“Acredito ter tudo que um homem precisa ter para o trabalho e que outra coisa não é senão o que foi dito pelo poeta: Tenho duas mãos/e o sentimento do mundo”. Assim concluiu seu discurso de posse, em 31 de janeiro de 1963, Miguel Arraes de Alencar (1916-2005), um cearense do Araripe, filho de pequeno comerciante e agricultor, que governou por três vezes Pernambuco — onde exerceu, por mais de cinco décadas, uma militância política sempre marcada pela defesa da soberania nacional e pela luta para melhorar as condições de existência do povo mais simples, até falecer, aos 88 anos, vítima de choque séptico decorrente de infecção generalizada, após 58 dias de internamento no Recife, em 13 de agosto último.

Os versos de Carlos Drummond de Andrade, repetidos por Arraes nas duas outras oportunidades em que tomou posse como governador, sintetizam com nitidez o estilo e a conduta intelectual desse político nordestino, sempre fiel às suas raízes mesmo durante os quinze anos de exílio, sob o regime militar, que cumpriu na Argélia.

Arraes se destacou, como poucos homens públicos de sua geração, pela capacidade de abordar os problemas locais vinculando-os à situação mundial e brasileira — o que fazia com rara clareza e didatismo, compreensível pelas massas do povo.

Governando com sentido popular

Migrante do sertão cearense para o Rio de Janeiro, no final dos anos 1940, chegou a iniciar o curso de Direito na então Universidade do Brasil, mas o abandonou por falta de recursos para se manter. Transferiu-se em seguida, em 1950, para a capital pernambucana, onde ingressou por concurso no IAA (Instituto do Açúcar e do Álcool) e conquistou o bacharelado pela Faculdade de Direito do Recife. Aí inicia sua militância política, ao aproximar-se de Barbosa Lima Sobrinho, ex-governador e ex-presidente da Associação Brasileira de Imprensa, da qual foi secretário estadual da Fazenda.

No IAA, tomou contato direto com a realidade da Zona Canavieira, interessando-se especialmente pelo exame do processo produtivo e das relações entre a elite proprietária e a massa de trabalhadores da palha da cana. Tema que ocuparia, ao lado da questão nacional, o centro das suas atenções ao longo de toda a vida pública.

Em seu primeiro governo, em novembro de 1963, usou a autoridade de governante para intermediar o Acordo do Campo, celebrado entre senhores de engenho e usineiros e trabalhadores da cana, por meio do qual ficou estabelecida a jornada de 8 horas, a atualização do sistema de medidas de tarefas de trabalho e o pagamento do salário mínimo, o descanso semanal e outras conquistas. É quando o cortador de cana troca o jiral pela cama com colchão, compra o radinho de pilha, que pendura numa vara enquanto realiza a sua labuta no eito, tem acesso à assistência médica e se liberta da dependência dos barracões, passando a fazer suas compras junto ao comércio local (agora sob novo impulso).

Na esteira do Acordo no Campo, ganharam força a expansão dos sindicatos de trabalhadores rurais (estimulados pelos comunistas e pela Igreja Católica) e, pouco adiante, as Ligas Camponesas que reuniam pequenos proprietários, posseiros, meeiros e sitiantes.

Além disso, Arraes implementou, no seu curto governo (interrompido pelo golpe militar de 1964), programas inovadores de atenção aos trabalhadores rurais das outras microrregiões do estado. A Companhia de Revenda e Colonização, que criou, fornecia instrumentos de trabalho e vestimenta adequada ao trabalho na roça. Crédito aos pequenos e médios proprietários foi aberto através do Grupo Executivo da Produção de Alimentos, tendo o Banco do Brasil como agente financiador.

(No seu último governo — 1995-1999 —, retomaria a abordagem da Zona Canavieira através de um programa ousado (Promata) de modernização do parque sucro-alcooleiro e de diversificação das culturas, incluindo educação de base, formação de mão-de-obra, preservação e educação ambiental etc.)

Movido por sua sensibilidade para as condições de vida do povo pobre do interior, Arraes valorizou como prioritárias ações destinadas a estender a eletrificação rural praticamente a todo o território pernambucano, a baixo custo para o consumidor final; e a propiciar condições hídricas que pudessem ajudar pequenos e médios proprietários a enfrentar a crônica escassez de água.
Ex-auxiliares seus registraram que, nesse sentido, travou duas grandes batalhas — tecnocracia X inclusão social — com as equipes técnicas do governo estadual, sobretudo nas duas últimas gestões.

Ganhou uma, perdeu a outra.

