Que fazer com a Região-problema? A pergunta de 1959-60 recoloca-se agora. Naquele momento, a resposta do Estado brasileiro, para alívio das elites regionais, amedrontadas pelos flagelados da Seca de 1959 e pela “ameaça comunista” das Ligas Camponesas – era então o Nordeste “região explosiva”, segundo Josué de Castro – seria dada pela instituição da Sudene e pela perspectiva positiva do planejamento regional delineada no Relatório do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN).

Hoje, extinta a Sudene, a Região ainda tem muitos problemas. Não só sua renda per capita é de apenas 60% da nacional, como 17,6% dela têm origem em transferências governamentais (1). Na maioria de suas sub-regiões, mais de 30% da população têm menos de quatro anos de estudo e menos de 4% de seus habitantes tem 12 ou mais anos de estudo. A seca de 1998-1999 fez com que mais de 90% das lavouras de mandioca e de algodão se perdessem, nos cinco estados mais afetados, e empurrou, em todo o Nordeste, 1,2 milhão para as frentes produtivas (novo nome para as frentes de trabalho velhas de um século). São dados “de chegada”, indicadores dos malogros de quatro décadas.

Nesse interregno houve vários programas e planos de desenvolvimento. E há novos, involucrados pela Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR) do Ministério da Integração Regional. A seguir procuraremos avaliar algumas das propostas dessa Política, com base numa revisão dos (des) caminhos tomados pelo planejamento para o desenvolvimento do Nordeste nas últimas décadas.

Do planejamento regional à tecnocracia

A viabilização histórica da Sudene tomou rumo distinto do preconizado pelo Relatório do GTDN. A industrialização regional nordestina foi a linha de ação mais frutífera – e praticamente a única a que se deu atenção após o golpe de 1964. No entanto, não se implementou o centro autônomo de expansão manufatureira preconizado pelo GTDN. Ali, a experiência de desenvolvimento regional, com base na industrialização incentivada (2), sujeitou-se às determinações da oligopolização da economia brasileira. Efetivamente a região se industrializou e se integrou à base produtiva do Centro-sul. Ainda que o preço da integração tenha sido a complementaridade, a importação de capitais e um parque industrial em boa medida não-nordestino.

A complementaridade avança nos anos de 1970 à medida que se adota a estratégia de desenvolvimento polarizado com vistas à integração nacional, que culminará no II PND.
Na década anterior, enquanto o problema regional identificado pelo GTDN era a desproporção dos níveis de renda relativamente ao Centro-sul (e a tendência ao agravamento dessa disparidade), a preocupação explícita do II PND era incrementar o crescimento do produto nacional, aproveitando a vocação nordestina para explorar matérias-primas e bens intermediários. O comprometimento da indústria seria menos com a redução de desemprego do que com a geração de crescimento e modernização, fosse qual fosse o estado da concentração de riqueza.

A perspectiva positiva do planejamento regional sucumbia à perspectiva tecnocrática do planejamento “nacional”, esvaziando as instituições encarregadas do desenvolvimento regional dos princípios que nortearam sua criação. Caso típico da Sudene, concebida para canalizar e exercer uma vontade política regional em âmbito federal, no legislativo e no executivo.

“Não se tentava apenas lidar com as questões específicas da região, mas também estar presente nas instâncias que definem a política global do país, a fim de que nenhuma decisão maior fosse tomada sem ter em conta seus efeitos na região economicamente mais débil. Na medida em que o Poder Executivo foi ocupando mais espaço no campo das decisões substantivas, o princípio federativo se foi diluindo. A votação do orçamento federal, que era expressão maior da vontade política da nação, perdeu grande parte de seu relevo, a partir do momento em que o executivo adotou a técnica da ‘liberação de verbas’ (…)

Não se pode desconhecer que o poder executivo, em particular no que respeita às instâncias que atuam campo econômico-financeiro, está sob forte influência das regiões em que se concentra o poder econômico… Carecendo de poder econômico, procurava o Nordeste valorizar o peso político que lhe advém de fatores históricos e da expressão demográfica. Contudo, esse fator político se anula, ou perverte, no quadro de um regime autoritário, que por definição é centralizador. Não é de admirar que a Sudene se haja descaracterizado a partir do momento em que se esvaziou a autonomia dos Estados e os governadores já não exerciam um mandato popular” (FURTADO, 1982: 136-7). De 1988 aos Eixos

No decorrer da crise da dívida externa e da crise fiscal do Estado brasileiro, a primeira vítima da onda desestatizante em formação seria as políticas de desenvolvimento regional. Daí em diante o declínio seria vertiginoso.

