Vergonha: o racismo está no coração do Katrina
Joel Wendland “Odeio a forma como a mídia nos trata”, disse o astro de hip-hop Kanye West na maratona da NBC para levantar fundos para a Cruz Vermelha nos esforços para auxílio às vítimas do furacão Katrina. “Se aparece uma família negra, a mídia diz: ‘Eles estão saqueando’. Se a família é branca, o comentário é ‘Eles estão procurando comida’”.
West descartou o script escrito especialmente para o show e denunciou uma sociedade racialmente dividida, assim como a administração Bush, pelo fracasso em fornecer ajuda adequada, eficiente e rápida, no sexto dia da calamidade na cidade de Nova Orleans, cuja população é em sua maioria negra. West criticou também a ordem de “atirar para matar” dada pelas autoridades de Louisiana. Mais tarde, em outro noticiário, a NBC censurou a declaração em que West dizia que “George Bush não liga a mínima para a população negra”.
A população de Nova Orleans é composta de dois terços de negros e 28% de brancos.
Então, pode-se concluir como racista a motivação que levou Bush a cortar a verba que seria destinada ao projeto de contenção de diques, favorecendo a diminuição dos impostos pagos pelos ricos e a sua guerra contra o Iraque que, segundo a opinião da maioria das pessoas, fracassou no seu intento de tornar o mundo mais seguro?
A resposta certamente é sim.
A despeito da habilidade do presidente Bush em sorrir ironicamente e fazer piadas em várias das suas aparições públicas nos dias imediatamente posteriores ao início do furacão Katrina, as primeiras estimativas indicam que este pode ser o maior desastre natural da nossa história.
Entretanto, como noticiado pela grande mídia, o desastre não foi uma surpresa. Há anos, especialistas já vinham falando sobre a possibilidade de uma catástrofe que seria causada por um furacão de categoria 4 ou 5 na Costa do Golfo. Na Louisiana, especificamente, as autoridades locais procuraram, imploraram e exigiram fundos federais para implementar projetos para a defesa contra furacões, verbas estas que poderiam ter evitado a inundação devastadora de Nova Orleans.
Entretanto, o governo Bush vem continuamente cortando verbas para esses projetos. “Estamos avisando há muito tempo que só havia a opção de ‘pagar agora ou pagar mais tarde’”, declarou o republicano por Louisiana, Bobby Jindal, ao Boston Globe, após o furacão ter se transformado num desastre de causas humanitárias astronômicas. Robert Hartwig, economista-chefe do Instituto de Aviso de Sinistro de Seguros, teve sua opinião reproduzida nos Serviços de Notícias Newhouse no início de setembro: “Está ficando muito evidente que há um número enorme de vulnerabilidades que não estão sendo atendidas”. Toby Chaudhuri, diretor de comunicação da Campanha pelo Futuro da América, fez ecoar seus sentimento: “Este é um momento muito difícil para muitos de nós”, salientou, “mas não podemos nos esquecer de que da mesma forma que o Katrina foi um acidente, permitiu-se que a tragédia e o horror acontecessem. Isto não foi uma surpresa”.
Desde 2001, os programas nacionais para a mitigação de desastres, inclusive o Impacto do Projeto FEMA, um modelo-chave criado pelo governo Clinton, vêm sendo cortados, reduzidos ou sumariamente cancelados. Os cortes nos orçamento federal pêra esses programas têm levado as comunidades de todo o país a lutarem pelas escassas verbas destinadas aos programas de preparação para desastres naturais. A Casa Branca aprovou a redução em 50% do Programa de Garantia de Mitigação de Desastres.
O orçamento de Bush para 2006 propõe cortes de verbas para o Corpo de Engenheiros do Exército. Esta organização vem ajudando a construir o sistema de diques de Nova Orleans e propõe inovações em 2004 e no início de 2005 para as quais não seria mais possível viver à custa da procura de verbas federais destinadas a outros fins. Esses cortes propostos, após a aprovação do orçamento federal de Bush para 2005, chegaram a 13% de redução do orçamento anual do Corpo de Engenheiros do Exército, que passou dos US$ 4,6 bilhões para US$ 4 bilhões em 2005.
“Estou aqui há 30 anos e nunca vi corte de orçamento neste nível”, declarou à imprensa local, Al Naomi, gerente de projeto do Corpo de Engenheiros do Exército no distrito de Nova Orleans, antes da temporada de furacões de 2005.
