População e Miscigenação no Brasil
Quando Clóvis Moura começou sua pesquisa sobre revoltas escravas na década de 1940, aquelas lutas eram ainda consideradas como um capítulo à margem na história da luta de classes no Brasil, e havia ainda um eco, entre analistas sociais, do preconceito que vinha desde o Império e que considerava os africanos escravizados e seus descendentes como estrangeiros em território brasileiro.
Um dos aspectos da extensa obra de Clóvis Moura – que se desenvolveu e consolidou ao longo da segunda metade do século XX – foi o esforço de superar aquela visão, combater o racismo e lançar os fundamentos materialistas para a compreensão do povo brasileiro. Seus estudos, cujo marco é Rebeliões da Senzala, de 1959, estão na base de uma compreensão mais avançada de nosso povo.
Eles reconhecem o caráter mestiço dos brasileiros, enfatizando a contribuição africana para nossa cultura, nosso modo de ser e principalmente para a formação física, étnica, dos brasileiros – e depois deles não é mais possível desconhecer a linha de continuidade entre o escravo do passado e o operário de hoje, a existência de um fio rubro que marca as lutas que, vindo do passado, persistem na exigência contemporânea de um Brasil justo, democrático e soberano.
O texto publicado nesta edição é um exemplo da análise feita por Clóvis da formação dos brasileiros, foi retirado do livro Dialética Radical do Brasil Negro (São Paulo, Anita Garibaldi, 1994). Ele não substitui o estudo dos trabalhos de Clóvis Moura, ao contrário, pretende ser um estímulo a isso.
(José Carlos Ruy)
Vamos agora situar historicamente o problema que decorreu em conseqüência dessa situação da Metrópole colonizadora e o Brasil e, em seguida, analisar as ideologias de rejeição étnica e social criadas pelo aparelho de dominação aqui implantado, que era uma extensão daquele existente em Portugal. Procuraremos, também, demonstrar como esse aparelho de dominação determinou e influiu poderosamente sobre a situação onde essas populações descendentes desses segmentos étnicos historicamente dominados estão situadas atualmente, imobilizadas ou semiimobilizadas no sistema sócio-cultural existente no Brasil.
O problema de uma nação-país ou área que se formou após a expansão do sistema colonial e teve como componente demográfico membros de diversas etnias na composição de sua estrutura sócio-racial – ou seja, da população nativa, da dominadora-colonizadora e daquela compulsoriamente trazida para o trabalho escravo – deve ser estudado levando-se em consideração o sistema de dominação/subordinação que foi estrategicamente montado; os elementos de controle social e de repressão organizados pelo grupo populacional dominante/ colonizador como aparelho repressivo/organizador; e a ideologia justificatória que essa estrutura de denominação produziu.
Nos países poliétnicos, formados em conseqüência dessa expansão do colonialismo, essas populações foram alocadas inicialmente em espaços sociais delimitados rigidamente pelas forças dominadoras que estabeleceram o papel, o status e a função de cada uma no processo de trabalho e o seu nível de valorização social e étnica. Dessa forma, não houve uma distribuição populacional horizontal, igualitária, mas ela foi verticalizada socialmente à medida que as sociedades dominadas pelo colonialismo se diversificavam internamente e ficavam estruturalmente mais complexas. Essa distribuição populacional realizou-se dentro de padrões normativos étnicos impostos pelas metrópoles.
Houve, portanto, uma imbricação entre etnia e status, etnia e valores sociais e etnia e papéis sociais e culturais. Estabeleceram-se critérios que determinaram a posição de cada grupo ou segmento étnico nos diversos níveis de estratificação, com barreiras e fronteiras que impediam o processo de mobilidade social em nível de igualdade de cada etnia dominada em direção ao cume da pirâmide social.
Podemos dizer que, com isto, ficou estabelecido que na sua base estava a população escrava inicialmente das etnias nativas e posteriormente das populações trazidas da África e os seus descendentes. Nas camadas intermediárias as diversas formas de mestiçagem e, finalmente, a população composta dos colonizadores que ocupavam o seu cume.
