A popularidade da obra de Érico Veríssimo produziu um efeito danoso sobre a crítica que o escritor recebeu ao longo de sua exitosa carreira. Com mais freqüência do que seria desejável, o fato de seus textos serem legíveis e apaixonarem seus leitores levou jornalistas e historiadores a julgarem sua produção como literatura menor ou até de oura entretenimento. Se essa atitude revela, por um lado, um posicionamento elitista de alguns de sacralização do texto, ou ideologicamente prejudicado de outros, exigindo que Veríssimo comungasse das mesmas crenças, por outro, reforça a autoconsciência do autor que, ao longo de sua atividade literária, buscou constantemente informar-se do estado atual da arte, lendo os seus pares e estudando o que teóricos e críticos escreviam sobre o romance.

Em entrevista a Antonio Hohlfeldt , em 1973, dois anos antes de morrer, ele informa, comentando uma recente viagem à França:

Graças ao professor Dionísio Toledo, encontrei-me com Roland Barthes, por exemplo, em um seminário. Atualmente, também é muito comentado o trabalho de Philippe Sollers com seu livro Lois, que se considera na Europa, no momento, um novo Finnegan´s Wake, de Joyce. Mas, quanto a nós, de um modo geral a posição oficial do intelectual europeu é nos ignorar. Claro, eles devem ter falta de tempo para nos estudar. Quando a gente se encontra com uma obra como Capitalisme et Schizophrénie, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, cujo primeiro volume eu comprei, L’Anti-Oedipe, a gente entende isso. Procurei então me atualizar um pouco procurando obras importantes como as de Lacan, o pós-freudiano mais importante da atualidade.

A busca de conhecimento em Érico — expressa na curiosidade de um autodidata pelos trabalhos mais avançados do pós-estruturalismo francês, à época mesma em que eram lançados — não é uma atitude momentânea. Nos seus cadernos de notas, há inúmeros resumos de leituras que o escritor efetua para armar seu processo criativo de olhares alheios, que indiquem outros rumos a sua arte. Neles, desfilam nomes e idéias de grandes escritores, tanto modernos como pós-modernos, como Virginia Woolf, Thomas Mann, Aldous Huxley, Albert Camus, John Barth, Bernard Malamud e de críticos e filósofos como René Huyghens, Mircea Eliade, Soren Kierkegaard, Martin Heidegger, Bertrand Russell, Herbert Read, Jean-Paul Sartre, Norman O. Brown, Ihab Hassan .

Veríssimo não ignorava o que era feito no Ocidente em matéria de literatura ou de idéias, apesar de sua instrução formal não passar do nível ginasial. Leitor contumaz, ele percorria textos nacionais e internacionais, de diferentes culturas — embora com ênfase sobre os da língua inglesa — tanto literários quanto de ciências humanas e sociais, de modo que não se pode imputar-lhe a atitude ingênua do criador ex-nihilo que por vezes se imiscui em seus críticos. Se preferiu tomar certas direções, estéticas ou ideológicas, ele o fez de caso pensado, dentro das possibilidades abertas pelas diversas épocas em que se encontrava, convencido de que suas criações se produziam nos limites de sua própria capacidade de efabulação, mas que convinha estar informado do que os outros faziam, não fosse ele iludir-se com falsos méritos e esgotar a si mesmo. Uma atitude criativa como essa o acompanhou no fim da vida, quando dizia “Eu continuo fascinado pela ficção (dos outros) e tenho um desejo danado de recomeçar, de ter de abrir de novo todo um caminho” .

A consciência de que a criação literária não ocorre no vazio, de que todo escritor traz consigo uma bagagem de leituras e de história, tanto pessoal como coletiva, manifesta-se em Érico Veríssimo pela associação entre o trabalho inconsciente, como origem, e o trabalho do artífice, como resultado. Segundo ele, “o processo de criação literária se opera no plano do inconsciente, repositório insondável de vivências, intuições, experiências…” . Do impulso inicial, que lhe fornece um tema, uma figura, uma idéia, até a finalização do manuscrito, o processo criativo, para ele, exige liberdade social e preservação da individualidade, o que implica num determinado posicionamento quanto aos regimes políticos e a organização do Estado.

