È sob o lema do marechal Cândido Rondon que devemos enfrentar o agravamento de alguns aspectos do Problema do Índio no Brasil. Nenhum sertanista, em qualquer outra parte do mundo, dedicou-se à causa indígena com a nobreza e o despojamento deste brasileiro de Mato Grosso.

Rondon conjugou a militância política contra a Escravidão e a favor da República com o apostolado dos índios, sempre de acordo com a linha de que os africanos e os europeus formam o tripé étnico do povo brasileiro e nele seguem um natural e inédito processo de miscigenação, embora guardando suas peculiaridades, como o fazem até hoje os imigrantes que escolhem esta como a sua Pátria. A obra de Rondon, e da equipe por ele formada no Exército e no Serviço de Proteção dos Índios, nos serve de lastro e bússola para reafirmar que o assunto deve ser tratado e resolvido nos marcos da Nação e do Estado brasileiros.

O Problema do Índio constitui, em variadas nuanças, um “conflito no seio do povo”. Opô-lo a outros infortúnios, dos seringueiros a garimpeiros e pequenos lavradores, é um disparate que nos cabe superar. De nós, a História espera que ofereçamos ao índio a outra face da civilização.
As diferenças entre as etnias tribais e a comunidade nacional, observando-se que esta inclui aquelas, foram muitas vezes tratadas pelos métodos da guerra. O etnocentrismo exacerbado doutrinou a expansão da fronteira nacional. Visto como “raça inferior”, “indolente”, “obstáculo ao progresso”, o índio foi vítima de perseguição sistemática, às vezes pontuada por episódios que nos envergonham até hoje, como no caso dos cintas-largas, atacados em reides aéreos nos quais as aldeias foram destroçadas a rajadas de metralhadoras e bananas de dinamite. Mulheres foram seviciadas e crianças tiveram a cabeça estourada com balas de fuzil. Tamanho sofrimento só é comparável ao dos escravos, e por isso é possível transpor do navio negreiro para as malocas os versos pungentes de Castro Alves:
“Senhor Deus dos desgraçados!/ Dizei-me vós, Senhor Deus!/ Se é loucura… se é verdade/ Tanto horror perante os céus?!”

Apesar da selvageria de origem urbana, sempre pulsou no Brasil uma corrente humanista que convém evocar e exaltar como parte altiva e inesquecível de nossa história. Como já foi dito, nossos historiadores tendem a focalizar o que deu errado. Destacam os vilões e omitem os heróis. A Igreja Católica, por exemplo, desde o pioneirismo da Companhia de Jesus no século XVI, protegeu os tupi da escravidão. É verdade que a proteção já selecionava os infortunados, pois o padre Manuel da Nóbrega tinha escravos africanos. A evangelização empreendida por jesuítas, dominicanos, franciscanos, salesianos, capuchinhos foi revisada pelo Conselho Indigenista Missionário, o CIMI, incansável na defesa da demarcação das terras indígenas.

A causa foi abraçada por espíritos mais nobres, como o padre José de Anchieta; o estadista José Bonifácio que, já no Império, formulou um programa de integração dos silvícolas; os escritores Gonçalves Dias, José de Alencar e Antônio Calado; os sertanistas Vilas Boas; o médico Noel Nutels; o etnólogo Darcy Ribeiro; os militares, além de Rondon, Antônio Martins Estigarribia, Vicente de Paula Vasconcelos, Júlio Caetano Horta Barbosa, Boanerges de Sousa, Manuel Rabelo; os funcionários José Maria de Paula e Gama Malcher. Merece destaque nesta galeria o grande cronista da saga brasileira, Gilberto Freyre, que, como nenhum outro estudioso, documentou e louvou a participação do índio, ao lado do negro, na formação de um povo.

Uma plêiade de estrangeiros também deu sua contribuição, bastando citar Claude Lévi-Strauss e Curt Unkel – este foi tão longe que se rebatizou com o nome guarani de Nimuendaju e, ao fim da vida, naturalizado brasileiro, mais parecia um parintintim do Amazonas que um alemão de Jena. Outros, como Hermann von Ihering, apesar de produzirem grande obra etnológica no Brasil, trouxeram na bagagem as noções de um evolucionismo infame. Em nome do progresso, Ihering pregou o extermínio sumário dos kaingang que resistiam à passagem da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil pelas terras deles.