Com o corpo técnico da CELPE (Companhia Energética de Pernambuco), empresa estatal posteriormente privatizada por Jarbas Vasconcelos, sustentou, e venceu, dura polêmica em torno do sistema de fornecimento de energia a ser utilizado em larga escala no meio rural — se o sistema convencional trifásico, ou sistema monofásico convencional, de um só fio. O primeiro, de maior custo de implantação e manutenção, mais apropriado às demandas de equipamentos de potência elétrica mais elevada, utilizados por fazendeiros e empresas agro-industriais; o segundo, de muito mais reduzido custo de implantação e de manutenção, mais adequado às demandas majoritárias da população mais pobre. O governador insistia em avaliar a relação custo-benefício tendo em conta o percentual de famílias que poderiam ter acesso ao fornecimento de energia elétrica, para abastecer uma pequena moto-bomba, eletrodomésticos e a própria iluminação domiciliar. Os técnicos, acomodados aos padrões estabelecidos que tinham em mira fundamentalmente os grande empreendimentos, quantitativamente reduzidos na economia pernambucana (salvo na microrregião do São Francisco, a partir de período recente) e de baixo poder de absorção de mão-de-obra, tinham dificuldade de compreender o sentido social da alternativa proposta por Arraes. Tendo prevalecido a opinião do governador, implantou-se em Pernambuco o maior programa de eletrificação rural do País, de larga importância econômica e social.

Já a contenda com a tecnocracia responsável pela Compesa (Companhia Pernambucana de Saneamento), o governador perdeu. Contra seus propósitos de universalizar a cobertura de abastecimento de água, contornando as condições fisiográficas adversas em distintas microrregiões do estado, o corpo técnico da companhia estatal aferrou-se à manutenção do padrão convencional, de alto custo e inacessíveis à maioria da população. A ampla construção de cisternas e de barragens subterrâneas e a perfuração de poços artesianos (em certas áreas), o governador tentou através de uma outra empresa, a CISAGRO (Companhia Integrada de Serviços Agro-Pecuários de Pernambuco), porém atingindo alcance limitado.

As barragens subterrâneas consistiam no represamento com lonas plásticas, à altura do subsolo, da água do curso de rios não perenes, visando assim reter líquido que, saturando o terreno, aflora à superfície, reduzindo assim a escassez hídrica — solução simples para a pequena irrigação e para o consumo humano e animal.

(Vale registrar que nos dois governos que se sucederam a Arraes, do atual governador Jarbas Vasconcelos, esses mecanismos engenhosos foram completamente abandonados).

A valorização da cultura e da educação básica como fatores da formação de uma consciência social avançada também marcou a trajetória de Miguel Arraes. Ao governar o Recife, criou, em 1959, o Movimento de Cultura Popular (MCP), que aglutinou grande número de entidades culturais e contou com a participação de artistas, intelectuais e educadores progressistas de grande prestígio, como Abelardo da Hora, Paulo Freyre, Francisco Brennand, Ariano Suassuna, Germano Coelho, Paulo Rosas, Anita Paes Barreto, Vicente de Rego Monteiro, Hermilo Borba Filho, Geninha Rosa Borges, Luiz Mendonça, Juracy Andrade, César Leal e Teca Calazans. No MCP, realizavam-se oficinas de arte e escrita, música, cinema e teatro populares, envolvendo grande parcela da população.

Para suprir o déficit escolar que era elevado na população mais pobre, o MCP aproveitava a rede de equipamentos sustentada pelas próprias comunidades — associações de bairro, clubes de mães, ligas de dominó, igrejas — para fazer funcionar, na ocasião, nada menos do que 201 escolas, alcançando cerca de 20 mil alunos.

Em 1962, ao assumir o governo do Estado, deu dimensão estadual ao MCP e organizou o SAI (Serviço de Ação Itinerante) que percorria as diversas regiões do interior disseminando cultura.

Construtor de frentes amplas

Negociador hábil, recebendo com freqüência no Palácio representantes de usineiros, fornecedores de cana e trabalhadores para a administração de conflitos, foi capaz de concertar alianças com representantes da elite rural nas diversas batalhas eleitorais em que esteve envolvido. Em 1962, teve como candidato ao Senado da sua chapa o industrial e usineiro José Ermírio de Moares. Em 1986, ao se eleger pela segunda vez para o governo estadual, teve como aliado o senador eleito Antônio Farias, proprietário de usinas e destilarias. Composição semelhante fez em 1994, ao ter ao seu lado como postulante ao Senado o banqueiro e usineiro Armando Monteiro Filho (democrata de larga tradição), que o havia enfrentado na disputa pelo governo estadual em 1962.

