“A história do marxismo é a história universal”
Você afirmou que Marx é o pensador que mais decididamente criticou a filosofia do retorno. Mas, após a derrota das experiências socialistas na URSS e no Leste europeu, houve na Europa e em outras partes do mundo uma tentativa de volta a Marx – o Marx puro, das origens – sem a contaminação das experiências socialistas do século XX. Isso é possível?
Domenico Losurdo – Acredito que seja errado invocar o retorno a Marx, procurando cancelar a experiência histórica do marxismo. O próprio Marx desenvolveu a sua teoria medindo-se e confrontando-se com o seu tempo histórico. Evidentemente, depois da revolução de 1848 e, sobretudo, depois da experiência da Comuna de Paris Marx refletiu do ponto de vista teórico e introduziu importantes inovações teóricas. Querer separar Marx do movimento histórico que se inspirou nele significa justamente renegar Marx. Portanto devemos estudá-lo tendo presentes todas as experiências históricas do movimento, desde a Revolução de Outubro às grandes revoluções anticoloniais que se desenvolveram no mundo todo e a toda experiência histórica do movimento comunista. Não devemos apenas ter presente Marx, mas evidentemente Lênin e outras importantes personalidades políticas que ao mesmo tempo são importantes personalidades teóricas.
O pensamento de Marx e de Engels se caracteriza por dois pontos absolutamente peculiares. Ele contribuiu de modo decisivo nos últimos 150 anos de história universal: a história do marxismo é ao mesmo tempo a história universal. A segunda característica absolutamente peculiar é que o marxismo é a única tradição de pensamento que produziu grandes personalidades políticas que são ao mesmo tempo grandes personalidades teóricas. Até quem é distante do movimento comunista deve saber – só para dar alguns exemplos – que Lênin é ao mesmo tempo um grande estadista, mas também um autor muito interessante do ponto de vista teórico. Da mesma forma, Gramsci foi uma grande personalidade política, um dirigente de primeiríssima linha do Partido Comunista – exatamente por isso o fascismo o fez morrer no cárcere – mas é uma das grandes personalidades teóricas do século XX. Podemos fazer análogas considerações em relação a Mao Tsetung e também a outras personalidades.
Portanto, não podemos compreender Marx sem termos presente um gigantesco movimento histórico que se realizou a partir dele.
O que você acha da distinção entre marxismo soviético e ocidental defendida por Perry Anderson? O que isso tem a ver com o longo processo de crise do socialismo na URSS e no Leste europeu?
Domenico Losurdo – No meu livro sobre Gramsci critiquei a distinção, ou contraposição, entre marxismo ocidental e marxismo oriental. Coloquei esta pergunta: Lênin entra no marxismo ocidental ou no marxismo oriental? Certo, ele foi um grande dirigente revolucionário russo e, portanto, deste ponto de vista não faz parte da Europa ocidental propriamente dita, mas viveu durante longo tempo no Ocidente e, sobretudo, se formou com base em dois grandes autores ocidentais: Engels e Marx.
Contudo, toda grande personalidade teórica ocidental não pode ignorar os grandes movimentos de emancipação de povos colonizados que se manifestaram, sobretudo no Oriente. Essa contraposição entre marxismo ocidental e marxismo oriental corre o risco em certa medida de ser uma expressão da mentalidade do Ocidente liberal capitalista que tende a se considerar como o lugar mais alto da cultura ocidental.
Com todas as mudanças ocorridas no século XX e início do século XXI o que tem de atual na produção teórica de Marx? Ele continua sendo, como afirmou Lênin, um guia para ação?
