“Luzes e sombras” na América Latina
Três aspectos se destacam no quadro latino-americano desse início do século XXI: um elenco de presidentes representativos de forças nacionais e democráticas, identificados aos olhos do povo como “de esquerda” e que tende a crescer; a formação de blocos voltados para organizar as necessidades do desenvolvimento e da integração continentais, dos quais o mais expressivo é o Mercosul; e um dispositivo militar americano grandemente fortalecido do ano 2000 para cá, acantonado em linhas estratégicas definidas segundo pontos vitais do continente. Para usar uma expressão de João Amazonas, são “luzes e sombras” que se espraiam no início do século XXI por nossa Latino-América.
A geopolítica americana para a América Latina é definida pelo hegemonismo dos EUA. Sob a ótica imperialista-militar, o espaço físico ocupado pelos Estados Unidos no continente americano aponta o restante do continente como área de interesse estratégico-militar, reserva territorial próxima que deve ser monitorada de perto. Sob a ótica imperialista-econômica o interesse estratégico vem, em primeiro lugar, da proximidade de riquezas naturais proeminentes, passíveis de serem exploradas e de se transformarem em reservas de longo prazo, destacadamente a Amazônia – a maior concentração de água doce em superfície do planeta e a maior floresta tropical do mundo; o Aqüífero Guarani, centrado na região da Tríplice Fronteira (Brasil, Paraguai e Argentina) – o maior manancial de água potável subterrânea da Terra; e reservas minerais variadas: petróleo (Colômbia, Venezuela, Equador), cobre (Chile), estanho (Bolívia), gás (Bolívia). A proteção de vastas propriedades americanas e empreendimentos espalhados por todos os países do hemisfério sinalizam outra razão do interesse americano por essas regiões.
Por isso a política americana para essa parte do mundo sempre foi de força e de intimidação, que evoluía rapidamente para a intervenção militar ou a desestabilização de governos considerados hostis para serem substituídos por outros subalternos. No jargão chulo, os Estados Unidos têm essa parte latina da América como seu “quintal”, e em alguns momentos adotou posições simbólicas a respeito, como foi o caso da Doutrina Monroe, de 1820, que declarava ser “a América para os americanos”, ou a de Roosevelt, a do “Big Stick”, o “grande porrete”, de 1901 a 1909, que levou a inúmeras intervenções militares.
Pela mesma razão a América Latina também foi palco de diversas ditaduras implantadas pelos Estados Unidos, bafejadas como governos legítimos porque se prestavam a defender os interesses geopolíticos dos Estados Unidos, especialmente no período da Guerra Fria. Quando um país pequeno, Cuba, não se sujeitou ao Império, a retaliação passou a ser política perpétua, aparecendo sob a forma de vários atentados contra a vida de seu líder Fidel Castro e de um absurdo bloqueio comercial que já dura 47 anos, denunciado 14 vezes pela ONU, sem que os Estados Unidos tomem o menor conhecimento.
A despeito da presença ameaçadora, intervencionista e espoliadora dos Estados Unidos, há tempos a América Latina busca realçar sua identidade própria, em quadro de diversidades regionais e de luta de classes, e organizar a defesa de seus interesses. A luta pela independência do jugo colonial, que levou à constituição de Estados nacionais, foi marco importante nessa busca e foi quando apareceram líderes como Tupac Amaru, Simon Bolívar, José de San Martin, José Marti, José Bonifácio, entre outros que não só encabeçaram lutas pela independência como formularam as primeiras idéias sobre a identidade latino-americana e sobre objetivos políticos nacionais – como algumas expressas no famoso discurso de Bolívar no Congresso de Angostura, em 15 de fevereiro de 1819, quando dizia “mantenhamos presente que nosso povo não é nem europeu, nem norte-americano é antes composto de África e América” e que esse povo deve perseguir “a divisão dos Poderes, a Liberdade civil, a proscrição da escravidão, a abolição da monarquia e dos privilégios”.