Destaque-se o ímpeto descentralizador promovido a partir de 1988. De repente, estados e municípios descapitalizados e despreparados eram chamados a assumir novas funções, entre elas o intrincado tratamento do planejamento regional e urbano, de que a União desobrigara-se quase que por completo.

“O exemplo que sintetiza a perfeição os efeitos danosos da mudança nas relações intergovernamentais instituídas em 1988 é a corrida desenfreada das esferas estadual e municipal para atrair novos investimentos, por meio de isenções fiscais, de facilidade de financiamento e de preparação de infra-estrutura… Em suma, é essa a chamada ‘guerra fiscal’” (TAVARES, 2002: 244).

A guerra fiscal somar-se-ia ao léxico dos anos de 1990: globalização, localismo, territórios flexíveis, desregulamentação… Avança a privatização e o Estado passa a ser visto como instância meramente articuladora e mobilizadora dos esforços de modernização para o aumento da competitividade internacional. O Nordeste pós-globalização e pós-Plano Real são os “Nordestes”, onde se conformam em simultâneo “ilhas de produtividade” e “áreas de exclusão”, espaços dinâmicos que passaram a coexistir com áreas e sub-regiões estagnadas (ARAÚJO, 1995; 1999).

E no Brasil pós-globalização e pós-Real a “política” de desenvolvimento regional foi pautada pela extinção da Sudam e da Sudene, em 2001, e pela proposição dos “Eixos de Integração e Desenvolvimento Regional”. Recortadas as macro-regiões, foram obtidos doze eixos (sub-regiões) “atrativos” para investimentos privados em infra-estrutura de transportes e em plataformas de exportação. Pouco parece ter saído do papel.

Da PNDR a…

Recentemente divulgada, a proposta da PNDR esclarece que seu objeto principal
“são as profundas desigualdades de níveis de vida e de oportunidades de desenvolvimento entre unidades territoriais ou regionais do país… Atuar nos territórios que interessam menos aos agentes do mercado, valorizando suas diversidades, configura-se como uma estratégia para a redução das desigualdades. Ou seja, a desigualdade de renda, na sua expressão territorial, decorrente da ausência e/ou estagnação da atividade econômica é o que interessa a essa política. Reduzi-la ajuda a construir um país de todas as regiões e não apenas de algumas” (MINISTÉRIO, 2003: 11-2).
Reconsidera, assim, a perspectiva positiva do planejamento para o desenvolvimento regional: há ações que devem ser feitas, cujo sentido maior seria

“sustentar uma trajetória de reversão das desigualdades regionais que, à exceção de curtos períodos históricos, não pararam de se ampliar no Brasil; [e] de outro, explorar, com afinco, os potenciais endógenos da magnificamente diversa base regional de desenvolvimento…
Alguns problemas, naturalmente, possuem maior afinidade com o desenvolvimento regional. De modo inverso ao que muitos pensam, o objeto da PNDR não é o combate à pobreza, que constitui um problema afeto a outros campos de ação pública, em especial o das políticas sociais” (ibid.: 12)

Com efeito, o combate à pobreza regional – mais efeito do que causa – não é objetivo direto das políticas de desenvolvimento regional. A ação pública voltada ao desenvolvimento regional deve ser, antes, de tudo, ação transformadora das condições econômicas que embotam a produção e a distribuição da riqueza, em suas dimensões territoriais. É a inação que engendra e multiplica a pobreza.