“A situação financeira está tão difícil que houve um congelamento nas contratações, pela priemira vez em 10 anos”, declarou em junho último Marcia Demma, chefe dos programas de gerenciamento do Corpo de Engenheiros do Exército.
“Acredito que isto seja uma extrema falta de visão”, alertou Mary Landrieu, senadora democrata por Louisiana, no início do verão. “Quando o Corpo de Engenheiros tem seu orçamento cortado, Louisiana sangra. Estes projetos têm caráter literalmente de vida ou morte para a população do sul da Louisiana e são de vital interesse econômico para toda a nação.”
O governo Bush desviou verbas para a “guerra ao terrorismo” e sua guerra contra o Iraque forçou os Estados a arcarem com muito mais responsabilidades para socorrer e apoiar a população em caso de desastres naturais e situações emergenciais. Infelizmente, os cortes orçamentários, estimulados pelos cortes nas garantias dos Estados, em diferentes níveis, significaram poucas verbas para programas de gerenciamento de emergências. No ano fiscal de 2004, o orçamento médio para agências de gerenciamento de estado emergenciais foi de US$ 40,8 milhões, uma redução de 23% em relação ao ano fiscal de 2003.
Numa medida que mostra a falta de preocupação de Bush com a urgência nos casos de desastres naturais, o presidente exige cortes de até 75% na porcentagem das verbas destinadas às unidades federais para as despesas com a prontidão no atendimento aos desastres naturais de grande escala, e referente a outros fundos dos Estados e municipalidades ocorreram cortes de 35 até 50%.
No caso de Louisiana especialmente, Bush rejeita o apelo feito pelos congressistas do Estado, que entraram com uma petição no início do ano para que se destaque uma verba especial do governo para tratar da região costeira do Estado. Recentemente, foi aprovado um acordo no valor de US$ 540 milhões para Louisiana, a ser liberado nos próximos quatro anos — tal cifra está ainda muito longe dos US$ 14 bilhões que traduzem a necessidade do Estado. Em seu orçamento, o governo Bush propõe também apenas US$ 10,4 milhões para o Projeto de Controle de Enchentes Urbanas no sudeste da Louisiana, um corte de mais de US$ 21 milhões em relação ao ano anterior e cerca de um sexto dos fundos que as autoridades locais demandavam para o projeto principal de proteção contra furacões no sudeste da Louisiana. Da mesma forma, US$ 35 milhões em projetos de construção de diques ou conservação dos já construídos, conforme indicação do Corpo de Engenheiros do Exército em Nova Orleans, simplesmente não foram alocados.
Em setembro de 2004, Terry Tullier, diretor da agência de atendimento de emergência de Nova Orleans, expressou sua indignação ao saber que um estudo sobre alocação de fundos em nível federal, para determinar meios de proteção contra furacões de categoria 5, fora arquivado. “Sou a favor dos esforços de guerra, mas cada vez penso que US$ 87 bilhões estão sendo gastos na reconstrução do Iraque, eu me pergunto: E quanto a nós?”, declarou ao New Orleans’ Time-Picayune. Mais tarde, declara que um furacão em grande escala teria proporções enormes. “A situação é tão crítica que repercutiu em Nova Orleans, que tudo o que estiver deste lado das Rochosas sentirá as ondas do choque econômico.”
O reverendo Jesse Jackson, numa declaração feita após saber da amplitude da calamidade ocorrida em Nova Orleans, salienta: “A segurança da pátria significa mais que a remoção das pessoas até o aeroporto. O que exige que os nossos diques, barragens, rodovias, portos e estradas de ferro sejam seguros. Infelizmente, os cortes nos impostos pagos pelos ricos e os bilhões gastos numa guerra infrutífera e desnecessária contra o Iraque têm devastado nossa infra-estrutura pública, forçando cortes na construção, proteção e manutenção dos diques de proteção.”
“A tragédia do furacão Katrina aponta para problemas muito mais antigos de sucateamento da propriedade pública, da nossa infra-estrutura e das nossas comunidades”, declara Greg Speeter, diretor executivo do Projeto de Prioridades Nacionais: “Em comparação aos US$ 205 bilhões que o governo federal alocou para a guerra contra o Iraque a verba necessária para o desenvolvimento de infra-estrutura é uma ninharia.”