Em segundo lugar, queremos demonstrar como essas populações etnodominadas iriam praticamente ser imobilizadas e ainda como foram estabelecidos mecanismos imobilizadores e inibidores para essas camadas etnicamente inferiores que, ao mesmo tempo, se multiplicavam via miscigenação. Por outro lado, todo o sistema administrativo, militar e religioso era também estruturado para ser a reprodução daqueles valores de dominação étnica que a cada grupo miscigenado era concedido pelo colonizador.
Contudo, a miscigenação (fato biológico) não criou uma democracia racial (fato sócio-político). Ela estava subordinada a mecanismos sociais de dominação, estruturas e técnicas de barragem e sanções religiosas e ideológicas. Esse conjunto de elementos e estratégias inibidoras determinava o imobilismo ou semiimobilismo social, cultural e político das vastas camadas, isto porque os espaços sociais que davam status econômicos ou de prestígio social ou cultural lhes eram vedados, pois esses mecanismos de seleção étnica compulsórios reproduziam os níveis de poder econômico, social e cultural das estruturas de poder dominadoras que representavam os interesses da classe senhorial local e da Corte e o poder do Estado português.
No Brasil historicamente podemos dizer que a população do colonizador, ou seja, portuguesa, foi sempre até o século XIX menor do que as etnias dominadas (índias e africanas e seus descendentes) e, em conseqüência, o aparelho de dominação quer militar, quer ideológico teria de ser violento, porque era uma simples continuação do aparelho do Estado português. O Brasil não possuía Estado próximo. Isso, portanto, fazia parte da mecânica defensiva do sistema colonial escravista, dirigido, em última instância, pelo Estado de Portugal. Por isso mesmo, essa minoria conseguia dominar. Quanto à população portuguesa inicial e o seu desdobramento demográfico posterior, escreve Artur Ramos: “Na sua viagem ao Brasil Spix e Martius conseguiram que antes da chegada do rei, a população do Rio de Janeiro podia ser calculada em 50.000 almas, sendo o número de habitantes de cor superior à dos brancos. De 1808 a 1817 vieram da Europa 24.000 portugueses, além de bom número de franceses, suecos, alemães e italianos, aqui estabelecido depois da abertura dos portos, como negociantes, técnicos e artesões ou simples operários. A população total do país podia ser calculada em mais de quatro milhões de habitantes pelas alturas de 1819”.
Esse fluxo lusitano que representava a estrutura de poder dominante inicial – ainda segundo Artur Ramos – sempre em minoria étnica, detinha, no entanto, o controle sobre a população poliétnica numericamente superior. De acordo com ele, “segundo dados do Departamento Nacional de Imigração, de 1884 a 1944 apenas 1.227.304 indivíduos de nacionalidade portuguesa entraram no Brasil”.
A população branca inicial – minoritária em relação ao contingente demográfico de índios, negros e mestiços, conforme veremos depois, mais politicamente dominante –, é que se miscigenará com essas etnias não-brancas, majoritárias mas dominadas. O seu status de dominação quer no setor administrativo, que representava o poder da Metrópole dominadora, quer no militar e econômico, patrimonial ou social, constituía a estrutura de poder. Essa estrutura exerceu os mecanismos de dominação selecionadores, criou barreiras de dominação étnica, estabeleceu as formas de julgamento de brancos e não brancos, de homens livres e escravos, conseguiu evitar que existisse qualquer forma significativa de ascensão dos escravos (índio e negros) que não fosse extralegal, através das guerras dos índios contra os invasores e dos quilombos negros, insurreições e guerrilhas por parte destes últimos. As alforrias não chegavam a compor uma variável ponderável nesse contexto. Por outro lado, a Metrópole privilegiou os dominadores via estratégia de concessão de terras. Até hoje, através dessa estratégia do monopólio inicial da terra e de poder os descendentes das suas linhagens não sofrem nenhum processo significativo e desarticulador, nenhum processo de compreensão jurídica, social e cultural capaz de desarticulá-los estruturalmente de modo substancial, permanecendo quase todos com patrimônio e status quase inalteráveis no pólo dominador”.