Nesse sentido, e desde uma perspectiva nordestina, gostaríamos de apontar alguns problemas que nos parecem mais prementes, cujo equacionamento deve constar das ações inspiradas pela PNDR:

A calamitosa situação econômica em que se encontra quase toda a área do Nordeste semi-árido. Sua agricultura tradicional foi desarticulada, seu território se urbaniza a cada dia à base de migrações intra-regionais (o que aumenta a demanda por água) e os “bolsões de produtividade” ali encontrados quase não se integram ao restante desta sub-região (3);

• a urgência com que se deve abordar a situação da infra-estrutura na região. Os portos são sub-aproveitados, a manutenção de boa parte da malha rodoviária é sofrível e as ferrovias foram sucateadas. Estima-se que a reversão dessa situação requer um investimento decenal da ordem de US$ 10 bilhões; e

• a urgente correção da extrema concentração espacial de Ciência e Tecnologia (C&T) na RMR de São Paulo e sua área de influência imediata (4). Sim, já se tomaram iniciativas localizadas dessa natureza em alguns estados do Nordeste; contudo, o que se requer são investimentos governamentais de porte, que favoreçam atividades com maior valor agregado – que, por sua natureza, podem ser desempenhadas por pequenas e médias empresas (5).

Mais que problemas, são desafios, e desafios dispendiosos; mas é essa a natureza de nossas questões regionais. Relembremos, por fim, com Gunnar Myrdal e Celso Furtado, que as desigualdades regionais (o problema) e a promoção do desenvolvimento regional (a solução) são questões políticas.

André Martins é doutor em Economia Aplicada pela UNICAMP.

Notas
(1) Média regional calculada a partir de dados obtidos em PNUD (2000). Em alguns estados, como a Paraíba, esse indece chegava a 20%. Já a média brasileira é de cerca de 14%.
(2) A forma arquitetada de financiamento do desenvolvimento industrial regional seria a alteração de investimentos privados com base em incentivos fiscais e cambiais, à qual associar-se-ia a formção de capital fixo pelo setor público (investimentos pré-industriais, sobretudo em infra-estrutura de energia e transportes, mas também em educação superior e saúde).
(3) Nesses "bolsões" predomina a fruticultura voltada à exportação, atividade com baixo efeito multiplicador. As cidades de porte médio que se estruturam em torno dessa atividade, como Petrolina (PE), têm igualmente o seu "bolsão" de seviços modernos, o que só acentua a concentração de riqueza. Para a maioria dos habitantes do Nordeste semi-árido acaba sobrando o alento das transferências governamentais (benefícios previdenciários, programas assistenciais). Alhures esse fato é denominado "economia sem produção" (MAIA GOMES, 2001); preferimos, contudo, vê-lo como um arremedo de política social que, na ausência de políticas de desenvolvimento regional, procura evitar estados de necessidade…
(4) A respeito observa TAVARES (op. cit.: 246) que ali "o grau de concentração espacial de C&T é maior do que o da indústria quando este atingiu o seu ponto mais alto".
(5) Cabe acrescentar que essa medida requer a extensão da rede universitária pública na região, já seja, pela abertura de novas universidades, já seja pela descentralização/ interiorização daquelas sediadas somente nas capitais regionais.

Referências bibliográficas

ARAÚJO, Tânia Bacelar de. "Por política nacional de desenvolvimento regional". Revista Econômica do Nordeste. Fortaleza: v. 330, n. 2, abril.-jun. 199, p. 144-61.
FURTADO, Celso. A nova dependência: dívida externa monetarismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
MAIA GOMES, Gustavo. Velhas secas em novos sertões: continuidade e mudanças na economia do Semi-árido e dos Cerrados nordestinos. Brasília: IPEA, 2001.
MINISTÉRIO DA INTEGRAÇÃO REGIONAL. Política Regional de Desenvolvimento Regional: proposta para a discussão. Brasília, dez. 2003.
PNUD. Atlas do desenvolvimento humano no Brasil- 200. Brasilia: PNUD, 2003. 1 CD.
TAVARES, Hermes Magalhães. "Políticas de desenvolvimento regional nos países do 'centro' e no BRasil". Cadernos IPPUR. Rio de Janeiro; IPPUR/UFRJ, ano XV, n.2, ago-dez. 2001/ ano XVI, n.1, jan-jul. 2002,p. 229-48.

EDIÇÃO 80, AGO/SET, 2005, PÁGINAS 33, 34, 35, 36