Domenico Losurdo – A atualidade de muitas análises de Marx e dos autores que nele se inspiraram já começa a ser reconhecida também pelo mundo burguês. Darei um exemplo em particular. Depois da acentuada agressividade dos Estados Unidos inúmeros autores muito distantes do movimento comunista começaram a reutilizar a categoria imperialismo. Naturalmente a categoria imperialismo não foi inventada por Lênin, mas certamente ele ajudou a difundi-la amplamente. Todavia, em relação ao processo de globalização, autores burgueses de primeiríssimo plano tiveram de reconhecer que o primeiro grande intérprete desse processo de globalização foi Karl Marx – basta ler o Manifesto do Partido Comunista, onde se encontra uma brilhante análise do processo de globalização. Poderíamos continuar, posso dar outro exemplo. Estudiosos norte-americanos importantes disseram que com Bush filho os Estados Unidos perderam muito de seu soft power . Inúmeros estudiosos também disseram que essa categoria de poder suave, em última análise, é uma espécie de tradução para o inglês da categoria gramsciana de hegemonia.
Você afirmou que teria havido uma crise da teoria revolucionária dentre outros fatores pelo fato de o movimento comunista internacional ter tido apenas uma teoria para a tomada do poder e não para a construção de uma sociedade pós-capitalista. A teoria não deu conta do complexo processo de transição socialista?
Domenico Losurdo – Entende-se bem que num primeiro momento o movimento comunista pensou que as tarefas sucessivas à conquista do poder seriam breves e prazerosas. Hoje é mais evidente que o processo de construção de uma sociedade pós-capitalista é mais cansativo e mais longo. Podemos citar Gramsci que diz que a passagem para uma sociedade regulada – expressão que ele usa na prisão para falar de comunismo – durará séculos.
Para mim, não se trata somente do fato de que desde o início o movimento comunista teve de enfrentar condições terríveis do cerco do capitalismo-imperialismo. Trata-se também de uma outra questão. O Manifesto do Partido Comunista sublinha o fato de que o proletariado quando chegar ao poder deve empenhar-se ao máximo no esforço do desenvolvimento das forças produtivas e deve empenhar-se a introduzir as indústrias modernas que – diz ainda o Manifesto – é uma questão de vida ou de morte. Mas naturalmente a introdução dessas indústrias tecnologicamente avançadas não depende apenas do esforço subjetivo do Partido Comunista que chega ao poder, depende também das circunstâncias objetivas. Por exemplo, o imperialismo procurou estrangular a URSS do ponto de vista tecnológico e procura fazê-lo também hoje contra a China. Esse é um aspecto que muitas vezes é ignorado. Mas esse aspecto continua presente. Claro, o desenvolvimento das forças produtivas na China foi freado pelo embargo tecnológico imperialista.
Portanto, temos um freio nos processos de construção socialista, além de erros subjetivos que não podemos esquecer. Se nós imaginarmos uma sociedade socialista como uma sociedade em que rapidamente desaparecem o Estado, a organização jurídica da sociedade e o mercado obviamente não seremos capazes de nos empenhar no desenvolvimento da sociedade socialista. Por exemplo, se nós partirmos do pressuposto de que o Estado é destinado a desaparecer, a se diluir, não podemos nos empenhar na construção de uma democracia socialista. Porque também a democracia é uma forma de Estado. Logo após a revolução bolchevista muitos foram influenciados pelo anarquismo e disseram que a idéia de Constituição é uma idéia burguesa. Outros chegaram até mesmo a afirmar que o direito é o ópio dos povos. Claro, isso freou o processo de construção no plano jurídico de uma nova sociedade socialista.
Um dos grandes méritos históricos de Deng Xiaoping é de ter sublinhado a necessidade de introduzir o governo da lei também na sociedade socialista. Mesmo que esse próprio processo obviamente seja cansativo e contraditório.
Você se rebelou quanto ao uso do conceito de implosão (ou colapso) das experiências socialistas e prefere falar em derrota. Isso reforçaria o papel exercido pela pressão imperialista sobre os países socialistas ao longo do século passado? Como se deu essa pressão e quais as conseqüências?
