Os ingleses, sendo mais exato, sua classe dominante e adjacências, e sua mania de colocar em aposta tudo o que for possível puseram em relevo recentemente uma enquete na qual Karl Marx foi eleito o maior filósofo de todos os tempos. Os motivos para isso podem ser postos à prova. Um deles está calcado no fato de nenhum corpo científico ter provocado, no século XX, transformações ou influenciado acontecimentos em formações sociais tão díspares: da Europa à América ou da África à Ásia.

Pode-se contra-argumentar demonstrando que o corolário liberal transformou-se em senso comum nos quatro cantos do planeta. Mas um olhar científico mais amplo leva-nos a constatar que Marx foi o primeiro a propor a superação de uma sociedade pautada pela exploração do homem pelo próprio homem, por uma sociedade não alienada pela necessidade, portanto, inédita na história humana. O contexto de exploração, e sua superação nos marcos da dominação colonial e imperialista transformou o marxismo em bandeira de luta não somente para os trabalhadores europeus e norte-americanos, mas também para os povos que lutaram e lutam pela libertação de nações inteiras.

Vale colocar que nossa idéia aqui é apresentar algumas considerações gerais sobre a relação entre marxismo e Ásia. Não nos apreenderemos em aspectos teóricos da construção do socialismo naquela região. Tal processo (socialismo na Ásia) demanda um trabalho mais árduo e coletivo.

Lênin e a categoria de imperialismo

A universalização do pensamento marxista, e sua conseqüente formatação exeqüível para os povos da periferia, é obra, sobretudo das análises de Lênin. Nem Marx, nem Engels assistiram ao surgimento do capital financeiro e de sua anomalia política, o imperialismo. Coube a Lênin, nas palavras de Stálin, adaptar o marxismo à época do imperialismo e às revoluções proletárias. Neste contexto histórico analisado pelo teórico e prático russo, o nascente capital financeiro enfraqueceu a luta da classe trabalhadora européia e “incendiou” as relações centro-periferia até chegar a um ponto insuportável seja na China, na península da Coréia ou na Indochina. Logo, não é de estranhar que tamanha pilhagem, acompanhada por grandes revoluções nacionais e populares, tenha transformado a Ásia no palco em que a luta socialismo x capitalismo ocorreu de forma mais radical e sangrenta no século XX.

Em resumo, é importante salientar que a análise da absorção do marxismo na Ásia deve ser balizada tendo como ponto de partida o surgimento do imperialismo e a conseqüente mudança do foco revolucionário do centro do sistema – outrora salientado por Marx –, para a periferia, destacado por Lênin, desde a fundação da 3ª Internacional em 1919, conforme o século XX e seu legado histórico tratou de confirmar.

Revoltas camponesas

Se a compreensão inicial da relação entre marxismo e Ásia passa inicialmente pela assimilação da categoria imperialismo em Lênin, o segundo passo primordial passa por responder o porquê de revoluções terem sido vitoriosas em formações sociais essencialmente camponesas e não proletárias, como Marx o imaginava. Sejamos justos com Marx. Conforme dissemos acima, ele não assistiu ao surgimento do imperialismo; logo, temos de compreender que nosso pensador principal foi diretamente influenciado pelos acontecimentos de 1848 na Europa onde o nóvel proletariado já havia emprestado seu poder de combate. Proletariado este síntese do grau de desenvolvimento que as forças produtivas alcançaram na Europa.

Para o caso em tela (a Ásia), devemos, como Marx, abstrair elementos de tal formação social. Ele próprio nos lançou elementos para melhor compreensão daquela realidade específica ao analisar a relação entre trabalho necessário e excedente nas diferentes zonas do Globo. Tais elementos contidos nos capítulos V e XIV de O Capital (Livro 1) lança luz sobre um chamado modo de produção asiático, que compreende geograficamente territórios (Ásia e atual América Latina) onde a abundância de recursos hídricos e terras férteis se constituíram em fator de crescimento geométrico da população (daí hoje a Ásia ter a maior densidade demográfica do planeta) nos vales do Rio Ganges (Índia), Yang-tsé (China), Mekong (China e Indochina) e da fixação desta mesma população.

O modo de produção asiático correspondeu ao primeiro grande esforço de planejamento estatal (200 anos a.C., unificação do Império Chinês) ao intervir – com o apoio de massas camponesas – em imensas obras hidráulicas que permitiram ampliar as áreas agriculturáveis, a partir de áreas propícias (centrais), para áreas menos favorecidas pela natureza (1). A força deste modo de produção baseado na formação de um Estado anterior a Cristo era sintetizado em grandes invenções como a bússola, a pólvora e a caravela. Todavia, a capacidade milenar de planejamento territorial pode ser observada ainda hoje na China, tendo em vista o dinamismo do Partido Comunista da China (PCCh) em prover políticas públicas com rápidos impactos sob o 3º maior país do mundo com uma população estimada em 1,3 bilhão. Desta forma a história se justifica como a mãe de todas as ciências e o marxismo como um método quase insubstituível de análise de uma dada realidade.

