O sociólogo Roger Bastide, europeu, declarou certa vez que, para entender o Brasil, seria necessário que nos fizéssemos poetas.

Essa afirmação tem mais significados e menos inocência do que possa parecer: indica que nosso país é algo tão peculiar que todos os paradigmas das ciências sociais até ali existentes não davam conta de apreendê-lo e de que a sintaxe acadêmica não bastava para nomeá-lo.

Ora, isso não é privilégio brasileiro. Basta que leiamos qualquer pensador que estivesse em busca de formular uma nova idéia sobre um novo qualquer fenômeno para que encontremos, em seus escritos, verdadeiros torneios verbais que bem poderiam ser tomados por versos engenhosamente elaborados. Revisitemos Sócrates, ou Kant, ou Marx, e lá encontraremos materializada a “função poética da linguagem”, como nos ensinou o lingüista Roman Jakobson.

De fato, a poesia é o primeiro caminho para o oculto e o inexplicado. No caso do Brasil, não havia como ser diferente. Com efeito, a maioria das tentativas de pensar nosso país até fins do século 19 redundou em literatura. A Carta de Pero Vaz de Caminha seria a primeira delas. O romance Iracema, de Alencar, é um outro marco. Assim como o foram Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antonio de Almeida, e outras memórias ainda mais célebres, as de Brás Cubas, de Machado de Assis. Seguindo o que acabou por se tornar tradição, vieram obras como Macunaíma, de Mário de Andrade; Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa; Vidas Secas e São Bernardo, de Graciliano Ramos, mais toda a prosa de Jorge Amado, Lins do Rego e Raquel de Queiróz; os seis volumes das Memórias, de Pedro Nava; até chegar a Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, e a outros autores mais recentes.
Versejadores também tentaram. De Santa Rita Durão, ao contemporâneo Ferreira Gullar, autor de Poema Sujo, passando pelos românticos Gonçalves Dias e Castro Alves e pelos Andrades modernistas e seu parceiro Manuel Bandeira, muitos foram os poetas que, entre um manifesto estético e outro, capturaram algum aspecto de nossa nacionalidade.

Certamente, a poesia tem seus limites. Era de se esperar que homens de ciência acorressem para dar seu contributo epistemológico. Havia um objeto carente de seu método.

Eia, pois, mãos à obra! E eis que vão surgindo Sílvio Romero, José Veríssimo e Manuel Bomfim. Um pouco depois, vêm Gilberto Freire, Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado, Inácio Rangel e, na esteira, Antonio Cândido, Nelson Werneck Sodré, Darcy Ribeiro, Alfredo Bosi, Edgar Carone, Clóvis Moura, Milton Santos, Roberto Schwarz, Ferreira Gullar e outros.

Vejam que na lista figuram dois poetas. Todavia, mesmo os que da métrica não eram mestres viram-se diante da necessidade de lançar mão dela para produzir muitas das passagens de seus ensaios e livros. No entanto, destes, talvez precisamente por abusar tanto da poética em seus estudos, os que parecem ter chegado mais perto do sentido do Brasil foram Gilberto Freire, Darcy Ribeiro e Alfredo Bosi. Para comprová-lo, sugerimos a leitura de Casa Grande e Senzala, do primeiro; O Povo Brasileiro, do segundo; e História Concisa da Literatura Brasileira e Dialética da Colonização, do último.

Não é nosso objetivo analisar essas obras aqui. Mas ousamos dizer que o traço que as une seja uma espécie de caminhar em voleio, uma abordagem em curva, nada cartesiana, radicalmente dialética e interdisciplinar, que, ao realizar uma prospecção verticalmente profunda, provoca ondas largas e progressivas que cobrem, a cada passo, superfícies mais extensas do tecido da história nacional para, de posse de cada vez mais fatos estendidos no tempo, aprofundar ainda mais o entendimento das raízes que os animam.

Essa procura, esse esforço, por formular um método próprio de pesquisa e entendimento do Brasil foi e ainda é constantemente criticada por uma pequena variedade de setores da prestigiada inteligência brasileira, tanto à direita, como à esquerda, preocupada em não perder o passo com as novidades teóricas européias e estadunidenses, sejam elas de hoje ou de antanho. Destes setores, vêm os petardos contra o legado freireano, a pretexto de combate ao seu luso-tropicalismo, ao qual é reputado, não sem alguma razão, certo racismo e algum conservantismo político, e contra as contribuições de Darcy Ribeiro, por suas filiações afetivas e políticas ao trabalhismo getulista e brizolista.

Alfredo Bosi também tem o seu quinhão nesta contenda. Intelectuais um tanto exageradamente fiéis ao materialismo-dialético não lhe perdoam o catolicismo militante e seu talhe hegeliano, aliados ambos às referências a Benedeto Croce.
Ao que parece, o rigor acadêmico não consegue evitar (ou esconder?) as apreciações ideologizadas das contribuições científicas que, por definição (do mesmo modo ideológica?), deveriam ser “ideologicamente neutras”.