Domenico Losurdo – Continuo a dizer que depois do triunfo dos Estados Unidos no Ocidente ao longo da guerra fria houve uma verdadeira “Hiroshima ideológica”. Houve muitos comunistas que passaram tranqüilamente para o lado adversário, até mesmo aqueles que continuaram a se definir como comunistas, na realidade, quiseram ficar distantes do movimento comunista do século XX. Naturalmente este processo foi favorecido pelo imperialismo; contudo, essa atitude é totalmente errada.
Você é um crítico do que chamou “autofagia comunista”, um processo de capitulação e renúncia da própria identidade comunista. Em sua análise tal processo se expressa nas opiniões de uma corrente de esquerda italiana e européia sobre a China. Por favor, fale um pouco sobre isso.
Domenico Losurdo – Tenho a impressão de que essa “esquerda” em certo sentido parece querer dar razão à caricatura feita pela burguesia e o imperialismo em geral dos movimentos comunistas. Por exemplo, para a burguesia e o imperialismo os comunistas não se interessam pelas condições concretas de vida do povo e vão atrás apenas das idéias abstratas. Naturalmente, essas acusações são falsas com relação ao movimento comunista em seu conjunto. Mas, essas acusações parecem descrever o comportamento de uma certa “esquerda”.
De fato, na China nas últimas décadas centenas de milhares de pessoas saíram do subdesenvolvimento e superaram o problema da fome. Tudo isso não interessa a uma certa “esquerda”. Assistimos a um processo histórico sem precedentes. Um país que reúne mais de um quinto da população mundial está saindo do subdesenvolvimento. E não só no sentido de que está resolvendo o problema da alimentação e do vestiário dessa população, mas também de que está tendo um grande desenvolvimento tecnológico. Segundo os jornais burgueses, a China está adquirindo grande relevo do ponto de vista tecnológica. De fato atualmente ela está colocando em discussão o monopólio ocidental da tecnologia. Em certo sentido digo que a atual experiência chinesa está colocando em discussão a mãe de todas as desigualdades. Porque a desigualdade principal é aquela pela qual um grupo restrito de nações possui o monopólio da tecnologia e, portanto, pode impedir a modernização dos países que se colocam contra o imperialismo. Naturalmente para atacar a China são ditas coisas muito fantasiosas. Por exemplo, insistem na diferença, com razão, entre as regiões costeiras e as regiões do interior.
Mas, quem tem o mínimo de familiaridade com o materialismo histórico sabe que a geografia tem um papel importante. Evidentemente as regiões que se encontram no litoral têm condições mais vantajosas. E não só isso, elas estão próximas a países já desenvolvidos com os quais é possível desenvolver um relacionamento de comércio muito intenso. Bem diferente é a situação das regiões do interior do país, sobretudo as do Oeste. Antes de 1991 os países da Ásia Central que faziam parte da URSS eram os mais desenvolvidos e exerciam uma força de atração sobre as regiões ocidentais da China. Hoje a situação se inverteu. As regiões do Oeste da China são as mais desenvolvidas e exercem uma força de atração naqueles países da Ásia Central. Isso demonstra que também as regiões do Oeste estão se desenvolvendo, apesar de o desenvolvimento das regiões do interior ser mais rápido. Contudo, o governo chinês está consciente desse problema e lançou uma campanha e estão em curso colossais investimentos nessa região. Os esforços continuarão, mas tudo leva a crer que existirão resultados. Contudo, desde o início Deng Xiaoping lançou a palavra de ordem, segundo a qual, alguns se tornarão ricos antes, outros, em seguida. Mas o fato de alguns se tornarem ricos antes não significa aprovar a desigualdade. Pelo contrário, justamente as regiões mais desenvolvidas podem exercer um papel importante e acelerar o processo de desenvolvimento do Oeste.
Não se trata, como se diz, de palavras ideológicas.
