Mídia e democracia
Em 1947, a Comissão sobre a Liberdade de Imprensa, nomeada pelo Congresso dos Estados Unidos, advertiu em seu relatório final: existe uma razão inversamente proporcional entre a vasta influência da imprensa na atualidade e o tamanho do grupo que pode utilizá-la para expressar suas opiniões. Enquanto a importância da imprensa para o povo aumentou enormemente com o seu desenvolvimento como meio de comunicação de massa, “diminuiu em grande escala a proporção de pessoas que podem expressar suas opiniões e idéias através da imprensa.”
O relatório procurou apontar “o que a sociedade tem direito de exigir de sua imprensa.” Definiu duas regras essenciais para o legítimo exercício da liberdade de informação e de opinião: 1) “Todos os pontos de vista importantes e todos os interesses da sociedade devem estar representados nos organismos de comunicação de massa”. 2) “É necessário que a imprensa dê uma idéia dos grupos que constituem a sociedade. Dizer a verdade a respeito de qualquer grupo social — sem excluir suas debilidades e vícios — inclui também reconhecer seus valores, suas aspirações, seu caráter humano”.
As recomendações exageradas nesse relatório refletem o espírito do tempo nos Estados Unidos e na Europa Ocidental: a aposta no aperfeiçoamento dos processos de controle democrático do Estado e do poder privado. O trauma das duas guerras mundiais e da Grande depressão saturou o ambiente intelectual dos anos 40 do século XX da rejeição ao mercado descontrolado e ao totalitarismo.
O sociólogo Karl Mannheim, um pensador representativo de sua época, escreveu, em 1950, no livro Liberdade, poder e planejamento democrático: “Não devemos restringir o nosso conceito de poder ao poder político. Trataremos do poder econômico e administrativo, assim como do poder de persuasão que se manifesta através da religião, da educação e dos meios de comunicação de massa, tais como a imprensa, o cinema e a radiodifusão”. Para ele, devemos temer menos os governos — que podemos controlar e substituir — e muito mais os poderes privados que exercem sua influência no “interior” das sociedades capitalistas.
Na aurora do século XXI, as forças democráticas sobreviventes — os que ainda conseguem respirar no “admirável mundo novo” construído pelo capitalismo da era Bush —mal conseguem defender o que restou dos direitos sociais e econômicos obtidos pelos subalternos no imediato pós-guerra. O leitor atilado há de julgar se a liberdade de opinião e de informação vem se ampliando e favorecendo o esclarecimento dos cidadãos ou se transformando em seu contrário: num exercício do poder monopolista que viloa os direitos reconhecidos como essenciais no relatório da Comissão sobre a Liberdade de Imprensa.
O filósofo Paulo Virilio chegou a uma conclusão drástica: a mídia contemporânea é o único poder com a prerrogativa de editar suas próprias leis, ao mesmo em que sustenta a pretensão de não se submeter a nenhuma outra. A justificativa para tal procedimento trafega entre o cinismo e a treva: uma vez afetada a liberdade de imprensa, todas as liberdades estarão em perigo. Cinismo, diz ele, porque essa reivindicação agressiva trata de negar o óbvio: os meios de divulgação e formação de opinião vêm se concentrando, de forma brutal, no mundo inteiro, nas mãos de grandes empresas capitalistas. O objetivo natural e legítimo do ganho monetário está, mais do que em qualquer outra atividade, acumpliciado de forma inexorável ao desejo de ampliar a influência e o poder sobre a sociedade, a administração pública e a política.
É neste sentido muito especial que deve ser interpretada a pretensão à superioridade da liberdade de opinião e de informação. Ela exprime hoje a generalização do controle social e político exercido pelos grande produtores de informação e de opinião sobre os direitos dos cidadãos. Exercem os seus privilégios com eficiência crescente, numa sociedade encantada com a “inversão” de significados e pelo ilusionismo da liberdade de escolha do indivíduo consumidor. A censura de opinião e até do silêncio alheios e a intimidação sistemática devem “aparecer” aos olhos do público consumidor como legítimo exercício dos direitos de opinar, de informar e de defender os interesses da comunidade.
Mas não é sábio exagerar no pessimismo: nos próximos anos, a luta política é que vai decidir se as tecnologias de comunicação da terceira revolução Industrial vão nos conduzir ao totalitarismo consentido, à moda de George Orwell, ou ao aperfeiçoamento democrático, à ágora informatizada, processos decisórios de democracia direta capazes de corrigir as distorções dos regimes representativos de hoje, infestados pelo poder da grana e pelos vícios do privatismo.
Luiz Gonzada Belluzzo é professor da Unicamp. Este artigo foi publicado originalmente na revista CartaCapital, nº362.
EDIÇÃO 81, OUT/NOV, 2005, PÁGINAS 20, 21