Abrindo parênteses, rapidamente: o marxismo como método científico é caracterizado pelo radicalismo (a raiz do homem é o próprio homem) e a análise do concreto a partir das múltiplas determinações. Desta forma podemos perceber que o chamado Império do Meio tinha como base política milhões de famílias camponesas. Tais famílias à medida que a superestrutura política imperial tornava-se inepta ou corrupta para a necessária reparação de obras hidráulicas – redundando em enchentes avassaladoras – partiam para a organização de rebeliões que substituíam dinastias. Foi assim em 221 a.C., em 1368, 1644, 1820 e na proclamação da República da China em 1911. A última rebelião camponesa chinesa levou o Partido Comunista de Mao Tsetung ao poder em 1949. É bom deixar claro, ainda, que estes dois últimos acontecimentos (1911 e 1949) deveu-se a fatores que vão além das catástrofes naturais.

Na Coréia levantes camponeses iniciados na década de 1920 liderados por Kim Il Sung expulsaram os invasores japoneses de seu território nos anos 1940. No Vietnã, Ho Chi Minh tendo os camponeses como base política e militar demonstrou para sempre que o imperialismo norte-americano não é invencível.

E, recentemente, o apoio granjeado por mais de 800 milhões de camponeses por conta das reformas econômicas no campo (permissão de venda no mercado dos excedentes colhidos), redundando em saltos sucessivos no padrão de vida dos camponeses, foi o principal responsável – ao lado da visão política de Deng Xiaoping – pela manutenção do status quo do PCCh diante do levante contra-revolucionário de Tiananmen em junho de 1989.

Confucionismo e marxismo

Outra determinação relacionada às formações sociais em tela está no papel do confucionismo como ideologia mediadora entre as amplas massas camponesas e o poder central. Uma das idéias caudatárias do confucionismo, que habita a subjetividade de amplas massas camponesas na Ásia, está na máxima do chamado “mandato delegado pelos céus e revogáveis pelo povo”. Não passava pela cabeça de Mao que qualquer mandato político fosse delegado pela divindade, o que Mao Tsetung constatou, foi o papel histórico cumprido pelas revoltas camponesas na China. Tal constatação, fruto de um estudo radical da formação social chinesa, é um dos fatores que devem ser levados em monta nas análises acerca da vitória do grupo político de Mao dentro do PCCh na metade da década de 1930 contra o grupo até então hegemônico no seio do partido que atribuía ao proletariado industrial o papel central na revolução. Na Ásia – em primeiro lugar na China – o marxismo é apreendido a partir das especificidades nacionais pelo curso da luta política marcada por derrotas iniciais (Xangai em 1928, por exemplo) causadas principalmente por uma leitura externa (Moscou) da realidade chinesa. Afinal o PCCh – não podemos nos esquecer –, é uma organização típica da 3ª Internacional. Daí o pensamento de Mao Tsetung ser tido na China – ou o pensamento de Ho Chi Minh no Vietnã, ou a teoria Zuche na Coréia – como o marxismo-leninismo adaptado a tais realidades, sendo apenas mais um diferencial qualitativo típico de formações sociais milenares; logo, sem complexos de inferioridade diante de nenhum outro povo ou nação.

Outra determinação de ordem cultural relacionada ao confucionismo está num certo grau de materialismo deste pensamento. O confucionismo não é um corpo filosófico materialista por excelência. Mas a idéia que o mesmo faz na centralidade do trabalho como fator de progresso pessoal, aliada a fatores de ética pessoal, foi elemento, vamos dizer assim, filtrador de correntes externas que se adaptaram, na China em particular, à lógica confuciana. Empiricamente, o budismo originário da Índia, na China tem características bem menos reacionárias do que o verificado no Tibet – onde o poder do Lama e de sua descendência tem caráter divino, além de costumes conservadores como a veneração dos mortos, o credo na reencarnação etc. Isto explica em parte por que, apesar de problemas com agressões estrangeiras semelhantes, o marxismo na Ásia (leia-se China, Coréia e península Indochinesa) tem poder de penetração maior sobre amplas massas populares – que numa formação social com traços de atraso como os verificados na Índia (sociedade dividida por castas).

Trata-se, neste caso de uma polêmica teórica de relevância para aqueles que querem explicar os porquês que envolvem a maior ou menor aceitação do marxismo em determinadas formações sociais e em outras não (2).

Revolução Russa e libertação nacional

Seria impossível atribuir somente a determinações históricas e filosóficas o passaporte de entrada do marxismo na Ásia. Outras determinações de caráter político são centrais e a principal delas está relacionada com o papel da Revolução Russa na luta de libertação nacional naquela região, em especial e num primeiro momento na China.