Um dos maiores problemas da China nos primeiros tempos da política de abertura é que muitos de seus intelectuais que foram ao Ocidente, sobretudo aos Estados Unidos, para aperfeiçoar seus estudos, lá permaneceram, atraídos não apenas pelos grandes salários, mas também pelo estilo de vida. Era a drenagem dos cérebros. Este fenômeno está sendo reduzido drasticamente. Esses intelectuais chineses estão retornando à sua pátria, atraídos pelo grande desenvolvimento da China, mas também atraídos naturalmente pela melhoria das condições econômicas dos intelectuais. O retorno desses intelectuais à própria pátria traz uma grande contribuição para o desenvolvimento tecnológico chinês, inclusive para as regiões centrais do Oeste.
No que diz respeito ao comportamento de uma certa esquerda antichinesa, o que critico duramente não é tanto o fato de ela expressar dúvidas em relação à China, mas é realmente inaceitável o fato de esses intelectuais não quererem se confrontar com os problemas.
Quero sublinhar dois pontos. Apesar de tudo, existe uma substancial continuidade na história da República Popular da China porque durante todo este período histórico as grandes personalidades do Partido Comunista se colocaram o problema de superar o atraso em relação ao Ocidente. E, portanto, de desenvolver as forças produtivas.
Os intelectuais de esquerda antichineses se esquecem que Mao Tsetung no Grande Salto à Frente objetivava alcançar a Inglaterra. Este objetivo se demonstrou irrealístico. De fato, Mao não perdeu de vista o desenvolvimento das forças produtivas. Até mesmo a Revolução Cultural, que no fim se revelou uma catástrofe, na realidade, tinha uma palavra de ordem bem precisa: fazer a revolução, promover a produção. Mao tinha a ilusão de que numa situação em que a China sofresse embargo tecnológico seja dos Estados Unidos ou da URSS ela poderia ter um grande desenvolvimento econômico com o apelo à mobilização política. Não me parece que sejam muito sérios os intelectuais que lêem apenas a primeira parte da palavra de ordem e deixam de lado a segunda.
E a segunda demonstração da falta de vontade de empenhar-se realmente em relação às questões da China é o fato de não existir nenhuma crítica contra a teoria de que hoje os chineses avançam na construção do socialismo. Dizem que essa construção abraçará várias fases e diversos períodos históricos. Dizem que a China se encontra no início da primeira fase do processo de construção do socialismo e que essa primeira fase terminará na metade deste século. Essa teoria pode ser analisada criticamente.
A preguiça mental prefere gritar pela restauração do capitalismo.
Como você analisa a União Européia?
Domenico Losurdo – Existe um debate na esquerda sobre o significado da União Européia. Enquanto alguns companheiros da mesma ala da minha tendência falam de imperialismo europeu para mim esse discurso está errado. Naturalmente, compreendo que a UE seja uma entidade capitalista e que essa entidade capitalista se comporta de modo conseqüente. Todavia, no meu entender, seria errado não ver a radical diferença entre ela e os Estados Unidos. Os EUA têm uma imensa superioridade militar em relação à União Européia e essa superioridade está ulteriormente aumentando e logicamente não será a UE que desafiará os Estados Unidos por uma supremacia mundial.
Alguns companheiros aplicam de modo mecânico e dogmático o célebre texto de Lênin O Imperialismo: fase suprema do capitalismo. Nesse texto, como se sabe publicado durante a I Guerra Mundial, Lênin analisa a dialética que levou a esse gigantesco conflito. A Grã-Bretanha que até o final do século XIX era a potência hegemônica começa a perder espaço diante da Alemanha. A Alemanha era uma potência em ascendência em relação ao plano econômico e militar, enquanto a Inglaterra estava em declínio. E, obviamente, o desafio ao domínio mundial inglês veio justamente da Alemanha. Portanto, a Alemanha naquele momento era o perigo principal – ou um dos perigos principais – do desenvolvimento da guerra. A situação hoje é totalmente diferente. A superioridade militar dos Estados Unidos em relação à União Européia está aumentando. E, sobretudo, os EUA estão numa situação política extremamente mais favorável: constituem um Estado unitário, enquanto a UE não o é. Pelo contrário, em seu âmbito existem países estreitamente ligados aos Estados Unidos – basta pensar na Inglaterra. A França e a Alemanha se opuseram à guerra estadunidense contra o Iraque. Mas a situação pode mudar rapidamente com um novo governo seja na Alemanha ou na França.