Nos seus depoimentos, Veríssimo enfatiza — em especial nos momentos de esmagamento da democracia — que o clima de liberdade é fundamental para o advento da criatividade, a qual não consegue se exercer sob pressão e censura ou sob a uniformidade do coletivismo, que anula a individuação. Em entrevista a Celito de Grandi, enfatiza ele: “Para que a cultura se possa desenvolver plenamente, para que haja estímulo a artistas e escritores, é indispensável um clima de liberdade. Não conheço nenhum caso na História em que governos autoritários tenham propiciado o aparecimento de boa arte e boa literatura.”

Érico valorizava a singularidade de cada vida humana e possuía a consciência de que ninguém foge inteiramente dos condicionamentos de seu meio cultural, mas advogava o direito inalienável de manifestação livre, embora responsável. Freud já deixara claro o papel angustiante da civilização sobre o Eros, reconhecendo, porém, a necessidade da interação entre pulsões e limites para a constituição social . Veríssimo igualmente sentia dentro de si o ímpeto para o demoníaco, para a destruição e a morte — que o tornavam um satirista e um efabulador de guerras e crueldades —, contra o qual escudava-se no cuidado pelo outro e na criatividade: “É por amor à vida que a gente faz a arte. Multiplico minha vida na criação da de outros” , confessa ele a Antonio Hohlfeldt em 1973.

O ato da criação — esse ato de desdobramento de si, de lançar-se para fora e acrescentar algo ao mundo, que antes não existia — requer alto investimento pessoal, de ordem psíquica, intelectual e afetiva. Freud indica que ele determina reações de caráter homeostático, em que o artista busca recuperar ou manter sob controle a energia gasta . Daí decorrem ritualizações, que favorecem o início ou a sustentação do processo criativo, a partir de experiências de cunho muito pessoal. Como tantos outros artistas Érico acreditava que a chamada “inspiração” é algo inefável, fugidio: “As idéias para os livros parecem vir no vento. É uma espécie de processo de polinização. Processo misterioso. O ficcionista não deve tentar compreendê-lo” .

Todavia, a necessidade de expandir-se, de sair de si e incorporar o que não é o si, faz com que o germe da criação não possa ficar abandonado. Ele deve ser capturado constantemente pela repetição de certos atos, os quais se provaram eficientes algum dia. No caso de Érico, eram atitudes como sentar-se à tarde no escritório, com roupas velhas, usar primeiro um papel mais simples, como o jornal, passar a limpo em papel melhor, à máquina, com três espaços para poder corrigir o texto nas entrelinhas, não usar estimulantes, abandonar o português e produzir esboços em inglês — “com isso, posso esquecer a forma e me concentrar na essência: os personagens e a história” —, desenhar perfis de gente e ouvir música clássica pela Rádio da Universidade.

Dessa forma, ele se liberava dos usuais momentos brancos que afligem todo criador e que impediam de levar adiante planos ou escrita. Explica ele: “Esbarramos em vários muros. Alguns dentro de nós, outros fora. A linguagem que usamos é em geral deficiente, incapaz de descrever certos estados de espírito. E existe dentro de cada um de nós um terrível censor, que nos acompanha desde a infância”. Filho de um pai liberal e bon vivant e de uma mãe de espírito grave, educado num bom colégio protestante, em que, entretanto, perdeu qualquer fé religiosa que tivesse, o escritor guardava dentro de si contradições como a revolta e a empatia. Repugnavam-no, por violarem seu temperamento afável e ensimesmado e seus ideais humanistas, a injustiça e a violência que a história de sua cidade e de seu país continha, mas ele não hesitava em representa-las na sua crueza, como se constata em O Tempo e o Vento ou em Incidente em Antares.

O vaivém da criatividade implica forçar a linguagem a dizer, mesmo quando ela não consegue. Por isso, é um processo simultaneamente eufórico e disfórico para o criador, provocando prazer e dor. “Se penso nas personagens, elas nada me dizem. São sombras vagas sem face nem alma. De repente, tudo volta como uma onda cálida que me envolve. E recomeço a escrever como um possesso” . De fato, Érico era capaz de escrever por dias e semanas seguidas, imerso no mundo de suas personagens. Mas essa devoção ao processo criativo não o impedia de dar atenção ao corriqueiro, à vida da família, aos que lhe batiam à porta.

