais de cunho social, isto é, de redistribuição de riqueza e renda, e de garantia de serviços públicos e direitos sociais.
Considerando a existência das desigualdades sociais descritas acima, e o entrelaçamento da opressão de classe, racista e de gênero na nossa sociedade, as políticas públicas específicas de combate ao racismo são imprescindíveis. Para o avanço da luta pela igualdade social entre todos os brasileiros é preciso inclusive propor o tratamento desigual e favorável daqueles que estão em situação desigual.
Entretanto, do ponto de vista político, uma política nacional de combate ao racismo deve unir o povo contra os mecanismos capitalistas que estruturam e reproduzem a marginalização de grande parte dos negros brasileiros, historicamente vitimados pela desigualdade social. Desse modo, essa política deve buscar a ampliação da consciência dos trabalhadores sobre a opressão de classe e o entrelaçamento desta com a opressão racista, estimulando o reforço da solidariedade entre os trabalhadores e evitando a exacerbação de tensões particularistas no seio de nosso povo que impeçam a construção de um projeto nacional contra-hegemônico.
É preciso defender a implementação de políticas que, para além de combater manifestações racistas explícitas ou veladas em todas as dimensões da vida, promovam ativamente uma imagem positiva dos negros no imaginário social, destacando tanto a sua participação decisiva na construção da nacionalidade quanto a sua presença na sociedade atual.
O resgate simbólico e material do componente negro da nossa formação social parte da valorização da natureza mestiça da sociedade e do povo brasileiros. Essa condição original do Brasil nos fornece uma base mais sólida para a superação do racismo, a democratização das relações sociais e a promoção de valores humanistas em nosso país, ao contrário do essencialismo multiculturalista de fundo racial difundido entre nós pelos aparelhos ideológicos do imperialismo.
Tal concepção multiculturalista absolutiza as diferenças culturais, tornando-as antagônicas, promovendo a fragmentação e legitimando o conceito de políticas focalizadas e compensatórias, dentro da perspectiva neoliberal de Estado. O imperialismo investe na segmentação da sociedade brasileira, é a velha política imperial de dividir para reinar.
A mais ampla e sólida unidade popular e patriótica é imprescindível para avançarmos na luta antiimperialista e pelo socialismo renovado no Brasil. Os comunistas brasileiros compreendem a luta anti-racista como elemento intrínseco da sua luta libertadora, herdeira do brado de Palmares.
Comitê Central do Partido Comunista do Brasil.
EDIÇÃO 80, AGO/SET, 2005, PÁGINAS 60, 61