Um terceiro elemento que devemos considerar é o ideológico. A esquerda que fala em imperialismo europeu subestima a importância que o movimento comunista teve na Europa. Certamente, o movimento comunista foi também vencido na Europa, mas deixou uma profunda influência ideológica. Hoje não existe nenhum país que possa enunciar de forma aberta na Europa um programa de expansão imperialista porque a opinião pública seria ferozmente contrária. Mussolini dizia que o império tinha voltado às colinas fatais de Roma, isto é, ele queria ser o novo imperador de Roma. Hoje se alguém dissesse isso iria para o hospício.
Isso não aconteceu nos Estados Unidos. Eles continuam a se considerar a nação eleita por Deus, a nação destinada por Deus para dominar o mundo. Vocês sabem que Bush ganhou as eleições do seu primeiro mandato presidencial com esse lema. Mas, também Clinton venceu as eleições em seu primeiro mandato presidencial com uma palavra de ordem semelhante, talvez até mais enfática, segundo a qual os Estados Unidos devem dominar o mundo e depois “a nossa missão é eterna”. Obviamente, essa consciência ideológica de ser a nação eleita por sorte não existe na Europa porque foi derrotada amplamente pelo movimento comunista. E hoje não há dúvidas sobre o perigo de guerra que representam os Estados Unidos. Não há dúvidas de que eles constituem uma ameaça. Não apenas para os países inimigos, para os países que os desafiam, mas também para os países aliados. Na Itália sabemos alguma coisa; e até mesmo para a magistratura italiana a estratégia do terror que por muitos anos ensangüentou a Itália com atentados terroristas, desenvolveu-se sob a regência da CIA. Portanto, acredito que devamos nos concentrar na luta contra o imperialismo norte-americano. Devemos impulsionar novos comunistas europeus a assumir uma política de abertura com relação à China. Por exemplo, os Estados Unidos fazem enormes pressões sobre a União Européia para que esta mantenha o embargo de armas sobre a China. Não deixemos nos enganar por essa expressão embargo de armas. Na verdade, os Estados Unidos insistem no embargo tecnológico contra o mundo porque dizem que a Europa não deve exportar para a China não somente as armas propriamente ditas, mas também as tecnologias, por eles definidas como de uso dual, que podem servir seja para uso militar como para uso civil. Toda tecnologia avançada hoje em dia é dual.
Contudo, até mesmo o movimento de libertação, por exemplo, como o da Palestina, pede à Europa que exerça um papel mais autônomo em relação aos Estados Unidos.
Nós comunistas deveríamos criticar asperamente a União Européia por ser subalterna aos Estados Unidos. Parece que nas circunstâncias atuais tenha se tornado muito atual a política que Stalin sugeriu em 1952 por ocasião do XIX Congresso do PCUS. Ele dizia que a burguesia se revelava incapaz de garantir a independência e a soberania nacional e cabia ao Partido Comunista erguer a bandeira da independência e da soberania nacional. É esta a situação de hoje na Europa.
A nossa corrente teórica e política busca, em certa medida, subordinar dialeticamente a questão social e democrática à questão nacional no Brasil atual…
Domenico Losurdo – Estou plenamente de acordo com a análise de vocês – que eu não conhecia – e já escrevi sobre isso.