A organização da defesa dos interesses nacionais, aduaneiros, de integração e de desenvolvimento econômico dá passos mais significativos a partir de meados do século XX. Registram-se nesse período iniciativas propriamente latino-americanas que procuram se afirmar frente a outras articuladas pelos Estados Unidos, surgindo ainda entidades organizadas sob os auspícios da ONU. E assim aparecem, em fevereiro de 1948, a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), ligada à ONU; em maio do mesmo ano, no contexto da Guerra Fria e da estratégia americana de contenção do comunismo, a Organização dos Estados Americanos, OEA, que em 1962 expulsa Cuba de seus membros; em 1960, a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC), que chegou a contar com onze países latino-americanos; em 1961, a Aliança para o Progresso, patrocinada e dirigida pelos Estados Unidos, em resposta à revolução cubana de 1959; em 1969, o Pacto Andino, que aglutinou seis países até 1973, quando o Chile se retira, depois do ditador Augusto Pinochet; em 1980, sucedendo à ALALC, a ALADI, Associação Latino Americana de Integração; e, finalmente, com a assinatura em 29 de março de 1991, do Tratado de Assunção, em 1991, foi constituído o Mercado Comum do Sul, o Mercosul, entre Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. E a história passou a registrar fatos surpreendentes.
O Mercosul é uma iniciativa de formação de um bloco econômico regional de países que se dá quando o sistema capitalista mundial mostra uma tendência à criação desses blocos. Já havia o Pacto Andino, desde 1969; a União Européia (UE) aparece em 1992; o Acordo de Livre Comércio da América do Norte, o Nafta, também em 1992; e a Cooperação Econômica da Ásia e Pacífico, a APEC, em 1993.
O Mercosul é fruto de um trabalho desenvolvido há bastante tempo, que passou pelo Tratado da Bacia do Prata, em 1969, entre cinco países da região; por um Tratado sobre Aproveitamento dos Rios do Prata, em 1971; pelo próprio Tratado sobre Itaipu Binacional, em 1973; pela Declaração de Iguaçu, assinada pelos presidentes Sarney, do Brasil, e Alfonsin, da Argentina, em novembro de 1985, sobre uso pacífico de energia nuclear; e pela “Ata de Integração Brasileiro-Americana”, assinada em 20 de julho de 1986, que evoluiu para o “Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento”, de 1988, destinado à abertura entre os mercados brasileiro e argentino, entre outros tratados.
Superando dificuldades, o Mercosul encerrou seu “período de transição” em 1994, quando foi assinado o Protocolo de Ouro Preto, que lhe conferiu jurisdição internacional. O Mercosul avança em entendimentos para receber como membros o Chile e a Bolívia e abre tratativas com o Pacto Andino com o mesmo objetivo. Na hipótese desses países virem a se incorporar ao Mercosul, já se fala na possibilidade disso dar surgimento a um novo bloco, o Amercosul. E o plano dos Estados Unidos era diferente.
O plano americano é o de criar outro bloco, a Área de Livre Comércio das Américas, a Alca, no qual os Estados Unidos teriam papel decisivo. O projeto da Alca foi aprovado por 34 chefes de Estado das Américas, em reunião havida em Miami, em 1994. O projeto sinalizava o fim das articulações e início do funcionamento da Alca para 2005. Na continuidade, diversas reuniões ministeriais foram feitas, em diferentes países, sendo que, na VI Reunião ministerial, realizada em Buenos Aires, confirmou-se o término das negociações para 2005. A III Cúpula das Américas, realizada em Quebec, ainda em 2001, acertou que a Alca deveria “entrar em funcionamento até, no máximo, dezembro de 2005”. E dezembro passou.
Um “arco virtuoso” se formou na América do Sul
No exame dos fatores que impediram a Alca de cumprir seu cronograma e, mais que isto, que a levaram à sua atual situação de quase desarticulação, pesou muito a posição assumida pelo governo do presidente Lula no Brasil de cautela em face da Alça; e de rediscussão de seus objetivos e métodos e de incremento do Mercosul. Sem o Brasil integrado na consecução da ALCA não foi possível mantê-la, pelo menos com seus planos inicias. Além do mais, alterou-se substancialmente o quadro político da América Latina. O “quintal” deixou de o ser.
