São imprevisíveis os desdobramentos da grave crise política que atormenta o Brasil. Deflagrada em 14 de maio a partir de reportagem da sinistra revista Veja que flagrou um funcionário dos Correios embolsando uma propina de R$ 3 mil, os escândalos se sucedem num infindável pesadelo para os atuais ocupantes do governo. Muitos erros foram cometidos, como reconhece a própria direção do PT, e muitas lições deverão ser extraídas deste deprimente episódio. Entre outros, a crise revela as distorções da badalada democracia burguesa, que depende cada vez mais das milionárias campanhas eleitorais e das manobras para garantir a tal governabilidade, tornando-se um terreno propício inclusive para deploráveis degenerescências.

Outro ensinamento – razão deste artigo – é sobre o caráter golpista e hipócrita da oligarquia burguesa. Sem recorrer aos quartéis, como nos tempos da “guerra fria”, ela agora faz de tudo para paralisar, desgastar e – se pintar uma oportunidade –, para derrubar o presidente Lula.

Quem ainda nutria ilusões em relação a um cenário de “paz e amor”, com a isenção da mídia e a postura civilizada das elites, deve estar pasmo. De nada adiantaram as concessões ao deus-mercado, a ênfase no terreno institucional e o afastamento do povo brasileiro dos embates políticos. A elite quer sangue! A mesma surpresa deve estar inquietando os que colocaram um sinal de igualdade entre o governo Lula e o bloco conservador-liberal desalojado do poder em 2002.

Corrupção e hipocrisia

O PSDB, como representação orgânica desse bloco, jogará sujo e pesado para retomar as rédeas do Brasil. O dantesco teatro das várias Comissões Parlamentares de Inquérito em tramitação no Congresso Nacional prova que vale-tudo nessa conspiração execrável. Até os tucanos se apresentarem como os paladinos da ética, quando a sua triste história mais lembra a figura de um urubu carniceiro e fétido! Nos oito anos de reinado de FHC o que não faltaram foram escândalos, sempre acobertados pela mídia venal e mantidos impunes no severino parlamento. Para refrescar a memória, basta lembrar alguns dos casos mais graves:

• Sivam: Logo no início da gestão de FHC, denúncias de corrupção e tráfico de influências no contrato de US$ 1,4 bilhão para a criação do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam) derrubaram um ministro e dois assessores presidenciais. Mas a CPI instalada no Congresso, após intensa pressão, foi esvaziada pelos aliados do governo e resultou apenas num relatório informações requentadas ao Ministério Público.

• Pasta Rosa: Pouco depois, em agosto de 1995, eclodiu a crise dos bancos Econômico (BA), Mercantil (PE) e Comercial (SP). Através do Programa de Estímulo à Reestruturação do Sistema Financeiro (Proer), FHC beneficiou com R$ 9,6 bilhões o Banco Econômico numa jogada política para favorecer o seu aliado ACM. A CPI instalada não durou cinco meses, justificou o “socorro” aos bancos quebrados e nem sequer averiguou o conteúdo de uma pasta rosa, que trazia o nome de 25 deputados subornados
pelo Econômico.

• Precatórios: Em novembro de 1996 veio à tona a falcatrua no pagamento de títulos no Departamento de Estradas de Rodagem (Dner). Os beneficiados pela fraude pagavam 25% do valor destes precatórios para a quadrilha que comandava o esquema, resultando num prejuízo à União de quase R$ 3 bilhões. A sujeira resultou na extinção do órgão, mas os aliados de FHC impediram a criação da CPI para investigar o caso.

• Compra de votos: Em 1997, gravações telefônicas colocaram sob forte suspeita a aprovação da emenda constitucional que permitiria a reeleição de FHC. Os deputados Ronivon Santiago e João Maia, ambos do PFL do Acre, teriam recebido R$ 200 mil para votar a favor do projeto do governo. Eles renunciaram ao mandato e foram expulsos do partido, mas o pedido de uma CPI foi bombardeado pelos governistas.