Lênin insiste no fato de que a questão nacional é essencial no imperialismo. Negar a questão nacional é o mesmo que negar o imperialismo. De fato é preciso dizer que o livro de Negri e Hardt (Império) é coerente desse ponto de vista, nega a questão nacional e diz que só os saudosistas da questão falam desse problema e de fato ele nega também que hoje se possa falar de imperialismo. A seu modo é coerente, uma coerência catastrófica porque impede de ver o que está acontecendo no mundo.
Não apenas a questão nacional hoje é a mais importante, mas alcançou dimensões que antes não tinha. Os Estados Unidos não só reservam os seus direitos de intervir em qualquer ângulo do Terceiro Mundo para impedir a difusão das armas de destruição em massa, mas também para intervir nas mudanças de regime. E, logicamente, a América Latina aí está incluída.
Mas a novidade, hoje, é que de fato os Estados Unidos ameaçam também a Europa. De um lado, com a ocupação do Iraque, a ameaça de guerra contra a Síria e o Irã os Estados Unidos querem punir aqueles países que seguem uma linha política independente; de outro, aspiram a colocar sob o seu controle todos os países de importância estratégica decisiva, por exemplo, com relação ao petróleo. E, deste modo, obviamente poderão servir contra a China.
Evidentemente, se os Estados Unidos reforçam o controle da distribuição do petróleo se tornarão assim uma ameaça em relação à China, mas também uma ameaça com relação à Europa. Se os EUA conseguirem controlar o petróleo não só do Iraque mas também do Irã, a margem de manobra da Europa será muito diminuída. Ainda mais depois que os Estados Unidos se declararam autorizados a ir à guerra independentemente da ONU. Evocaram até mesmo a possibilidade de um ataque atômico preventivo e isso, claro, coloca na ordem do dia a questão nacional não somente para os países do Terceiro Mundo, ou os países pequenos, mas também para os países importantes, desenvolvidos. Portanto, estou de acordo com o fato de a questão nacional hoje mais do que nunca ser central.
Em certos casos a luta nacional é a forma mais aguda de luta de classe. Não que a luta de classe seja subordinada, mas em certos casos a luta nacional é a forma mais aguda de luta de classe.
E contra as tendências trotskistas e que tendem a contrapor questão nacional a questão de classe, afirmei que no século XX duas das maiores manifestações de lutas de classe ocorreram em Stalingrado e na China, ocasião esta que o povo chinês travou luta contra o imperialismo japonês. Nesses dois casos tratava-se de luta de sobrevivência nacional, porque tanto a Alemanha nazista quanto o Japão imperialista e fascista consideravam o povo soviético e o povo chinês como uma raça de escravos a serviço da raça dos senhores. Portanto, foi uma luta nacional no sentido clássico da expressão. Essas duas lutas nacionais subsumiam lutas de classe extremamente agudas. E, por isso, em relação também a hoje em certos casos a luta nacional é uma forma particularmente aguda da luta de classes. Por exemplo, a luta conduzida pela China para completar a independência política com a independência econômica e tecnológica é nacional. Mas ao mesmo tempo uma grande luta de classes. E essa constatação pode ser verificada em outros países. Acredito que também aqui na América Latina.
De um lado, nós todos estamos convencidos de que o inimigo principal é os Estados Unidos. Esta é uma questão fundamental. Você recusou o uso da categoria imperialismo para a União Européia. Mas a destruição da Iugoslávia fez parte de uma obra de recolonização planetária, na qual a União Européia teve papel decisivo. Como caracterizar essa posição da Europa?
Domenico Losurdo – Como já afirmei, devemos criticar asperamente a União Européia capitalista pela sua política de subalternidade no confronto com os Estados Unidos. Por exemplo, no que diz respeito à Itália não há sombra de dúvidas de que ela tenha participado da guerra contra a Iugoslávia pelas pressões de todo tipo exercidas por Washington. E vale também para os países europeus no seu conjunto.