O mergulho na imaginação e na fantasia que a criatividade requer para produzir o que ainda não possui existência retira o escritor do plano do cotidiano e ele passa a conviver com as figuras ficcionais, procurando dar-lhes contornos visíveis e aceitáveis. No caso de Érico Veríssimo, um realista assumido e um perspicaz observador de seu entorno, a inclinação de seus atos criativos pendia para a captura de traços essenciais da realidade conhecida, seja das pessoas ou da paisagem, a fim de com eles compor, ao sabor de uma intuição do que uma personagem pode ser, a história em que ele irá se constituir. Ele certa vez chegou a teorizar:

Em ontologia, afirma-se que o “ser” se revela na “existência”. Pois eu estou certo de que em ficção o “personagem” se revela na “estória”. Não me refiro tanto ao enredo, à intriga, como a um desenrolar-se de acontecimentos em sua ordem (ou desordem) de tempo. A estória é um veículo e também pode ser, em si mesma, um comentário social .

Partindo dessa convicção, a criação literária em Érico Veríssimo se nutre, em primeiro lugar, de sua própria experiência de vida, como descendente de um patriciado rural empobrecido, que teve de lutar pela sobrevivência como qualquer membro das classes populares até encontrar seu lugar ao sol; que assistiu, desde a infância, a cenas deploráveis de perseguição e violação dos direitos humanos; que foi acusado de alienação quando apontava em seu romance urbano para as contradições da formação da sociedade burguesa em seu estado natal, e de mitificação da história desse mesmo estado, quando a desmistificava em O Tempo e o Vento; que percebeu as relações de dependência do País entre os Estados Unidos e URSS e recusou-se a tomar lados na Guerra Fria, nos romances denominados políticos; e que acompanhou os desmandos das ditaduras sofridas pelo Brasil e fez o possível para denunciá-las ao longo de sua carreira.

Em segundo lugar, sua matéria é a História, a dos anos 1930 e 1940, em Porto Alegre, a do Rio Grande do Sul, do século XVIII ao XX, a do Brasil e a do mundo, nos anos 1960 e 1970. Não se trata de fazer um romance histórico no sentido de traduzir a história ficcionalmente, mas de utilizá-la como pano de fundo para a efabulação, trazendo à tona sua superfície profunda, tornada invisível pelos aparelhos ideológicos. É assim que Caminhos Cruzados figura o cotidiano da luta de classes em Porto Alegre, através do contraponto de vidas bem específicas, ou O Retrato discute a constituição do temperamento de um caudilho rio-grandense, através dos espelhamentos de Rodrigo Terra Cambará entre o que ele quer ser e o que ele deixa de ser, ou O Prisioneiro denuncia a moldagem ideológica dos soldados americanos na Guerra do Vietnã.

A criação, porém, não se reduz à manipulação de uma matéria, seja biográfica ou histórica, pela memória e pela fantasia. Cada criador trabalha com todos esses fatores, mas imprime neles a sua marca. A de Érico Veríssimo é a da criação de personagens. Suas histórias se desenvolvem não por uma fábula pré-esquematizada, a ser preenchida pela narração. Partem de personagens, primeiros pressentidos, depois desenhados, nomeados, caracterizados em roteiros, nem sempre nessa ordem, para os quais o autor procura situações e ações verossímeis. Pondo as personagens em situação histórica, como queria Sartre, eles seguem sua trajetória, levadas pela lógica dos momentos, num percurso por vezes errático, de que o próprio escritor não conhece o termo enquanto os cria. Deixadas livres para viverem no meio em que foram situadas, elas vão associando os eventos, garantindo as seqüências narrativas, e ganham em convicção, mesmo que na tenham sua psicologia analisada ou um projeto a cumprir. Tornam-se memoráveis porque se parecem com a vida fora da literatura, em que pouco se adivinha do ser dos indivíduos, e muito se reduz a pequenos traços captados e projeções de quem os observa.

Por essa razão, o romance de Veríssimo não é descritivo e sim eminentemente narrativo. O cenário e os acessórios surgem aqui e ali, por fragmentos, através da mobilidade da personagem que estabelece conexões entre acidentes geográficos, coisas, animais e vegetais e os outros seres humanos impelida por suas paixões, desejos e idéias. Pelo movimento de um punhado de cidadãos escolhidos por sua representatividade social, tais como Comendador Lustosa, Norival Petra, Sete-Meis, ou Chicharro, percebe-se a arquitetura da cidade, suas ruas, praças, estabelecimentos industriais e comerciais, casas de família e seus céua; pelos conflitos entre dominadores e dominados — como os Amaral, os Terra e os Caré — aparecem a vastidão do território do pampa, suas fronteiras evasivas, o provincianismo das cidades interioranas, as lutas políticas pelo poder, as guerras; pelo drama dos indivíduos empenhados em mudanças sociais ou na enumeração do status quo, como Pablo Ortega ou o Tenente, desenham-se povos e países espoliados e invadidos.