• Desvalorização do real: Num nítido estelionato eleitoral, o governo promoveu a desvalorização do real no início de 1999. Para piorar, socorreu com R$ 1,6 bilhão os bancos Marka e FonteCidam – ambos com vínculos com tucanos de alta plumagem. A proposta de criação de uma CPI tramitou durante dois anos na Câmara Federal e foi arquivada por pressão da bancada governista.

• Privataria: Durante a privatização do sistema Telebrás, grampos no BNDES flagraram conversas entre Luis Carlos Mendonça de Barros, ministro das Comunicações, e André Lara Resende, dirigente do banco. Eles articulavam o apoio à Previ, caixa de previdência do Banco do Brasil, para beneficiar o consórcio do banco Opportunity, que tinha como um dos donos o tucano Pérsio Árida. A negociata teve valor estimado de R$ 24 bilhões. Apesar do escândalo, FHC conseguiu evitar a instalação da CPI.

• CPI da Corrupção: Em 2001, chafurdando na lama, o governo ainda bloqueou a abertura de uma CPI para apurar todas as denúncias contra sua triste gestão. Foram arrolados 28 casos de corrupção na esfera federal, que depois se concentraram nas falcatruas da Sudam, da privatização do sistema Telebrás e no envolvimento do ex-ministro Eduardo Jorge. A imundície no ninho tucano novamente ficou impune.

• Eduardo Jorge: Secretário-geral do presidente foi alvo de várias denúncias no reinado tucano: esquema de liberação de verbas no valor de R$ 169 milhões para o TRT-SP; montagem do caixa-dois para a reeleição de FHC; lobby para favorecer empresas de informática com contratos no valor de R$ 21,1 milhões só para a Montreal; e uso de recursos dos fundos de pensão no processo das privatizações. Nada foi apurado e hoje o sinistro aparece na mídia para criticar a “falta de ética” do governo Lula.

• Engavetador-geral: Apesar dos escândalos que marcaram sua gestão, FHC impediu qualquer apuração e sabotou todas as CPIs. Contou ainda com a ajuda do procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, que ficou conhecido como “engavetador-geral”. Dos 626 inquéritos listados até maio de 2001, 242 foram rejeitados e outros 217 foram arquivados. Estes envolviam 194 deputados, 33 senadores, 11 ministros e quatro deles o próprio FHC. Nada foi apurado, a mídia evitou o alarde e os tucanos ficaram intactos.

Lula inclusive revelou há pouco que evitou reabrir tais investigações – deve estar arrependido dessa bondade!

Questão de classe

Diante de fatos irretocáveis, fica patente que a atual investida do PSDB-PFL não tem nada de ética. FHC, que orquestrou a recente eleição de Severino Cavalcanti para presidente da Câmara, tem interesses menos nobres nesse embate. Desalojado do poder em 2002, o bloco liberal-conservador parte para a revanche de maneira sórdida. Mesmo preservando a dupla Palloci-Meireles, que agravou sua política macroeconômica neoliberal, a elite não tolera os atuais ocupantes do Planalto. Por uma questão de classe, ela tem ojeriza ao novo bloco no poder oriundo das lutas dos trabalhadores, dos sem-terra e de outros setores populares. Por seu caráter autoritário, ela não aceita ter sido apeada do Palácio após cinco séculos de dominação.

Como argumenta o teólogo Leonardo Boff, “mesmo vitoriosas no campo econômico, elas não se sentem tranqüilas. Suspeitam que os movimentos sociais poderão, num momento crítico, pressionar o governo a mudar as regras do jogo econômico, dando centralidade ao social. Por isso, segundo elas, há de pressionar e até emparedar Lula. Ele é um obstáculo à volta das elites ao poder. É empecilho ao seu enriquecimento perverso. O lugar de operário, dizem, é na fabrica, não no governo e na gerência da coisa pública.

Trata-se de uma questão de cultura de classe. O fato da corrupção, que deve ser investigada e apurada, ofereceu agora a ocasião que faltava para suscitar o velho sonho traiçoeiro das elites de se livrar de Lula”.