Em março último, quando os republicanos começaram a pressionar o Congresso contra a transferência de US$ 59 bilhões para continuar a ocupação do Iraque, ou o orçamento superdimensionado de US$ 285 para o projeto de lei das auto-estradas, ou o referente à distribuição de energia, com os seus US$ 1,3 bilhões de cortes nos impostos pagos pelas poderosas companhias de petróleo, e o projeto de falências contra as classes trabalhadoras, o senador Landrieu alertou que estes cortes simultâneos nos orçamentos dos projetos antidesastres poderiam acarretar drásticas conseqüências para a Costa do Golfo. “Corremos o risco de ter perdido mais de 100.000 vidas, caso o furacão Ivan tivesse assolado a foz do rio (Mississipi)”, declara Landrieu. “Deus tem sido com para conosco, qualquer dia destes um furacão enorme pode chegar e se os projetos não estiverem finalizados seremos um alvo fácil e desprotegido.”
“Os recursos humanos e financeiros necessários pela Guarda Nacional para prevenção de desastres naturais estão aplicados no Iraque”, criticam prontamente as autoridades da Guarda Nacional e muitos políticos. “Perder o nosso pessoal é a pior coisa neste caso em particular. Precisamos do nosso pessoal”, disse o tenente Andy Thaggard ao Washington Post. Thaggard é o porta-voz da Guarda Nacional no Mississipi, que conta com uma brigada de mais de 4 mil soldados na região central do Iraque. Cerca de 3 mil soldados do destacamento da Louisiana também estão em Bagdá.
Além da diminuição em seu efetivo, os comandantes da Guarda Nacional reclamam também da falta de equipamentos. De acordo com o Detroit Free Press, para equipar as tropas no Iraque, o Pentágono retirou das unidades das Guardas Estaduais cerca de 24 mil equipamentos, provocando dificuldades no funcionamento das unidades nos EUA. Com os resultados calamitosos do Katrina, muitas das autoridades estaduais temem que a continuação da ocupação do Iraque terá impacto negativo no recrutamento de pessoal e deixará seus estados ainda mais desprotegidos contra desastres naturais e incêndios florestais. Esta situação provocou críticas até mesmo por parte da bancada republicana. Mark Foley, parlamentar republicano da Flórida clama pelo retorno das tropas da Guarda Nacional da Flórida que se encontram no Iraque para trabalharem nas operações de recuperação após o desastre e nas medidas de prevenção.
De acordo com estimativas do Projeto de Prioridades Nacionais, no ano de 2005, os contribuintes da Louisiana pagaram US$ 1,7 bilhão em impostos que foram desviados para a guerra do Iraque — o Mississipi contribuiu com cerca de US$ 919 milhões e o Alabama com US$ 1,9 bilhão. Essas quantias não apenas poderiam ter sido distribuídas entre programas sociais nestes três estados, como também poderiam ter reconstruído e fortalecido o sistema de diques de Nova Orleans.
Enquanto alega-se não haver recursos suficientes para a proteção dos negros e trabalhadores residentes em nova Orleans, segundo os argumentos da administração e dos parlamentares republicanos, são gastos mais de US$ 24 bilhões em obras do governo para projetos de embelezamento das auto-estradas em 2005. As trilhas dos parques do estado do Maine também passaram por um processo de embelezamento, numa deferência especial aos campi universitários dos líderes do nosso país, além da caridade religiosa impostora das subvenções para “iniciativas com base na fé” que garantiram a atenção dos republicanos. De fato, de acordo com a matéria publicada pelo Washington Post, baseada no discurso do presidente do Congresso, o republicano Dennis Hastert, na Assembléia, cerca de 43% de todas as verbas federais de Ilinois são destinadas aos distritos com população branca e altamente consumista. De acordo com a imprensa e os observadores atentos e apartidários da ONG Contribuintes para o Senso Comum, em 2005, só o projeto das auto-estradas usou mais verbas do que as destinadas a todo o estado da Carolina do Sul.
Na verdade, desde 1999, quando tomou posse como presidente do Congresso norte-americano, Hastert usa as regras pouco conhecidas do Congresso para destinar centenas de milhões de dólares para universidades, hospitais e outras empresas da economia privada apenas para sua cidade natal. Uma dessas manobras garantiu US$ 7,5 milhões para a construção de uma biblioteca na Escola Fundamentalista Cristã, uma instituição privada; os fundos foram distribuídos pelo Departamento de Energia e sua finalidade identificada como sendo para “pesquisas biológicas e energéticas”. Há muitos indícios deste tipo de manobra feita sem o conhecimento e a aprovação da maioria dos congressistas.