A qualidade de saber procurar, na paisagem humana da História — tanto pessoal quanto coletiva —, tipos de várias ordens sociais e dar-lhes outra figura, trabalhada pela imaginação, pelos afetos e pela lógica, bem como por um direcionamento ético em defesa das liberdades fundamentais, permite a Érico mostrar a seus leitores a natureza e a sociedade sob o domínio do tempo, fazendo de sua literatura não um fac-símile destas, mas uma agência transformadora. É assim que a produção literária do escritor intervém na sociedade. Através de existências ficcionais, faz falarem as lacunas da História, dá corpo e voz aos que na realidade social não a teriam, fixa modelos de caráter, derrotando a erosão que o tempo opera sobre os valores humanos.

Criando personagens vistos em ação, não como heróis sobrenaturais, mas como gente comum, com debilidades e virtudes — tais como um Capitão Rodrigo ou uma Fernanda —, metamorfoseia o cotidiano e aproxima suas ficções das vivências de seus leitores, facilitando a identificação que ao mesmo tempo os transporta para as realidades do outro e os leva a pensar sobre suas próprias condutas. Desmascarando, sem pudores, mas também sem escândalos, vícios sociais e pessoais, como a crueldade dos Vacariano e Campolargo, ou a corrupção de Rodrigo Terra Cambará, sem torná-los inumanos, libera o reprimido de cada um, aliviando tensões individuais e sociais e, assim, lança pontes entre as pessoas, para que reexaminem a sociabilidade e se aceitem em sua diversidade.

Toda essa agência sobre a sociedade se produz ficcionalmente, por obra da linguagem, essa potência que invade os leitores porque eles também vivem nela imersos e por ela afeiçoados. Deve-se, porém, a um certo posicionamento do criador, que direciona o plano ideológico de seus textos, e depende de uma opção ética constantemente posta à prova pela História. Não significa heroísmo, mas autopreservação, aspiração a manter digna a própria vida. Diz Érico Veríssimo, neste depoimento ao dramaturgo Jorge Andrade, que vale especialmente para a crise social brasileira:

Tenho medo de perder a capacidade de indignação e cair na aceitação, que é sempre perniciosa para a vida em sociedade. Não quero ser diferente. Dentro de mim ouço sempre meu grito de indignação. Quando choro pelo outro, sei que estou chorando por mim. Quando tenho receio pelo outro, tenho também por mim. Não sou santo, sou homem .

Maria da Glória Bordini é professora da PUC

1 Organização de Maria da Glória Bordini VERÍSSIMO, Érico. “Uma outra mágica”. In:_____. A liberdade de escrever: entrevistas sobre literatura e política. São Paulo: Globo, 1999. p.153.
2 Consulte-se BORDINI, Maria da Glória. “Criatividade e molduras textuais”. In:_____. Criação literária em Érico Veríssimo. Porto Alegre: L± EDIPUCRS, 1995. p.25-57.
3 VERÍSSIMO. Op. cit. p.157.
4 Cf. ALEV 03 e 0001-07: DE GRANDI, Celito. “Somos todos uns mentirosos”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 19/11/1971. capa.
5 VERÍSSIMO. Op. cit. p.87.
6 Cf. FREUD, Sigmund. “O mal-estar da civilização”. In:_____. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
7 VERÍSSIMO. Op. cit. p.156.
8 Cf. FREUD, Sigmund. “Além do princípio do prazer”. In:_____. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 119.
9 VERÍSSIMO. Op. cit. p.196. Entrevista a Rosa Freire d’Aguiar, 1973: A agulha da bússola.
10 Cf. ALEV 03e0803-1971: MARZOLA, Norma. “Érico Veríssimo: o profissional do amor à vida”. Manchete, Rio de Janeiro, n. 1007, 7/7/1971, p. 92-3.
11 Cf. ALEV 03e0112-72: FERNANDES, Carlos M. “Veríssimo: evite o espelho mágico”. O Estado de S. Paulo, 12/03/0972, Suplemento Literário, capa.
12 VERÍSSIMO. Op. cit. p. 46.
13 VERÍSSIMO. Op. cit. p. 129.

EDIÇÃO 81, OUT/NOV, 2005, PÁGINAS 65, 66, 67, 68, 69