Curioso: incomum a percepção da força da determinação histórica no fato de o colosso O Capital, de Karl Marx, ter emergido num interregno especial da história da sociedade burguesa: logo após o espraiamento dos impulsos da I Revolução Industrial (+ 1760-1830); e pouco antes da primeira grande crise do capitalismo central (1873-96) – a chamada I Grande Depressão. Simultaneamente, fixemos que para a mais completa anatomia do novo modo de produção – teórica e ideologicamente até hoje –, Marx vasculhou o mais amplo painel da história do pensamento econômico.

Noutro prisma, importa também destacar: por volta de 1896 o capitalismo central desfaz-se da depressão retomando o crescimento econômico. Pari passu ao enorme avanço da influência dos partidos social-democratas europeus, notadamente do importante partido alemão e sua prioridade à participação eleitoral-institucional. As circunstâncias históricas e ideológicas fazem surgir o revisionismo, cujo porta-voz foi o líder do POSDA, Eduard Bernstein. Fala-se então numa “crise no marxismo” (Hobsbawn, 1982: 79).

Como notamos, o corte epistemológico radical realizado pela teoria econômica de Marx ocorre num frenético redemoinho da história da idéias da época moderna. Vejamos primeiramente alguns condicionantes materiais e ideológicos da economia política anterior e posterior ao surgimento da obra magna de Marx.

O Capital ex-ante e ex-post à ideologia dos liberais equilibristas

Recordemos que na presença revolucionária do novo modo de produzir riquezas, logo em seu nascimento fez-se gigantesco esforço para justificar “cientificamente” a idéia de equilíbrio dinâmico. A Inglaterra desbravava o modo capitalista de produção. O mercantilismo debatia-se para manipulação do Estado para impor a violência extra-econômica na acumulação primitiva – capital comercial, absolutismo e mercantilismo comporiam uma sólida unidade. Depois, a hegemonia do capital comercial, dirigida pelo absolutismo feudal, entrou em declínio; nasce a grande indústria e o proletariado passa a ser a “mercadoria especial”; as trocas (e seus valores) se generalizam massivamente: a riqueza do mundo aparecia como uma imensa coleção de mercadorias, assinalara Marx naquela sua obra. Processava-se a I Revolução Industrial (2).

O escocês Adam Smith (1723-1790), de Kirkcaldy, um pequeno porto, foi o ideólogo pioneiro da economia política clássica e formulador da tese do “equilíbrio” dinâmico do capitalismo; e da idéia do trabalho como fonte do valor, porém fundado em relações sociais de caráter natural (3). A ideologia do liberalismo teorizava a irrupção daquele movimento econômico “autônomo”. A grande força da “razão” iluminista questionava o mundo explicado até então pela revelação divina.

Como bem argumentara BELLUZZO (1987: 10-11), da “ordem revelada” passou-se à “ordem natural”, onde a “lei invisível” do enriquecimento privado tinha que ser, de algum modo, enunciada. Ou seja, a misteriosa (e insepulta) “mão invisível” do mercado representaria o automatismo da tendência ao equilíbrio (ou a lei cega da regulação do mercado), sendo tão eficaz quanto as leis da mecânica clássica de Newton, recorda Mazzuchelli (2002:188). Todavia, para Smith, em direção oposta aos mercantilistas, o Estado não deveria intervir na economia, pois ela era guiada pelas leis naturais do mercado: a livre concorrência e a competição entre os produtores determinavam o preço das mercadorias e eliminavam os fracos e os ineficientes.

Já David Ricardo (1772-1823) nascido em Londres, era filho de um judeu holandês que se encheu de dinheiro na bolsa de valores; rompeu com a família aos 21 anos. Na bolsa e em poucos anos também enriqueceu, passando a se dedicar à literatura, à matemática, à química e à geologia (4). Em Princípios de economia política e da tributação (1817), desenvolvendo a teoria da renda fundiária, ele afirma que o aumento populacional criaria a necessidade da ampliação das áreas de cultivo e como os terrenos mais férteis já estavam ocupados, seria necessário incorporar novas áreas. Estas, por serem menos férteis, exigiam maior adubagem, e trabalho; por conseguinte, aumentavam os rendimentos dos donos dos melhores solos (5).

A inflexão: posteriormente, os economistas fundadores da escola neoclássica regridem às explicações completamente fora das razões sociais e históricas de uma economia que sabidamente somente funciona em função (e em torno) de pessoas reais. Quer dizer, para eles o capitalismo “desarvorado” nada tinha a ver com um modo de produzir riqueza abstrata, onde o capital como dinheiro é seu símbolo geral; e onde os trabalhadores “pessoas concretas” são desempregadas e exploradas de maneira brutal.