Não o são, já sabemos, mas nem por isso deixam de ser contribuições importantes e, em alguns casos, fundamentais para o pensamento brasileiro em sua marcha rumo à compreensão do país do qual nasceu. Não é porque nos desagrada a árvore que vamos lançar fora, sem prová-los, os frutos. Ao menos para doce ou suco podem servir.

No caso em tela – o da construção de um método próprio de investigação de nossa cultura –, muitos dos tais frutos servem para bem mais que sobremesa: são a base mesma da alimentação de nosso espírito. E, talvez, por isso, provoquem tanta grita e alguns muxoxos.
Não é para menos: o Brasil é tão ou mais enigmático que um gato: por mais que caia, está sempre de pé. E aquele que ousa avançar no entendimento deste mistério, ainda que timidamente, e usando as armas teóricas que tem, parece sempre merecer a desconfiança geral.

O esforço de pular com o gato

Todavia, talvez haja razões mais fundas que expliquem, tanto a resistência, quanto a ousadia de abrir caminhos metodológicos próprios. Nossa condição colonial, expressão cunhada pelo professor Alfredo Bosi, parece-nos um ponto de partida adequado. Longe de querer esgotar a polêmica, e conscientes dos limites deste texto, podemos dizer, num esforço de síntese, que o Brasil desde suas origens é marcado por três fardos: a dominação estrangeira, o conservadorismo de suas elites e a exclusão social. Essas três características de nossa formação se alimentam mutuamente e marcam, até os dias atuais, nossa cultura – entendida aqui como espaço de signos por onde nos movimentamos e trocamos, chocamos e, vezes sem conta, amalgamamos símbolos.

As marcas de dominação de nossa cultura não estão apenas em nossos veículos e suportes audiovisuais congestionados por produtos vindos diretamente dos Estados Unidos, ou por aqueles de fatura nacional reprodutores dos mesmos valores estéticos e éticos dominantes lá: elas podem ser verificadas em nossa produção intelectual que, tradicionalmente e por sendas as mais diversificadas, tem repetido entre nós modelos e explicações teóricas que, sem resistir aos fatos, faliram em seus países de origem e, qual medicamentos condenados por suas próprias vigilâncias sanitárias, são despejados em nosso mercado para que não se percam os investimentos realizados e se concluam os experimentos terapêuticos. Neoliberalismo, pós-modernidade, multiculturalismo, terceira via foram, nos últimos vinte anos, alguns dos mais destacados contrabandos nesta área; ou, por outras palavras, algumas das novas roupagens para as velhas idéias que fundamentam nossa vulnerabilidade e calçam os outros dois pilares de nossa cultura dominante – o conservadorismo e o elitismo.

O primeiro evidencia-se na sobrevivência de velhos preconceitos – étnicos, sociais, sexuais, etários, morais – e de padrões de comportamento intolerantes; na persistência de velhos clichês estéticos; no retorno saudosista a modas e hábitos passados; e na sempre renovada histeria mística.

No campo das idéias, imperam as noções de imutabilidade dos fenômenos, em contraste com o princípio de movimento e transformação da matéria e do espírito; de falência da ciência, em oposição à capacidade humana de conhecer o mundo objetivo; de presente contínuo (só o agora existe) e de inviabilidade de projetos coletivos, que se opõem às idéias de perspectiva histórica e de gregarismo; de fragmentação, atomização e particularidade, que negam as noções de totalidade, de sistema e de generalização de experiências.

Já o elitismo configura-se na inacessibilidade – para a maioria da população brasileira –, aos meios de produção, circulação e fruição dos bens culturais; na qualidade duvidosa da educação básica; nas vagas, a cada ano, mais escassas nas universidades públicas e mais numerosas nas privadas; no monopólio dos meios de comunicação; em nosso baixo desenvolvimento tecnológico; na precariedade das instituições republicanas – a despeito dos tímidos avanços, blindadas aos reclamos e participação populares, e franqueadas aos interesses do capital.

Usina e produto de contradições

Como não poderia deixar de ser, toda essa situação protagonizada pelas classes dominantes brasileiras provoca, inevitavelmente, a resposta dos setores sociais prejudicados e, portanto, descontentes: por sob o peso de todos os fados contínua e renovadamente germinou e se espalhou, com mais ou menos força, conforme a conjuntura histórica, aquilo que Machado de Assis chamaria, para explicar a literatura de seu tempo, de “instinto de nacionalidade”, que cedo transformou-se em luta por independência e soberania, democracia e justiça social.

