O “silêncio dos intelectuais tem sido tema de controvérsia a ocupar generosos espaços na imprensa. Mas não estão silentes. Verifica-se que eles têm se pronunciado isoladamente em artigos e entrevistas e coletivamente lançado manifestos sobre a longa crise política que o país atravessa. A função do intelectual na sociedade foi tema de estudos de Gramsci e, segundo o pensador italiano, é exatamente a sua função social que define o intelectual como categoria. Cunhou a expressão “intelectual orgânico” como aquele que se envolve nos embates de seu tempo e adota posições conseqüentes com seu pensamento ideológico em contraposição com o intelectual tradicional que se limita a transmitir idéias de predecessores sem se envolver com a conjuntura.

Os intelectuais, tanto os que se embrenham nas lutas sociais quanto os que se reservam ao gabinete de estudo ou de trabalho, têm lado. Moldam a consciência ao longo de sua formação, adotam uma postura ideológica central, encarando os problemas, as crises, as transformações, as revoluções segundo esta visão. Quando mudam de lado, por força de acontecimentos relevantes ou até por fatores subjetivos, mudam de ideologia. Passam a adotar um conjunto de idéias básicas que possam sustentar sua nova posição. Em contrapartida, há intelectuais que se aferram a princípios como dogmas imutáveis, pouco importando a dinâmica das transformações sociais ao seu redor e no mundo. Mas todos têm lado.

A sociedade humana evoluiu ao longo dos tempo dividida em classes sociais, portanto em interesses conflitantes, que em determinados momentos entravam em agudo conflito, produzindo revoluções. Intelectuais, filósofos, pensadores atentos ao processo histórico formularam suas doutrinas. Um dos pontos culminantes da história da humanidade foi a Revolução Francesa. Lá, no ambiente de hemiciclo da Assembléia Nacional, se cunharam as expressões esquerda e direita. À esquerda do plenário se sentavam os revolucionários, jacobinos — radicais — e girondinos — moderados.À direita, os defensores da monarquia — radicais — e os conservadores burgueses — moderados. Esta classificação ganhou enorme peso político e passou, com o correr dos anos, a definir os lados.

Surgiram nuances, porquanto correntes político-ideológicas valiam-se dos fundamentos de um lado e de outro. Daí nasceram as posições centro, centro-esquerda, centro-direita. Moderadamente, o liberalismo, nascido nos séculos 17 e 18 em oposição à monarquia absolutista, com Locke e Montesquieu como seus principais expoentes, constitui a base doutrinária, com todas as suas variantes, da direita. E o socialismo, surgido no século 19, tendo Marx e Engels como seus pilares, também com suas variações, é o fundamento ideológico da esquerda.

Na crise por que passa o Brasil, uma das grande dificuldades mostradas pelos intelectuais é entender a essência dos acontecimentos. Necessitam para sua formulação teórica de informações. Se não estão travando os debates diuturnamente, valem-se dos meios de comunicação. Ora, os grandes meios, impressos e eletrônicos, defendem seus interesses de mercado e em situações definidoras como as atuais não se pejam em sustentar firmemente seu lado. Porém o fazem com inteligência e sutileza nem sempre percebidas, colocando os intelectuais em uma verdadeira dúvida racional decorrente da sua incapacidade objetiva de obter uma resposta ou chegar a uma conclusão. Grande parte de nossos intelectuais — e agora me refiro aos intelectuais de esquerda — não tomou consciência da desinformação e se deixou levar pelo espetáculo, pelas aparências, pela pressão e pelo terror midiático.

Outra grande dificuldade manifestada por boa parte de nossos intelectuais é compreender o exercício da política. Ela não se trava apenas no terreno da ideologia. A fim de construir uma correlação de forças favorável necessita de tática, precisa entender as manobras do inimigo, saber recuar e avançar em cada momento. Um verdadeiro jogo de xadrez porém com muito mais variáveis e muito mais dinâmicas. O exercício da política é um intrincado jogo que leva em conta situações objetivas, mas se depara com questões subjetivas, até mesmo psicológicas e emocionais. Lida com questões de prestígio, vaidade, interesses mesquinhos, traições, covardia, ressentimento. Tendo em vista os objetivos estratégicos, há composições de força momentâneas, outras mais duradouras. Numa sociedade complexa como a brasileira o antigo mistura-se ao novo.