Violências físicas e doutrinárias – como estas que, a bem da verdade, contaminaram a opinião pública – geraram o fértil debate, na primeira década do século XX, que redundou na criação do Serviço de Proteção aos Índios, o SPI. Embora tenha sido desmontado mais de uma vez, tirado do rumo humanista, carcomido pela corrupção, o SPI foi referência internacional porque nasceu admitindo a natureza interdisciplinar do problema, tanto que seu nome completo era Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais. Dirigido por Rondon, que viu no novo organismo a oportunidade de “trabalhar pela realização do sonho de José Bonifácio”, o SPI logo formulou para os índios uma política baseada na “incorporação definitiva e espontânea à civilização brasileira”. O Poder Público, enfim, impunha restrições à catequese por vezes desagregadora e assumia a tutela das tribos, zelando por seus costumes e terras.

Eis um assunto que exige ação imediata. Cabe ao Congresso Nacional votar o novo Estatuto do Índio e criar as condições, no Orçamento da União, para que as terras sejam efetivamente demarcadas. Não é uma invenção dos nossos tempos. Um alvará de 1680 já assegurava aos índios as áreas que ocupassem. Modernamente, a Constituição de 1988 foi sábia ao reconhecer “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Cumpre notar que a Constituição não trata os índios como alienígenas nem estrangeiros. Os índios são brasileiros. Integram o povo do Brasil, na sua unidade nacional orgânica. Existem muitas diferenças na população, a começar da classe social, com interesses diversos, por vezes antagônicos, mas o conceito de povo não opõe uns aos outros; antes os une estrategicamente na busca de soluções de problemas seculares.

Não temos, nem de longe, diferenças como as do Canadá, da China ou da Suíça, países onde co-existem mais de um idioma e nem por isso deixa-se de admitir a existência do povo canadense, chinês e suíço. No mosaico da nação, compartilham território e instituições. O povo brasileiro é, portanto, um só. Vive em comunidade na mesma jurisdição.
Compõe uma única nação, politicamente demarcada e regida por instituições universais em sua extensão nacional.

Está em curso no Brasil, no entanto, uma tentativa de conferir a grupos indígenas categorias históricas próprias de países, e de forma a implodir o conceito de nação tal como formulado por Marcel Mauss, para citar um autor quase hagiográfico na Antropologia. A nação, segundo ele, é “uma sociedade material e moralmente integrada, com poder central estável, permanente, com fronteiras determinadas, com relativa unidade moral, mental e cultural de seus habitantes que, por conseguinte, acatam o Estado e suas leis”.

Lesando os conceitos clássicos de tribos e etnias, vicejam no Brasil iniciativas para imprimir aos índios representações de povo, nação, estado, soberania territorial. ONGs, movimentos sociais e projetos legislativos ameaçam fragmentar a unidade do nosso povo e território. Surgem ações independentistas que pleiteiam a “autonomia dos povos indígenas em relação ao Estado brasileiro”. Brotam despautérios como o de que o Presidente da República e os tuxaua troquem embaixadores para se relacionarem como se representassem nações e países distintos. Se tal despropósito tiver êxito, provavelmente qualquer cidadão, talvez até o presidente da Funai, terá de visar o passaporte para entrar numa aldeia, e um índio será obrigado a passar na alfândega antes de ser atendido num ambulatório da cidade. Certamente, outros países também poderiam acreditar embaixadores junto a tribos da Amazônia, assim como ONGs dos Estados Unidos e da Europa abririam legações ideológicas nas aldeias.

É questão de tempo que novos absurdos venham a lume, como a instalação em terras indígenas de zonas francas, de áreas de livre-comércio com o Exterior, para a exploração da fauna e flora, e minérios. Ou a prática de atividades hoje vedadas no território nacional, a exemplo de cassinos, como os existentes em reservas dos Estados Unidos.

Do município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, na zona de fronteira com Colômbia e Venezuela, onde se situa a referência geográfica, que é o Pico da Neblina, vem outra manifestação de afrontamento à sociedade nacional. Por influência de lingüistas do Sul, a Câmara de Vereadores e a Prefeitura instituíram uma lei de co-oficialização de dois idiomas originais indígenas, ao lado do português e da língua geral, nos quais também deverão ser vazados os documentos oficiais e ministrado o ensino público.

Esta questão foi encerrada em 1759, quando o Marquês de Pombal declarou o português a língua oficial do Brasil, impedindo que o País se dividisse em dois idiomas, o português da elite e o nheengatu (“o bom falar”, na língua geral) que crescia entre o povo (note-se que Pombal, ao contrário do que se insinua, não era inimigo dos índios: quatro anos antes, patrocinara a Lei nº 6, que confirmava e ampliava o direito deles sobre as terras que ocupavam).

