A crise de hoje nasce de raízes antigas
Mauro Santayana, jornalista, comentarista de TV, colunista e colaborador de diversos jornais, com mais de cinco décadas de experiência, fala à Princípios acerca da crise política e do papel dos meios de comunicação neste processo de antigas raízes
Há mais de quatro meses o país vive uma aguda crise política que, na aparecia, emerge como uma crise “ética” e com a corrupção como questão principal. Ao mesmo tempo se vê intensa movimentação em relação à sucessão presidencial de 2006. Qual é a essência mesmo desta crise?
Santayana — A crise de hoje é um broto que nasce de raízes antigas. Em primeiro lugar, os chamados operadores do PT não souberam fazer as coisas como elas foram feitas no tempo de Fernando Henrique. Os tucanos agiam no atacado: iam diretamente aos grandes lagos, não cuidavam de pescar em córregos. Foi assim que atuaram, tratando de vender o patrimônio nacional com subfaturamento — e a diferença sendo dividida entre compradores e vendedores, conforme a imprensa suspeitou na época. Mas houve também negócios com superfaturamento: o Sr. Daniel Dantas disse à CPI que a CRT foi comprada pelos fundos de pensão por R$ 850 milhões, quando não valia R$ 650 milhões. Aonde foi parar a diferença? Essa pergunta ficou no ar, a partir da denúncia de Dantas de que a operação só foi feita mediante pressão do governo Fernando Henrique sobre os fundos de pensão. Quanto à sucessão presidencial, ela entra na crise como enfermidade oportunista, uma espécie de pneumonia em pacientes sem suficiente proteção imunológica. Obviamente, a oposição — aproveitando-se da debilidade do governo —, intensifica sua atuação no sentido de ocupar o espaço com denúncias, fundadas ou não. Por outro lado, há suspeitas, baseadas em fatos conhecidos, de que Marcos Valério tenha sido infiltrado no PT pelo PSDB. Está mais do que provado que ele, antes de servir ao PT, serviu ao PSDB. Quem dele primeiro se utilizou para o financiamento de campanhas foi o Sr. Eduardo Azeredo, então governador de Minas Gerais, que tentava reeleição em 1998, mas foi derrotado por Itamar Franco. E se houver investigação mais rigorosa se descobrirá que Marcos Valério participou — juntamente com o Sr. Walfrido dos Mares Guia, hoje ministro de Turismo, e João Heraldo de Lima, atual diretor do Banco Rural — da enrolada privatização dos bancos estatais mineiros, Crédito Real e Bemge. Da mesma forma, participaram da tentativa de privatização total da Cemig (inicialmente com 30%) em uma operação comandada pelo Sr. Daniel Dantas e seus companheiros do Opportunity: Pérsio Arida e Elena Landau. Essa manobra de privatização total foi impedida pela ação decisiva do então governador Itamar Franco.
O senhor tem se destacado no cenário jornalístico pela defesa dos interesses nacionais, a exemplo das denúncias de mazelas do governo Fernando Henrique Cardoso. Que relação o senhor faz entre a tentativa de desestabilização do governo Lula e o interesse estratégico de privatizar o patrimônio nacional restante?
Santayana — É preciso entender que se a direita, como expressão política, sempre soube se unir, como expressão econômica ela tem algumas contradições. Por mais globalizada que esteja a economia, há sempre competição pesada nas grandes corporações. Há uma cisão entre o capital financeiro e o capital produtivo. Ao capital financeiro interessa os juros altos pagos pelo setor público. Pouco importa o endividamento crescente, porque aos banqueiros não interessa a devolução do principal, mas sim os rendimentos. Ao setor produtivo interessa o aumento do consumo, o aumento do nível de emprego; enfim, o desenvolvimento da economia.
Mas há um fato novo: hoje os grandes conglomerados esse encontram sob domínio dos grandes bancos, nacionais e internacionais. Obviamente, a direita tenta retornar plenamente ao poder, a fim de acabar com o que resta do Estado Nacional. A minha esperança é de que se acelere a decadência dos Estados Unidos. E entendamos que todos os grandes males de nossa época se encontram nesse modelo de sociedade exportado por meio da imposição de sua cultura, ao mundo inteiro.
Por ser um jornalista experiente, como o senhor analisa o papel dos meios de comunicação em diferentes momentos de crises agudas — como o suicídio de Getúlio Vargas, a deposição de Jango e a jornada que levou à eleição de Tancredo Neves?