A vitória de Lula em 2002 levou a uma inflexão política na América Latina, em particular na América do Sul. Logo no início, quando forças pró-americanas procuravam desestabilizar Hugo Chávez na Venezuela, o presidente brasileiro movimentou-se hábil e eficazmente em sua defesa. Manteve-se próximo de Cuba. Segurou com força a bandeira da integração física latino-americana e da consolidação do Mercosul.
Modificações na situação de outros países fizeram surgir um cenário novo nessa parte do mundo, retratado por recente apreciação do ministro das Relações Exteriores do Uruguai, Reinaldo Gargano, ao dizer que, por aqui, “há hoje um arco virtuoso com Lagos no Chile, Kirchman na Argentina, Lula no Brasil, Vasquez no Uruguai e Chávez na Venezuela”. Dito cenário sofrerá modificações importantes em curto prazo, já que a América Latina passará, de dezembro de 2005 a dezembro de 2006, por 12 eleições presidenciais e 13 eleições legislativas. Levando-se em conta probabilidades diferenciadas e riscos de erros inevitáveis aceita-se que candidatos à esquerda poderão ser eleitos no Chile, Bolívia, Nicarágua, Brasil, México e talvez mais, o que aumentaria o “arco virtuoso” de que falou o ministro uruguaio. Naturalmente esta perspectiva não agrada aos Estados Unidos, que vêm adotando medidas em outra direção.
Que pretende um país que monta vinte bases militares na América Latina?
Tomando por referência o ano 2000, registra-se grande e crescente presença militar americana na América Latina, especialmente na América do Sul. No próprio ano 2000, foi aprovada no Legislativo e sancionada pelo presidente Clinton a Lei 106/246, que trata do Plano Colômbia. Na sua concretização, foram construídos na Colômbia três bases militares, Três Esquinas, Larândia e Porto Lequízamo. Para garantir corredores aéreos, foram implantadas mais três: Manta, no Equador; Hato, em Curaçao; e Rainha Beatriz em Aruba. Outras duas bases serviam para ampliar o sistema, Iquitos e Nanay, no Peru. E uma Escola de Selva funciona em El Coca, no Equador.
Além dessas bases, vinculadas ao Plano Colômbia, mais três funcionam, há mais tempo, em Viegues, Porto Rico; em Soto do Cano, Honduras; e em Guantânamo, Cuba.
Os Estados Unidos não escondem sua disposição de construir mais bases, uma em El Salvador; outra na Patagônia, Argentina; uma em Alcântara, Brasil; outra na região do rio Itomanas, Bolívia; e finalmente na região do Chaco, Paraguai. Há menos de dois meses noticiou-se a presença de “soldados americanos”, desenvolvendo “missões humanitárias” e “treinando paraguaios”, na “Base Mariscal Estigarrilia”, no Chaco, Paraguai. Seriam quatrocentos militares “humanitários”.
Computando-se bases menores, como a de Costa Rica, bases aéreas e instalações de radar, os estudos registram a existência hoje, na América Latina, de mais de 20 guarnições militares americanas, a maioria na América do Sul! A disposição das bases, existentes e planejadas, obedece a três grandes eixos: do Plano Colômbia, da Tríplice Fronteira e da Patagônia. O Plano Colômbia aponta para a região setentrional da América do Sul, onde está a Amazônia e a Venezuela. Aí, a estratégia americana é de intimidação, intervenção e ocupação. É a região onde os Estados Unidos depositam seu maior interesse, onde estão a Amazônia e a Venezuela. A Tríplice Fronteira responde pela parte central da América do Sul e a Patagônia completa o cerco no extremo do continente, defronte da Antártida. A existência do citado “arco virtuoso” tem impedido os Estados Unidos de implantarem suas pretendidas bases de Alcântara, no Brasil, e da Patagônia, na Argentina.