Além dessa questão de classe, a elite burguesa também discorda de vários aspectos avançados da política implementada pelo atual governo. O acompanhamento de seus porta-vozes na mídia e de seus veículos de difusão ajuda a decifrar as posições antagônicas do PSDB-PFL, esse condomínio das elites “modernas” e atrasadas a serviço do capital financeiro. Na sua cruzada contra o governo Lula, ele já elegeu seus alvos. Um dos principais é a política externa desenvolvida hoje pelo Itamaraty. Para os tucanos, ativos militantes dos interesses imperialistas, ela seria “retrógrada”, “terceiro-mundista” e de “confronto” com os EUA.

Postura entreguista

Recente edição da revista Primeira Leitura revela todo o ódio do bloco entreguista contra a política externa liderada pelo ministro Celso Amorim. Ela critica os entraves à Área de Livre Comércio das Américas (Alca); condena os “flertes mais do que explícitos com ditaduras”, referindo-se a Hugo Chávez; ridiculariza as medidas para diversificar as relações internacionais – a “estratégia Sul-Sul, que encanta o presidente, não encontra ressonância”. Só falta propor que o Brasil aceite, de joelhos, a tutela do imperador Bush e a sua anexação como colônia.

No mesmo diapasão, embora menos hidrófobo por razões de ofício, o diplomata Celso Lafer, ex-ministro de Collor e FHC, também critica o “excesso de retórica” da atual equipe do Itamaraty. Ele realmente deve entender de exageros. Afinal, na sua passagem pelo governo FHC, o tucano-colorido pecou pelo excesso de servilismo. Entre outras cenas deploráveis, ele exonerou o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães por suas criticas à Alca; foi cúmplice da pressão dos EUA contra o embaixador José Maurício Bustani na chefia da Organização para a Proibição das Armas Químicas (OPAQ) num gesto preparatório da invasão do Iraque; e deu declarações favoráveis à política belicista dos EUA. Ele também ficou conhecido por tirar os sapatos para ser revistado nos aeroportos dos EUA,
submetendo-se a tratamento humilhante.

Bem distinta passou a ser a postura do governo Lula. Um artigo do jornal O Globo, intitulado “Uma pedra no sapato dos países ricos”, registrou: “Há tempos (Amorim) avisou à embaixadora dos EUA no Brasil que não há força no mundo capaz de fazê-lo tirar os sapatos durante a revista da segurança dos aeroportos americanos – diferentemente do antecessor que passou pelo constrangimento. ‘Vou preso, mas não tiro o sapato’, diz Amorim”. A mesma conduta mais altiva levou o novo governo a promover Samuel Pinheiro para a secretaria executiva do Ministério de Relações Exteriores; a nomear Bustani para uma importante embaixada; a condenar a invasão do Iraque; a emperrar a Alca e a retomar e reforçar o Mercosul.

É essa ação externa – que hoje adquire caráter estratégico num mundo submetido à globalização neoliberal – que irrita parcelas das elites. Ela também ajuda a entender as recentes viagens de FHC, Alckmin e outros tucanos aos EUA. O ex-presidente até lidera um grupo, sediado em Washington, incumbido de monitorar a evolução da conjuntura na América Latina. Segundo o Financial Times (25/02/05), o grupo – também composto pela ex-representante comercial dos EUA, Carla Hills – recomendou ao governo Bush imediata reaproximação com a América Latina para evitar o perigo do avanço das esquerdas no continente.

Como observa Marco Aurélio Weisseheimer, “a campanha eleitoral de 2006 está levando o ex-presidente a tentar uma articulação internacional baseada em uma maior aproximação com os EUA e na crítica a ‘esquerdização’ da América Latina, particularmente em relação ao governo Chávez, apontado como fator de instabilidade política para a região. A parceria com a ex-representante comercial dos EUA, Carla Hills, é um claro indício da direção desse movimento”. Diante desses fatos, somente os cegos, os sectários e os ingênuos não enxergam os reais interesses dos “éticos” do PSDB e PFL, ativos militantes entreguistas.

Saudosismo autoritário

No seu assanhamento para retornar ao Palácio do Planalto – que aparece embalado na sórdida roupagem do combate à corrupção –, o PSDB também não esconde sua saudade da fase autoritária de FHC. Não é para menos que ele tem centrado suas críticas à pretensa “falta de autoridade” do presidente Lula no trato com os movimentos sociais, em especial na relação com o MST. Ao mesmo tempo, tenta pousar de baluarte da democracia liberal, condenando qualquer ação do Estado contra a ditadura da mídia. Para desmascarar esses adeptos do “fascismo de mercado” vale relembrar algumas cenas do triste reinado tucano.