Alfred Marshall (1842-1924), o teórico do “equilíbrio parcial” dos mercados na dinâmica do capitalismo, foi o mesmo que enfatizou a categoria “tempo” na economia, como uma das principais causas das dificuldades nas investigações econômicas. Segundo afirmara: “Quando a procura e a oferta estão em equilíbrio estável, se um acidente qualquer deslocar a escala de produção da sua posição de equilíbrio, imediatamente entrarão em jogo forças tendentes a fazê-la voltar a essa posição” (Marshall, 2002: 177). Aduzindo a seguir: “Mas não podemos prever o futuro com exatidão. O inesperado pode acontecer” (MARSHALL, idem: 178).

Mas o exemplo neoclássico radical encontra-se no economista francês León Walras (1834-1910), ressuscitado pelos neoliberais. Matemático, Walras inventou a “teoria do equilíbrio geral” como norma de formulação dos argumentos econômicos. Considera, desta feita explicitamente, que a mecânica de Newton deveria ser “o modelo para todas as áreas do conhecimento científico”. Em outras palavras, conforme o pensamento neoclássico, “o mundo dos interesses econômicos tende a se ordenar por si próprio” (Walras), pois as forças naturais de mercado atraem o sistema capitalista à posição de equilíbrio (Mazzuchelli, 2003:144).

Assim, devemos compreender não haver mistério no fato de que as principais obras de Walras e Marshall datarem, exatamente, do período da denominada I Grande Depressão: respectivamente, Compêndio dos elementos de economia política pura, datada de 1874; e Princípios de economia: tratado introdutório, publicada em 1890!

O Capital: gênese e signos

No estupendo percurso de Marx à economia política é indiscutível a influência do artigo de Engels “Esboço para uma crítica da economia nacional” (1844). Neste texto, para além da análise que realiza da economia política clássica de Smith e Ricardo, segundo Marx, ali já se encontraria “um genial esboço para a crítica das categorias econômicas” (5). À época, a divulgação do artigo contra Bruno Bauer, “A questão judaica” (1843) já apontava os germes da interpretação de Marx sobre a alienação, aqui então envolta na correlação entre religião, comércio e dinheiro (6). O que antecede aos seus famosos Manuscritos econômico-filosóficos (1844), também chamados “Manuscritos de Paris”, por lá terem sido escritos pelo Marx de 26 anos e representarem uma espécie de convergência dos avanços nos estudos de economia política (7).

A fecunda caminhada de Marx para o desvelamento das leis, das leis de movimento que regem o modo de produção do capital, toma outro impulso a partir de 1850 – no “retiro” da derrota das revoluções de 1848 –, em estudos concentrados, em Londres, que culminam nos formidáveis Grundisse (Elementos fundamentais para a crítica da economia política (borrador)1857-1858). Nasce então Contribuição à crítica da economia política (ou Para a crítica da economia política, 1859), cujo Prefácio veio a se constituir num verdadeiro tesouro para o pensamento materialista da história, e no seu interior a formulação indelével:

“O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência” (Marx, 1982: 25).

Conforme acentuou Hobsbawn, já pelos fins dos anos 50 do século passado, Marx já seria “altamente especializado” em história do desenvolvimento capitalista; e, mesmo julgando-se pelos padrões contemporâneos, as informações disponíveis eram extremamente deficientes entre 1850-60, problema tornado irrelevante, “especialmente quando utilizadas por um homem da acuidade mental de Marx”, então um “profundo conhecedor” da volumosa literatura da teoria econômica, disponível na bibliografia de O Capital (Hobsbawn, 1977: 28). O Capital, como sabemos, tem sua publicação iniciada em 1867, edição dos três livros só completada por Engels (1894); o Livro 4, Teorias da mais-valia, editado através de K. Kautsky (1905-1910) numa péssima compilação de manuscritos.

Em sua complexa arquitetura, O Capital exige a precaução contra o malabarismo interpretativo, como no ideologismo disfarçado do badalado cientista burguês K. Popper: “a história caracteriza-se antes por seu interesse por acontecimentos reais, singulares ou particulares do que pelas leis e as generalizações”, disse ele, atacando supostas “leis férreas” em Marx – o que levou D. Bensaid a opor que Marx não se dava a esse tipo de previsibilidade histórica, pois “O Capital não é a ciência das leis da história, mas crítica da economia política” (Bensaid, 1999: 29).