Essa capacidade de costurar alianças amplas Miguel Arraes exercitou sempre (eximindo-se, contudo, de um maior envolvimento quando a liderança do processo não se encontrava em suas mãos). Foi, por assim dizer, um militante frentista por excelência, sempre atento à necessidade da construção prévia da unidade das forças de esquerda a partir de que negociou, em muitas oportunidades, composições com setores conservadores visando a dividi-los e a isolar o adversário principal: a direita. Apoiava-se nas relações estreitas que sempre manteve com os comunistas e com outras correntes de vínculo popular, no intuito de deter a hegemonia no seio das coligações amplas que liderou — a Frente de Recife, que o elegeu prefeito e governador, em 1959 e 1962, respectivamente; e a Frente Popular de Pernambuco, que lhe proporcionou os dói últimos mandatos à frente do Executivo estadual, em 1986 e 1994.

Unir forças no âmbito local, para Arraes, significava reforçar a luta pelos grande objetivos nacionais.
Quem lê a coletânea de discursos, artigos, ensaios e entrevistas publicada em formato de livro — Miguel Arraes, pensamento e ação política — pela editora Topbooks, em 1997, com prefácio de Antonio Callado, constata que um dos traços relevantes do seu pensamento, a defesa intransigente da soberania nacional, jamais enrijeceu com o tempo ou ganhou o odor da naftalina. Ao contrário, a compreensão de Arraes acerca da questão nacional — nas suas diversas dimensões — se manteve renovada e atualizada através do estudo acurado e sistemático da realidade brasileira e do mundo.

Em documento apresentado ao 4º Congresso Nacional do Partido Socialista Brasileiro, em setembro de 1993, intitulado “A ordem dos ricos e a desordem dos pobres”, discorre longamente acerca da nova ordem mundial unipolar pós-débâcle do campo soviético e faz defesa fundamentada de uma postura independente e altiva do Brasil como pré-requisito da preservação da soberania e da integridade da Nação. Acentua o papel insubstituível do Estado como gestor de um projeto nacional de desenvolvimento e de indutor de políticas destinadas a reduzir desigualdades regionais e sociais.

Aliado do PCdoB

País ainda jovem, em pouco mais de 500 anos da sua construção como povo e como Nação, o Brasil registra combatentes que se salientaram na cena política em importantes momentos da sua história. Poucos, entretanto, assinalam presença ininterrupta por largo período. Ao atuar por mais de cinco décadas, sempre postado no lado das forças que se batem pela transformação da sociedade, Miguel Arraes é um deles. Um político da província sintonizado com a Nação, que poderia ter cumprido um papel mais destacado inserindo-se entre os que pelejaram para assumir as rédeas do processo político nacional. Jamais o tentou. Quando cogitado, ou instado por seus aliados mais próximos, costumava retrucar dizendo-se morador do Recife e eleitor no bairro de Casa Amarela. “Daqui eu vejo o mundo”, e só.

Falta de ousadia? Talvez aí esteja uma das suas limitações. Outras, ele pôde revelar como governante. Arredio aos métodos mais modernos de gestão pública, mostrou-se sempre ultracentralizador, pouco afeito ao planejamento e à busca de eficiência técnica como produto da ação coletiva. Defeito que, consciente ou inconscientemente, conseguia atenuar pela extraordinária sensibilidade para com os problemas do cotidiano da população.

Líder inorgânico, praticamente sem intermediários na sua relação com o eleitor, nunca se empenhou em organizar partido político. Pertenceu a vários e só se ocupou em dirigir, de alguns anos para cá, o PSB, que presidia. No entanto, queixava-se da fragilidade da estrutura partidária brasileira e costumava mencionar o PCdoB como exemplo de organização lúcida e disciplinada.

Relações muito próximas com os comunistas Arraes manteve desde o início dos anos 1950, passando pelos dois mandatos de deputado estadual, pelo governo da cidade de Recife, pelos três mandatos de deputado federal e pelo igual número de vezes em que governou o estado.No período mais recente, desde que retornou do exílio, em 1979, o diálogo com os comunistas foi constante por vinte e seis anos ininterruptos. Um relacionamento pautado pela confiança mútua e pela amizade, sobrevivente de eventuais divergências e conflitos eleitorais.

Luciano Siqueira é vice-prefeito de Recife (PE).

EDIÇÃO 81, OUT/NOV, 2005, PÁGINAS 70, 71, 72, 73