Santayana — Há alguns meses, o embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima me dizia que o Brasil ficou menor. Claro, vegetativamente, a economia cresceu, mas o país ficou menor em seus valores. É natural que haja uma imprensa oposicionista — ai de nós se não houvesse. Mas o que distingue os meios de comunicação daquele tempo é que naquela época havia pluralidade ideológica nos jornais — que eram declaradamente a favor ou contra o governo. Se quiséssemos saber o que pensava a UDN bastava comprar o Diário de Notícias, a Tribuna da Imprensa, O Globo, O Estado de S. Paulo. Se quiséssemos a opinião do PSD, o Correio da Manhã no Rio de Janeiro e excelentes jornais dos estados. E se pretendêssemos saber quem defendia claramente Getúlio, o Última Hora. Em São Paulo, Getúlio nunca teve imprensa. Os comentaristas políticos, tanto à esquerda, quanto à direita, eram homens de alto nível intelectual Jornalistas como Prudente de Moraes, neto, J. E. de Macedo Soares, Danton Jobim, Moacir Werneck de Castro, João Mangabeira. Além disso, os jornais só destacavam para cobrir os fatos políticos — tanto no Poder Legislativo, quanto no Poder Executivo — os seus melhores repórteres: Castelinho, Otacílio Lopes, Flávio Soares, Villas-Boas Correia, Hermano Alves, Luís Antônio Carneiro, e tantos outros que sabiam distinguir os fatos dentre os boatos e intrigas. Hoje os jovens repórteres, que aprendem nas escolas e não na vida, quase sempre se orientam por sua boa-fé. E, em política, como dizia Tancredo, boa-fé é pior do que má-fé.
O senhor escreveu que “enquanto homens como Sr. Daniel Dantas e o Sr. Gustavo Franco não forem devidamente investigados, e não se controlarem as remessas de capital (…) nada adiantarão as CPIs”. Comente, por favor, um pouco sobre essas questões.
Santayana — Os dois devem ser investigados a partir de motivos diferentes. Daniel Dantas é acusado de lavar dinheiro, mediante aplicação de recursos de brasileiros em fundos em seu banco no exterior, o que é proibido. Gustavo Franco deu, mediante simples portaria do Banco Central, via livre para a fantástica evasão de divisas pelas agências bancárias de Foz do Iguaçu, por intermédio das CC-5 — que são as cartas de corso para o saqueio. Só que o saqueio do que é nosso e não do que é de nossos inimigos. As entradas e saídas de capital devem ser rigorosamente controladas pelo governo. Deixar entrar no país bilhões de dólares em empréstimos especulativos, em aplicações de curto prazo é agir como pai de família que dá aos filhos talões de cheque e cartões de crédito sem limitações. Quando chegar a hora da cobrança é todo o patrimônio da família que se encontra em jogo. Da mesma forma é necessário controlar rigorosamente a saída de dinheiro. Temos de ser soberanos, sobretudo porque não somos — como os Estados Unidos e a União Européia — emissores de dinheiro de curso mundial.
Para o senhor não existem países sem crise, pois a história é uma crise permanente e encerra a luta de pobres contra os ricos. Desenvolva um pouco mais esse raciocínio, se possível fazendo analogia com a crise política atual que afeta o país.
Santayana — Os povos criaram os Estados primitivos como instrumento dos fracos contra os fortes. A primeira razão do Estado é a instituição da justiça, mediante as regras de convívio — a que chamamos lei. Lei é ligação, é amarra, é compromisso moral. Ao longo dos séculos, a vida política tem sido de tensão permanente entre ricos e pobres. A República Romana, até hoje inigualável exemplo de Estado, expressava essa tensão no conflito político entre os “populares”, ou democráticos, e os “optimates”, ou seja, aristocratas da ordem eqüestre. O poder estava ao alcance dos pobres, se eles se destacassem nas fileiras militares, a que todos os romanos estavam sujeitos. Foi assim que o plebeu Caio Mario chegou ao consulado, devidamente eleito, e o exerceu durante seis mandatos. Em nosso caso, o poder sempre esteve nas mãos não da aristocracia —porque nunca tivemos aristocracia, nem mesmo no Império —, mas na dos homens ricos. Os “aristocratas” do Império foram sempre, e o exemplo de Joaquim Nabuco é suficiente, embasbacados admiradores das culturas francesa e anglo-saxônica. Primeiro o poder foi exercido pelos proprietários de terras, associados à incipiente burguesia importadora e exportadora das praças do Rio de Janeiro e Recife (um pouco mais tarde, também a de Santos) e, depois, pelos banqueiros, mas todos eles submetidos ao interesse estrangeiro. Desde o início do século 18, com o Tratado de Methuen, já não eram mais os portugueses que nos exploravam. Eles eram meros capatazes do capital inglês. Do domínio inglês, passamos para o domínio norte-americano. A nossa história tem sido uma sucessão de crises, crises econômicas (quando passávamos de um ciclo a outro), crises sociais, crises políticas. De vez em quando, a crise fica mais aguda, mas ela é, no fundo, o conflito entre os que exploram o trabalho alheio e os que resistem contra essa exploração. Marx morreu, como se sabe, mas ainda não o conseguiram enterrar.
Edvar Bonotto é doutor em Direito pela PUC-SP e Elias Jabbour é mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP.
EDIÇÃO 81, OUT/NOV, 2005, PÁGINAS 17, 18, 19