As épocas históricas emaranham-se umas nas outras. O mesmo termo como “classe social” ou “dialética histórica” não têm o mesmo significado, não recobrem as mesmas realidades concretas. Outra questão incorretamente enfrentada é a da ética. Comportamentos éticos podem dissimular grandes interesses. A grande imprensa, em nome da defesa da ética contra eventuais ilegalidades ou irregularidades, fere diariamente a ética jornalística, torcendo, distorcendo, mentindo, humilhando, intrigando, caluniando, praticando linchamento de pessoas honestas, demonizando outras em nome de sua posição política. Honradez pessoal, honestidade no trato de bens materiais devem balizar o comportamento de dirigentes de esquerda e é preciso ser muito rígido nessas questões. Mas a ética na política tem outras conotações.Há uma estrutura legal que favorece abertamente o lado dos que têm posses e enormes facilidades de angariar recursos para financiar as atividades dos partidos e correntes que lhes são favoráveis e que limita enormemente a ação dos que se opões a eles. Essa deformação deve de algum modo ser rompida, valendo-se de uma reforma política e eleitoral que crie um mínimo de equilíbrio, o máximo de representatividade ideológica, barre os partidos de aluguel e resolva razoavelmente a questão do financiamento de campanhas.

Não se pode tolher divergências, a tolerância deve pautar nossas atitudes, mas nossos intelectuais devem entender que se avizinha uma feroz luta pelo poder. E que essa luta requer inquebrantável unidade de todas as forças do nosso lado. Apesar de terem seus interesses fundamentais preservados, as oligarquias brasileiras não toleram a presença de um presidente oriundo das camadas populares. Querem acabar com essa raça, a raça dos trabalhadores, dos movimentos sociais, dos partidos populares, por um bom tempo, se possível para sempre. Tentam humilhar, desmoralizar e fazer sangrar o presidente Lula, destruir seu partido de sustentação, impedir de toda forma a reeleição. O plano do outro lado, da direita, é retornar ao poder e retomar a sua política neoliberal de privatizações, de criminalização dos movimentos sociais, de perpetuação das desigualdades sociais, de submissão ao império e a preservação de seu secular domínio e de seus instrumentos de poder.

Começamos a romper o cerco. O espírito de resistência dos militantes do Partido dos Trabalhadores, de que resultou o êxito de sua eleição interna, foi o primeiro sinal. A eleição do deputado Aldo Rebelo com base numa sólida aliança do PT, PCdoB e PSB para a presidência da Câmara dos Deputados transformou-se no marco da contra-ofensiva. Todos pudemos ver como a mídia reagiu à vitória do nosso lado, tentando desqualificar a Aldo pessoalmente como um “colecionador de fracassos”, falando de “rolo compressor” e “vitória dos mensaleiros”. Contudo, esse tipo de reação demonstra a contundência da derrota. A direita apostou tudo na conquista da presidência da Câmara e perdeu. A mídia, com suas reportagens, seus editoriais, seus colunistas e blogueiros, ela sim, funcionou como um verdadeiro rolo compressor. E hoje demonstram todo o seu desespero porque tinham certeza de abocanhar mais esta fatia do poder. No entanto, nem a mídia nem os partidos por ela pautados irão desistir. Têm meios e têm força. Têm objetivos e não vai medir os métodos para atingi-los. Outra manifestação da contra-ofensiva é o acordo energético entre Petrobrás e Petróleos de Venezuela firmado por Lula e Chávez, numa demonstração inequívoca de que optamos decididamente pela integração e soberania de nossas nações e pela autodeterminação de nossos povos, sem mais submissão aos centros mundiais de poder imperial.

É preciso ampliar o contra-ataque, somar forças, trazer todo o campo progressista para a luta, consolidar a aliança PT-PCdoB-PSB, isolar os desertores e provocadores, saudar e apoiar a renovada disposição de luta das centrais sindicais, dos sindicatos, das entidades estudantis, das entidades populares, dos trabalhadores do campo e da cidade. Esses três partidos que defendem o socialismo como objetivo estratégico, embora com visões distintas, souberam unir-se para enfrentar uma batalha decisiva. Que se reúnam desde já e tragam as principais lideranças populares a fim de elaborar um programa político comum que servirá de base à campanha presidencial de 2006 pela reeleição de Lula e derrota da direita. Que atraiam outras forças como os setores nacionalistas do PMDB e do PDT. Um segundo mandato de Lula deverá contemplar a análise crítica do mandato atual, em seus mais distintos aspectos, em especial a política econômica.

Numa perspectiva histórica, é fundamental que as forças de esquerda e do campo progressista estejam fortemente unidas, para a nobre tarefa da construção de uma sociedade mais justa e igualitária, em que o progresso da nação se reflita na melhoria das condições de vida, em que o crescimento econômico esteja acompanhado de forte distribuição de renda. Esta sociedade deverá ser radicalmente democrática, participativa. A reforma política deverá abrir espaços às manifestações da sociedade a fim de que sua força criativa emirja exponencialmente.

Para essa grande transformação é rigorosamente necessária uma grande base social de sustentação e elaboração teórica que defina, oriente e ilumine os caminhos. Para esta essencial tarefa os nossos intelectuais devem ser chamados a participar ativamente. Discutir, aprofundar o debate e construir uma competente fundamentação político-ideológica para este novo ciclo histórico.

Max Altman é jornalista.

EDIÇÃO 81, OUT/NOV, 2005, PÁGINAS 35, 36, 37