Noutro enfoque, e tratando das rupturas epistemológicas na obra de Marx, C. A. Barbosa de Oliveira (op. cit, 2003) considera imprescindível outra precaução em relação a O Capital, a saber, a que afirma nele existir uma dogmática “teoria geral do modo de produção capitalista”, como escreveu o historiador J. Gorender (1978: 22). Não – argumenta Barbosa de Oliveira –:

“advertimos que os capítulos históricos [de O Capital] não constituem um estudo sobre a formação do capitalismo inglês. Na verdade, ainda que não alcancem o estatuto de ‘teoria geral do capital’, explicitam as determinações gerais comuns à formação de qualquer capitalismo. Em outras palavras, a análise de Marx não fixa leis gerais processo de gênese do capitalismo, mas retém momentos lógicos deste processo” (p. 77; negrito nosso).

Maurice Dobb, similarmente a Barbosa de Oliveira, ou seja, em crítica às generalizações esquemáticas que caracterizariam o estudo de Marx, afirma em seu último ensaio: “O que mais impressiona em O Capital, ao contrário, é sua estrutura essencialmente histórica: objeto de análise e da demonstração são as particularidades de funcionamento do capitalismo enquanto sistema econômico-social ligado a determinadas condições históricas, que o caracterizam como modo de produção específico” (1980: 132; negrito nosso). Já para Mauro C. B. de Moura, no exame das reelaborações das edições alemã e francesa (entre 1872 e 1875) do livro de Marx, reafirma não ter havido uma “versão definitiva”; contudo, “A argumentação de Marx, ainda que não se disponha a escrever uma história do capital, enquanto narrativa de sua constituição empírica, efetua, sem embargo, uma reconstrução de seus passos necessários, lógicos, das suas condições de possibilidade de existência e desenvolvimento, cujo ordenamento acompanha, a nível abstrato, seu movimento de constituição real” (op. cit.: 66-73; negritos nossos). [Continua]

*A. Sérgio Barroso é doutorando em economia pela Unicamp.

Notas
(1) O escrito corresponde a uma célebre carta – não discutida suficientemente por estas bandas – de Marx a Engels sobre O Capital, amplamente analisada em sua idéia central no: El gran descubrimiento de Carlos Marx, de V. Afanásiev e V. Lantsov, p. 5, Moscou, Progresso, 1986.
(2) Conforme sublinha C. A. Barbosa de Oliveira (2002: 58), o último passo para a constituição das forças adequadas ao capital é a implantação da fabricação de máquinas, vale dizer, segundo Marx “a grande indústria não teve outro remédio senão apoderar-se de seu meio característico de produção. E produzir máquinas por meio de máquinas. Desse modo criou a base técnica adequada e levantou-se sobre seus próprios pés”.
(3) Em seu célebre estudo A riqueza das nações: investigações sobre sua natureza e suas causas (1776), Smith apresenta com clareza uma das teses centrais: “O preço real de cada coisa – ou seja, quanto ela custa à pessoa que deseja adquiri-la – é o trabalho e o incômodo que custa à pessoa a sua aquisição. (…) Eles [dinheiro ou bens] contêm o valor de certa quantidade de trabalho que permutamos por aquilo que, na ocasião, supomos conter o valor de uma quantidade igual” (Smith, 2002: 40).
(4) Habitualmente sarcástico, em A era da Incerteza, J.K. Galbraith disparou sobre Ricardo: “Ricardo deu aos ricos uma fórmula plenamente satisfatória de se conformarem com a infelicidade dos pobres” (São Paulo, Pioneira/Universidade de Brasília, 1979: 24-26).
(5) Nesse seu mais destacado estudo, Ricardo distingue a noção de valor da de riqueza. O valor era a quantidade de trabalho necessária à produção do bem, mas não dependente da abundância, e sim de maior ou menor grau de dificuldade na sua produção. A riqueza compreendia os bens que as pessoas possuem, que eram necessários, úteis e agradáveis (Ricardo, 2002: 65-66; 90-91).
(6) Ver: Friedrich Engels. Biografia (1986), p. 51. Na verdade o artigo estimulou Marx a avançar nos estudos iniciados em 1843, tendo se referido ao artigo “muitas vezes em sua obra”. Depois da publicação de “Esboço” é que começa a correspondência e a constante troca de idéias entre os dois (idem, ibidem).
(7) “Ora bem, a emancipação do dinheiro e do lucro, quer dizer, do judaísmo prático e real, seria a proporia emancipação da nossa época” (Marx, apud Mhering: 1974: 90). Cf. também com Moura, M. C. B. (1999: 55-56).
(8) Nos Manuscritos, Adam Smith sofre a primeira crítica demolidora de Marx. No capítulo “Renda da terra”, diz Marx, a exemplo: “Mas se a partir disso Smith conclui que o proprietário fundiário explora todas as vantagens da sociedade e, por isso, o interesse do proprietário fundiário é sempre idêntico ao da sociedade; então isso é ridículo” (Marx, 2004: 70).

EDIÇÃO 82, DEZ/JAN, 2005-2006, PÁGINAS 60, 61, 62, 63