Grandes desafios
Os destinos do governo Lula e o resultado das eleições de 2006, no Brasil, são problemas cruciais, do ponto de vista de quem quer resistir aos planos geoestratégicos dos Estados Unidos para a América Latina. Isto porque, a chegada de Lula ao posto de primeiro mandatário brasileiro em muito contribuiu, e às vezes foi decisiva, para a constituição do “arco virtuoso” de que falou Gargano. Ao revés, um eventual afastamento de Lula da presidência, ou a substituição das forças que hoje compõem o governo brasileiro por outras submissas ao pensamento americano, seguramente precipitaria o esfacelamento do dito “arco”, abrindo espaço para o avanço dos planos imperiais americanos na América do Sul.
Lamentavelmente, o governo Lula, no que diz respeito à política macroeconômica que executa, a despeito de diferenças, continua no fundamental como o governo anterior, contendo o desenvolvimento nacional, como interessa ao mundo financeiro. Em estratos da população, há uma sensação de frustração, ante um governo que não mudou como prometera e que se enredou em uma crise que causa perplexidade, na qual a velha direita entreguista e corrupta se veste de farisaísmo ético e passa à ofensiva, planejando retomar a plenitude do poder. O próprio presidente por vezes repete que não haverá mudança na frente econômica, o que torna mais oneroso o apoio que lhe dão as forças progressistas mais conseqüentes. Mas essas forças, justamente por serem mais conseqüentes, não podem deixar de avaliar o quadro geoestratégico que nos rodeia, prenhes de “luzes e sombras”.
No tratamento dessas questões de fundo a própria esquerda brasileira debate seus caminhos. Teme ser tida como incapaz de cumprir, quando governa, o que prometera para governar e, mais ainda, de ser considerada incompetente, continuísta e corrupta. O dramático é que a história da esquerda no Brasil e no mundo é bem outra, de bravura, competência, honestidade, simplicidade e sacrifício.
Mas o contencioso está aí, alimentado por desacertos nas bases governistas e potencializado pelo controle direitista da grande mídia. Predomina na esquerda a compreensão dos problemas e o posicionamento correto ante o conflito político em curso. Mas, ante o risco de perder bandeiras e de ficar desacreditada frente ao povo, vê-se dispersão, indisciplina, desnorteamento e defecção. É a crise, atingindo a esquerda.
Nesses momentos, a esquerda mais conseqüente, com os comunistas, os políticos progressistas, as lideranças trabalhadoras, os estudantes, a juventude e os intelectuais na linha de frente, não pode perder o rumo. Nem perder de vista as funestas conseqüências estratégicas que advirão de acontecimentos para os quais ela não pode contribuir, tipo a derrota da esquerda nas eleições de 2006. Tal se dando, poderia sucumbir, ou ser gravemente enfraquecido, o surto da esquerda nesse continente. O Império entraria em êxtase.
Além do mais, no Brasil, voltariam as forças que aqui impuseram a “privatização”, suspensa no governo Lula. Seria reaquecida a lista que já estava pronta das empresas privatizáveis: Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Furnas, CHESF, Tucuruí e, por que não, a Petrobras.
A esquerda deve continuar pelejando por mudanças na política econômica de talhe neoliberal. Deve ser rigorosa com os que cometeram erros. Mas nada disso justifica, nem agora, nem perante o futuro, que ela faça o jogo estratégico do Império, e da direita brasileira, dispersando seus esforços e dividindo suas fileiras, acentuando contradições, deixando de contribuir, mesmo quando problemas existem, para a vitória da primeira experiência de participação da esquerda de extração popular no governo de nosso país.
*Haroldo Lima é diretor da ANP e membro do Comitê Central do PCdoB.
EDIÇÃO 82, DEZ/JAN, 2005-2006, PÁGINAS 73, 74, 75, 76