Uma coisa é criticar asperamente a União Européia outra é dizer que ela quer desafiar a hegemonia planetária dos Estados Unidos. É exatamente o contrário: a UE por ocasião da guerra contra a Iugoslávia se mostrou subalterna e servil em relação aos Estados Unidos. Lênin pode nos ajudar também neste caso. Ele diz que quem usa exatamente essa expressão é o imperialismo napoleônico e que este imperialismo foi tão cínico e pérfido a ponto de, por exemplo, na invasão da Rússia usar como bucha de canhão exércitos de militares, de soldados provenientes da Alemanha já subjugada pela França napoleônica. Mas esses países participantes da invasão napoleônica da Rússia em posição subalterna não foram condenados por Lênin como imperialistas, mas como escravos mercenários do imperialismo.
Ou seja, com relação à guerra contra a Iugoslávia não está em questão a condenação da Europa que deve ser contida. Lembrem-se, escrevi um livro em que comparo até mesmo Dalena com Mussolini. O problema é dizer em que termos essa condenação deve ser formulada. E nós devemos condená-los como escravos mercenários do imperialismo norte-americano.
Comente, por favor, um pouco sobre os seus próximos livros que serão publicados no ano que vem em nosso país.
Domenico Losurdo – Espero que isso seja já uma coisa segura. Porque um deles, o que trata sobre Gramsci, já foi traduzido. O título em italiano é Antonio Gramsci – dall liberalismo all “comunismo critico”. Comunismo crítico entre aspas porque é uma expressão de Gramsci. Acredito que ele possa ser útil para a luta que conduz o Partido Comunista do Brasil, porque Gramsci esteja talvez entre os primeiros a compreender a centralidade da questão nacional, também para um país como a Itália. Talvez vocês não conheçam o modo como ele se dirigiu ao tribunal militar fascista que o condenou à prisão e à morte. Cito de memória: “Vocês, fascistas, conduzirão a Itália à ruína e caberá a nós comunistas salvarmos a nação”. Não se trata apenas de uma declaração muito bonita, mas na verdade de uma previsão profética do que teria acontecido, porque a II Guerra Mundial com relação à Itália se apresenta com características talvez únicas. A Itália fascista participa ao lado da Alemanha no início da guerra com um programa explicitamente imperialista: a conquista do lugar ao sol, voltar a percorrer os passos do império romano. E, de fato, em toda a primeira fase da Guerra a Itália conduz uma infame política de expansão imperialista. Mas o que acontece na última fase? Após a crise do regime fascista a Itália é ocupada pelas tropas da Alemanha nazista e se torna um país ocupado em condições semicoloniais. Havia até mesmo hierarquias nazistas segundo as quais os italianos eram tratados mais ou menos como os negros. Isto é, na última fase da guerra a Itália conduz uma grande guerra de resistência para recuperar também a sua independência nacional, exatamente como havia previsto Gramsci: os fascistas tinham conduzido a nação italiana à catástrofe e levado o Partido Comunista a salvar a nação italiana.
O grande mérito do Partido Comunista – nessa época porque Gramsci estava morto, estava sendo conduzido por Antonioni – foi desenvolver a resistência contra o fascismo e o nazismo ao mesmo tempo como luta nacional e luta social. Por isso, o Partido Comunista Italiano durante décadas foi visto profundamente pelo povo italiano em primeiro lugar como uma organização italiana. E para citar Gramsci, Lênin era um grande internacionalista porque também era profundamente nacionalista. Este é o resumo do primeiro livro.
O segundo se chama Controistòria del liberalismo e é uma história crítica das sociedades liberais e, naturalmente, em primeiro lugar, dos Estados Unidos. Só digo um particular dessa controistòria, os Estados Unidos que – como diz Clinton –, foram a primeira democracia do mundo, no livro demonstro que se considerarmos os primeiros 36 anos de vida da sua história durante 32 deles eles foram dirigidos por proprietários de escravos.
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Entrevista traduzida pela Prof. Sandra F. Ribeiro.
EDIÇÃO 82, DEZ/JAN, 2005-2006, PÁGINAS 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13