O marxismo antes da Revolução Russa não despertou maiores interesses na intelectualidade chinesa. Isto guarda relação com a própria idéia marxiana de revolução primeiro nos países mais avançados na Europa – daí o mundo girar em torno dessa mesma Europa. Como já dissemos no início deste artigo, o eurocêntrismo de Marx estava intimamente relacionado ao papel das revoluções industriais (surgimento do proletariado) e dos acontecimentos políticas de 1848.

Retornando à China, o que de mais avançado surgiu nesse país anteriormente ao marxismo foram as idéias socialistas utópicas tipicamente anglo-saxãs (seu principal teórico foi H. George), nas quais a relação de poder central e o papel do proletariado inexistem, dando lugar à apropriação dos excedentes de produção nas mãos do Estado. Esta idéia ainda assim é mais avançada que as praticadas por socialistas utópicos franceses e suas comunidades solidárias de trabalho. O próprio socialismo atribuído a Sun Yatsen é originário desta vertente de pensamento.

Desta forma, somente uma revolução em países com condições semelhantes às da China poderia levar o marxismo ao centro da solução da problemática iniciada com a ocupação estrangeira. Assim a Revolução Russa – onde um grupo de militantes, com grande capacidade de disciplina e de organização, derrubou uma aristocracia ali encastelada havia séculos – se transformou no visto de entrada, numa luz no fim do túnel para a China.

Mas os acontecimentos de Petrogrado em 1917 não podem servir por si só como elemento de difusão do marxismo na Ásia e notadamente na China. Outra determinação – de grande monta em nosso ponto de vista – está relacionada com a forma como uma nação débil como a Rússia conseguiu expelir a ocupação de 12 países sobre seu território. Mais uma determinação está relacionada com a própria forma como a Rússia passou a tratar a China concretamente: renunciou aos tratados da Rússia czarista com o Império Chinês que previa direitos especiais na Manchúria, a indenizações inerentes à revolta dos boxers e ao fim da reivindicação sobre a Estrada de Ferro do Leste da China. Os russos logo se tornaram os melhores amigos dos chineses (3). Neste caso específico vale comparar a forma como a Rússia revolucionária passou a tratar a China com a das democracias defensoras da liberdade de expressão e dos direitos humanos, como a Inglaterra e seu “democrático” império.

O outro lado é conseqüência da forma como os comunistas chineses, já influenciados por Lênin, passaram a solucionar o problema teórico de enquadramento da China no mundo. Li Dazhao, bibliotecário, fundador do PCCh e difusor do marxismo na China, desenvolveu a idéia que se relacionou com o fato de a China não ter passado por um processo de desenvolvimento como os verificados no mundo ocidental, fazendo-a sofrer mais que qualquer outro país a opressão capitalista (5). Esta visão da China como uma “nação proletária” colocou a questão nacional no centro do processo em curso iniciado com a fundação do PCCh em julho de 1921(4).

A centralidade da questão nacional compreendida desde o início dos processos revolucionários na Ásia é resultado, do ponto de vista teórico, da necessidade de interpretação dialética de cada formação social por parte de tais organizações. De se perguntarem: qual a contradição principal? Ou, qual o aspecto principal da contradição principal?

Mas foi na necessidade de encontrar “claros” em suas formações sociais que marxistas asiáticos foram mestres em desenvolver o marxismo e as formas de luta concreta sob cada realidade concreta. O resultado: na China, no Vietnã e na Coréia do Norte seus partidos tornaram-se não somente a vanguarda do proletariado, mas também de suas respectivas nações, abrindo caminhos para o restante da humanidade. Analisemos o que representa o atual esforço chinês em superar de uma vez por todas a miséria e o subdesenvolvimento e o legado histórico da resistência do povo vietnamita na segunda metade do século passado.

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Elias Jabbour é mestre em Geografia Humana pela USP e membro da Comissão Editorial de Princípios.

Notas:
(1) MAMIGONIAN, A.: Desenvolvimento Econômico e Questão Ambiental. Cadernos da VII Semana de Geografia. Universidade Estadual de Maringá. Junho de 1997.
(2) Impossível fazer transposições mecânicas. Ou melhor, o nível de materialismo subjetivo de uma dada realidade não é determinante única para o sucesso de uma organização política marxista. Mais: deve-se tomar cuidado na análise desta importante determinação, para não se “cair” num certo “culturalismo” típico de análises liberais.
(3) NORTH, Robert: Moscow and chinese communists. Harvard University Press. 1969. p. 45.
(4) SPENCE, Jonathan D.: In search for modern China. W. W. Norton Company Inc. New York. 1990. p. 305. Uma análise mais pormenorizada da influência de Li Dazhao nas elaborações iniciais do PCCh pode ser encontrada em: MEISNER, Maurice: Li Ta-chao and the origins of chinese marxism. Harvard University Press. 1967.

EDIÇÃO 82, DEZ/JAN, 2005-2006, PÁGINAS 46, 47, 48, 49, 50