O ensino dos idiomas e dialetos indígenas tem coexistido com o português sem que seja necessário abrir precedente dessa natureza. Escolas bilíngües asseguram, nas aldeias, a alfabetização das crianças na língua, se já não materna, dos ancestrais. Atente-se que o alemão é o segundo idioma corrente no Brasil, assim como são falados, em bolsões de imigrantes, o italiano e o japonês, mas não ocorre a ninguém de bom-senso de equipará-los institucionalmente ao português.

Vale lembrar que nos Estados Unidos, fonte de idéias dos nossos recolonizadores, a alfabetização simultânea em inglês e espanhol, para as crianças de origem hispânica, está em debate. Já foi derrubada num plebiscito popular no estado da Califórnia. Atente-se, ainda, que, neste caso, certos lingüistas acham perfeitamente aceitável legislar acerca do idioma.

Uma incerta antropologia de viés tutelar estimula e ampara tantas distorções. Do desvio inicial do estudo contemplativo – que desdenhava a sorte dos que lhes ilustravam as teses acadêmicas –, está indo além do sapato ao querer custodiar as tribos. Emprenhada do mito de que o bom selvagem deve ser segregado dos males do mundo, em quarentena blindada de romantismo, infundem-lhes as idéias dos falanstérios que os homeopatas franceses quiseram implantar no Brasil no século XIX. Estas miragens de socialismo utópico contribuem para a libertação do povo tanto quanto as comunidades de bichos-grilo dos anos 1970.

Tais iniciativas afrontam a História do Brasil, uma epopéia de lutas memoráveis pela integridade do território e da língua portuguesa, lutas das quais os índios participaram ativamente, como na guerra de expulsão dos franceses e holandeses. Muita gente matou e morreu por isso. Parece claro como o Sol que essas inovações são fruto da conjuntura internacional de enfraquecimento dos Estados Nacionais e imposição de modelos de recolonização.

Toda construção histórica de nação e povo, unidos por um projeto este sim autônomo e independente, baseado nos interesses nacionais e populares, concretos e intangíveis, tem sido minada pela ideologia do neoliberalismo. Organismos internacionais, financiados por países desenvolvidos que nada têm a nos ensinar quanto à proteção das minorias, porque as submeteram ou as eliminaram, forjam doutrinas e aprovam resoluções que no limite alienam a soberania do Brasil. Agora mesmo, a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, já ratificada pelo Senado, abusa da expressão “povos indígenas” e serve de breviário aos que pretendem criar enclaves ultranacionais no território brasileiro.

É uma obviedade dizer, como já o disse há décadas o etnólogo Darcy Ribeiro, que o Problema do Índio não se resolve unilateralmente e à margem da sociedade brasileira, pois a ela se liga como um pai a um filho. Os homens que acreditam no progresso e na política como forma de obtê-lo não se podem seduzir pela miragem multiculturalista que semeia a cizânia na sociedade e busca atalhos pedregosos com a ilusão de resolver problemas sociais. Os índios são brasileiros e seu destino está atado ao do conjunto do nosso povo.

Sérgio Buarque de Gusmão é jornalista e editor da revista Bonifácio. Texto originalmente publicado em Bonifácio nº 2.

Direito ao futuro

A questão das áreas indígenas sempre foi estratégica no Brasil; daí por que o atual governo introduziu uma novidade: a exigência de se ouvir o Conselho de Defesa Nacional antes da edição do decreto de homologação. A precaução é necessária particularmente nos casos de zonas da fronteira. Não impediu, no entanto, a homologação de 14.202 hectares ocupados por aproximadamente 310 vapichana, no município de Bonfim, na faixa em que o estado de Roraima se encontra com a Guiana. Roraima, por sinal, encerra um debate a ser travado sem paixão: os índios constituem 9% da população e reivindicam 50% das terras do estado. No Brasil, são 0,2% da população e ocupam 1 milhão, 114 mil quilômetros quadrados, uma fatia de 12% do território nacional.

O aumento da população indica que o problema deve ser tratado com atenção e generosidade por parte da sociedade nacional. Depois do enorme e penoso declínio, chegando a apenas 100 mil indivíduos nos anos 1950, os índios estão se multiplicando à razão de 3,5% ao ano, bem acima da taxa nacional de 1,3%. O Censo de 2000 registrou 734.127 índios no Brasil, numa população total de 170 milhões de pessoas. Garantir-lhes um futuro digno e fraterno é o dever de todo brasileiro.

EDIÇÃO 80, AGO/SET, 2005, PÁGINAS 48, 49, 50, 51