As operações de Hastert totalizam bilhões de dólares anualmente para um distrito que, em sua maior parte, é bem sucedido financeiramente e não necessita ajuda direta e imediata do governo federal.
De maneira similar, o líder da maioria no Congresso, Tom DeLay, embora esteja sob minuciosa investigação sobre o seu envolvimento em campanhas de atividades financeiras ilegais, não ficou muito intimidado em gabar-se sobre os fundos governamentais desviados por ele para seu distrito, de população predominantemente branca. Apenas no projeto de rodovias de 2005, DeLay injetou cerca de US$ 70 milhões em melhorias na pavimentação de estradas de rodagem na sua região, assim como US$ 324 milhões para desenvolver o sistema de transportes públicos de Houston, especialmente nos subúrbios.
Mais notadamente, DeLay usa seu poder, na condição de líder da maioria, para destinar US$ 1,5 bilhão como subsídio a um consórcio de companhias com sede em seu distrito, incluindo a petrolífera Halliburton Marathon Oil, entre outras grandes companhias. De acordo com a carta do congressista Henry Waxman (democrata da Califórnia), membro do Comitê para Reforma da Câmara Alta, enviada em julho último para Hastert, DeLay aprovou uma medida após o fechamento da sessão para aprovação da verba final do projeto de lei sobre energia e os membros não tiveram chance de aceitar ou rejeitar a medida secreta.
Além desse claro abuso de poder, os fundos simplesmente são repassados ao consórcio que teria então o poder de distribuir a verba entre os contribuintes que, na verdade, não necessitam, como pode ser comprovado. Em outras palavras, DeLay concede a si mesmo o poder de legislar em causa própria, e assim agindo, usa centenas de dólares para suas corporações amigas, fundos estes que teriam sido muito melhor utilizados na otimização do sistema contra enchentes de Nova Orleans. Como era de se esperar, as empresas integrantes deste consórcio são as que fizeram as maiores doações para a campanha de reeleição de DeLay.
Outros manda-chuvas do Partido Republicano, como Bill Thomas, da Califórnia, presidente do poderoso Comitê de Meios e Métodos para Habitação angariou US$ 722 milhões em projetos, ou seja, cerca de US$ 1.000 por pessoa para sua região, o distrito de maioria branca ao norte de Los Angeles.Este cifra, de acordo com a ONG as Contribuintes para o Senso Comum, é de US$ 180 milhões, maior do que a que todo o estado da Louisiana recebeu da totalidade do projeto de lei.
Aparentemente, havia verbas para uma guerra ilegal, cortes nos impostos pagos pela população rica, enormes subsídios para as corporações doadoras do Partido Republicano, os projetos para proteção de animais de estimação, mas que não contemplam a proteção da população negra e da classe operária de Nova Orleans de um desastre natural previsível. E, quem duvidaria de que — se os especialistas tivessem previsto furacões ou outras tormentas naturais em Tallahasse na Flórida, Crawford ou Sugar Land no Texas, Aurora no Ilinois, ou Kennebunkport no Maine —, o presidente Bush rápida e resolutamente trataria de proteger seus amigos, sua família, seus aliados políticos e todos os doadores históricos do Partido Republicano? Mas ocorre que Bush nunca se preocupou com a população negra e pobre de Nova Orleans, ou de qualquer outra cidade dos EUA, como se fossem seus amigos, aliados ou da sua família.
Para a política racista e contra a classe operária Bush corta verbas de Louisiana para compensar a isenção de impostos da classe rica e para a guerra pelo petróleo. Enquanto dezenas de bilhões são escoados para as abastadas corporações doadoras do Partido Republicano, dezenas de milhares de pessoas pagam um preço muito alto. Além disso, conforme estimativa inicial do Comitê Orçamentário do Congresso, 400 mil empregos serão perdidos na região da Costa do Golfo. O crime de Bush levanta a crítica por justiça e reparações dos prejudicados. Vamos lutar por um novo plano de governo para o Sul e pelas cidades onde as políticas racistas e contra os trabalhadores retiram grande parte das verbas necessárias para a criação de empregos, a educação e a rede de segurança social.
Joel Wendland é editor de Political Affairs (EUA).
EDIÇÃO 81, OUT/NOV, 2005, PÁGINAS 55, 56, 57, 58, 59