• Logo no início do seu primeiro mandato, FHC fez questão de “quebrar a espinha dorsal” do sindicalismo brasileiro. A greve dos petroleiros, iniciada em 3 de maio de 95, foi tratada com violência similar à dos piores períodos da ditadura militar. Nos seus 31 dias de duração, o governo ocupou refinarias com tropas do Exército, rompeu todos os canais de negociação e penalizou os sindicatos com pesadas multas diárias.

• FHC nunca negociou com as entidades do funcionalismo público, que teve seus salários congelados por oitos anos e foi vítima do desemprego causado pelo enxugamento do Estado. Através de várias medidas provisórias, sem consulta ao sindicalismo e ao parlamento, o PSDB fez a primeira onda da flexibilização trabalhista no país – impondo a contratação precária, o salário variável e a jornada de trabalho flexível.

• Outro alvo permanente da fúria tucana foi o movimento dos trabalhadores rurais sem-terra (MST). Com o servil apoio da mídia burguesa, FHC fez de tudo para satanizar o MST, a Contag e as pastorais da Igreja. O seu funesto ministro do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann, impôs portaria criminalizando a luta pela terra, ao proibir a desapropriação de latifúndios ocupados, instituiu a lógica do mercado no campo através do Banco da Terra e fechou os canais de negociação com os movimentos rurais. Chacinas de camponeses, como de Eldorado do Carajás (abril de 1996), e assassinatos de lideranças ficaram impunes na era FHC.

Agora, animada com a crise do governo Lula, a elite prepara a revanche contra os movimentos sociais. A postura fascistóide é explícita. Xico Graziano, ex-assessor particular de FHC, ex-presidente do Incra e hoje deputado do PSDB, não vacila em criticar o projeto do governo Lula de correção dos índices de produtividade rural – “que corresponde a cortar a cerca que delimita as propriedades e convidar sem-terra a invadi-las” –, em desqualificar o MST, a Comissão Pastoral da Terra e todos os setores que lutam pela reforma agrária e ainda insistem “na velha crítica ao latifúndio malvado”; e em condenar o governo porque este “não tem coragem de assumir a modernidade” e “negocia com o MST as suas estripulias”.

Num outro texto deste ideólogo do latifúndio e do agronegócio, publicado no E-Agora, Graziano é ainda mais hidrófobo. Para ele, “o MST é forte porque luta sem tréguas nem amarras, botando medo no Estado. Pouco lhe importa as regras da democracia representativa ou os ditames do Estado de Direito. Justiceiros, invocam cânones divinos e arrebentam cercas. Assim, na marra, ganham o respeito do Poder… No MST, persiste ainda o encantamento com sua luta. Alguns formadores de opinião, ao verem a marcha vermelha, alimentam uma espécie de fantasia retrógrada da revolução, a vontade de expiar o passado latifundiário. Gera-se, assim, uma benevolência a perdoar o banditismo rural, a ilusão a referendar o atraso despótico”.

A longa citação, carregada de desprezo pelos movimentos sociais, serve de alerta para o risco do retorno do autoritarismo tucano. A revanche seria maligna! Prova disso também se encontra na Comissão Mista de Inquérito (CPMI da Terra), instalada no Congresso Nacional, onde os deputados ruralistas do PSDB e do PFL procuram colocar no banco dos réus o MST, a CPT, a Contag e outros movimentos de luta pela terra. Todo esforço do bloco liberal-conservador, excitado com a possibilidade de retorno ao governo, é para criminalizar os movimentos sociais, reduzir seus espaços de participação democrática e beneficiar os grupos capitalistas do campo e da cidade. A defesa da ética só serve para disfarçar malignos propósitos!

Altamiro Borges é jornalista, editor da revista Debate Sindical e autor do livro Encruzilhadas do sindicalismo (Anita Garibaldi, 2005).

EDIÇÃO 80, AGO/SET, 2005, PÁGINAS 67, 68, 69, 70