Quanto ao índio, particularmente, o primitivo habitante, a sua trajetória é bem diferente do grupo português que chegou como dominador. Se fizermos uma estimativa de 4 milhões de índios na descoberta – há quem estime em muito mais – o processo foi o inverso. Segundo Darcy Ribeiro, depois da fase genocídica da ocupação, de 1900 até 1957 extinguiram-se 87 grupos tribais como comunidades étnicas. Mais de 30% das tribos desaparecidas pertencem a zonas que foram conquistadas pela economia pastoril e 45% pela economia extrativa (grupos caucheiros, seringueiros, castanheiros e outros coletores de produtos florestais).
Atualmente esse extermínio prossegue através de grupos de garimpeiros representantes de empresas transnacionais. Os índios destribalizados que se incorporaram aos camponeses pobres também são perseguidos, expulsos das terras ou assinados.
A partir da época assinalada por Darcy Ribeiro uma política desenvolvimentista e de modernidade fez com que as coisas se agravassem ainda mais. As fronteiras avançam, vão ocupando terras indígenas, assassinando caciques e procurando, muitas vezes, incluir os índios em projetos econômicos predatórios e antiecológicos que objetivam extrair as riquezas do subsolo daquelas terras. Sobre essa situação escreve Dalmo de Abreu Dallari: “A invasão de terras indígenas e a passividade do órgão governamental de proteção ao índio estão ligadas à visão desenvolvimentista, que não dá qualquer valor à pessoa humana, não leva em conta que os índios têm direitos de cidadãos e jamais admitiu a hipótese de fazer o desenvolvimento econômico com o índio e não contra o índio.
Os invasores de terras são, às vezes, meros aventureiros audaciosos que pretendem obter riqueza rápida de qualquer modo. Outras vezes são empresas de aparência respeitável, com amplos recursos técnicos e cálculos muito precisos quanto ao proveito econômico que poderiam tirar do solo ou do subsolo da terra dos indígenas. Mas em todos os casos a invasão é estimulada pela quase certeza, baseada na experiência, de que não haverá grandes obstáculos, pois o índio não dispõe de recursos para agir sozinho e a Funai tem autonomia limitada, estando limitada aos objetivos do governo”.
A essa expansão civilizadora, para Darcy Ribeiro, “três são as reações possíveis dos indígenas. A fuga para territórios ermos, com o que apenas adiam o enfrentamento. A reação hostil aos invasores, que transtorna toda a vida tribal pela imposição de um estado de guerra permanente em que o funcionamento de muitas instituições se torna inviável e outras têm de ser dramaticamente redefinidas. A saída final é a aceitação do convívio porque este representa efetivamente, uma fatalidade inelutável. Nela cairá necessariamente cada tribo, seja ao fim de longos períodos de fuga ou de prolongada resistência afinal tornada impraticável, assente na esperança de controlar a situação”.
Sem querermos fazer uma análise estrutural e dinâmica do assunto, desejamos destacar como, hoje, os mecanismos de inferiorização étnica criados pelos primeiros colonizadores ainda exercem a sua estratégia através de outras formas de controle e sujeição capazes de manter a população indígena lesada e inferiorizada. Com isto, aquilo que se chamou processo civilizatório e que antes se chamava catequese e evangelização dos povos pagãos manteve os remanescentes das antigas populações indígenas reduzidos a apenas 185 mil (1982), marginalizados e subalternados.
Queremos salientar, porém, que as tribos sobreviventes estão, no momento, reavivando a sua identidade étnica, fato que determina um nível de consciência dos seus direitos etnopolíticos bem mais dinâmicos e abrangentes. Contudo, esse renascimento da consciência será combatido e possivelmente neutralizado por estratégias de controle das atuais estruturas de poder e oligarquias territoriais. A chacina ocorrida em 28 de março de 1988 de 14 índios em Ticuna, no Igarapé Capacete, através de uma ação organizada pelo madeireiro Oscar Castelo Branco, mostra como a estratégia genocídica do tempo do descobrimento, embora modernizada continua no seu dinamismo. A Funai, ao invés de tomar medidas de proteção e punição, demitiu os professores índios que denunciaram a chacina. Em agosto de 1988 os criminosos foram postos em liberdade por sentença do tribunal de Recursos.
Clóvis Moura (1925-2004) foi historiador e escritor.
EDIÇÃO 80, AGO/SET, 2005, PÁGINAS 38, 39, 40, 41