No campo da produção simbólica, uma infinidade de movimentos espocou, subiu alto e experimentou o ocaso, mas sempre deixando um rastro ao qual vieram se somar outros movimentos. Todos surgiram para pôr fim a um certo estado da cultura brasileira; para renová-la. O item identitário, que os liga por heranças sucessivas e, assim, insculpe em nossa história uma linha contínua, é a resistência: à dominação estrangeira sempre era preciso opor o caráter nacional, seja lá o que isso fosse e como fosse; ao conservadorismo das elites, era preciso combater com a idéia da mudança, da renovação estética e moral; ao elitismo era preciso responder com o mergulho nas raízes populares e com a democratização da vida nacional.

Desta confrontação de campos tão opostos, produtos de classes também opostas e em perpétuo antagonismo, é que se foi tecendo a cultura brasileira. Dos contrários resultaram modos peculiares de escrever, compor, cantar, dançar, cozinhar e comer, esculpir, morar, filmar, atuar, vestir, falar, fazer sexo, comunicar, propagandear e vender, até mesmo de organizar-se política e socialmente e governar, com tudo o que isso implica.

A cultura brasileira, por meio dessa antinomia, chega até nossos dias, tal qual um gato: ainda mais complexa, mais contraditória. Inapreensível em uma palavra ou sentença desdobra-se em livros e teses e não se deixa capturar inteira. Elegante, grácil; por vezes agressiva – presas e unhas à mostra – ela se entremostra com uma variedade enorme de atores e de velhas e novas manifestações e símbolos. Investigá-la hoje, entendê-la, requer uma imersão funda em todas as suas direções e dimensões.

Usina de símbolos que é, ela também participa da movimentação da economia nacional, ao tempo que agrega e mobiliza indivíduos de uma mesma comunidade e de comunidades diferentes. Sob o impacto das novas tecnologias, num mesmo movimento, se democratiza e se elitiza ainda mais. Debaixo da avalanche de idéias, posturas e produtos globalizados, vai propiciando a apropriação, a fruição e o surgimento de formas de expressão novas, no mesmo passo que é palco da perda de certas identidades e faz-se cemitério de algumas tradições e hábitos. No mesmo instante que promove encontros, se divide em vários guetos e segrega.

Novo ciclo cultural

Esse conjunto alentado de contradições ganhou ainda maior ênfase com a posse do atual governo da República. A eleição de um operário, apoiado por forças políticas e sociais que estréiam na condução do Estado brasileiro com a tarefa de implementar um programa de mudanças estruturais em todos os campos da vida nacional, provoca no campo da cultura o desmoronamento da muralha que tem represado o setor até então.

Ao escolher, para ministro da Cultura, o compositor Gilberto Gil, o presidente Lula, sem se dar conta, promoveu o encontro histórico de importantes correntes do pensamento e da ação cultural brasileira. Personagens que estavam na ponta ou na base do movimento passam a atuar dentro do governo. Desse encontro, nasceram programas e ações que estão alterando a face cultural do país e contrariando poderosos interesses econômicos. A proposta de Lei Geral do Audiovisual e as mudanças operadas no campo do fomento à cultura são emblemáticas, assim como o Programa Cultura Viva, cujo objetivo é constituir e potencializar uma rede de Pontos de Cultura no Brasil e no exterior.

Esses programas e iniciativas nascem justamente de um ponto de vista ancorado, não em fórmulas rígidas e pré-moldadas, mas na mesma matriz conceitual que produziu os movimentos de dança e luta da capoeira, os dribles do boleiro, o caminhar gingado do passista da escola de samba, as curvas da arquitetura de Niemeyer, a batida da bossa nova e a poesia brasileira: rica e despretensiosa em Bandeira; epicamente prosaica em Drummond; afetuosa em Vinícius; coral e pedestre em Gullar.

Tal matriz foi cozida na panela de barro do povo brasileiro. Os temperos começaram a ser refogados lá trás, sobre as chamas do primeiro fogão à lenha. Hoje, seu caldo apura num microondas digital, operado de vários computadores dotados de programas livres e conectados via satélite. Sua consistência indica que podemos estar entrando num novo ciclo de renovação da cultura nacional – o gato troca o pêlo – gestado no chão multicor da pátria, mas, curiosamente, destinado a ganhar escala a partir do interior do Governo Federal.

Isso tem seus riscos, é verdade. Na relação entre Estado e movimentos sociais, estes últimos sempre acabaram ou liquidados, ou institucionalizados. Em ambos os casos, submetidos. Entretanto, dadas as características da atual gestão ministerial e a conjuntura histórica e cultural da atualidade, o risco maior talvez seja tudo isso dar certo e, para gáudio do povo e desespero dos conservadores, os estudiosos e ativistas da cultura se vejam mais uma vez obrigados a buscar na poesia os instrumentos para entender o enigma Brasil.

Que todas as divindades não permitam que essa trajetória seja interrompida e que o gato, de um salto, faça-se onça.
Amém e saravá.

Élder Vieira é escritor e chefe de gabinete da Secretaria de Programas e Projetos Culturais do Ministério da Cultura.

EDIÇÃO 80, AGO/SET, 2005, PÁGINAS 52, 53, 54, 55