O mês de março sempre nos leva a refletir sobre a questão da mulher. Ainda mais porque o dia internacional da mulher, o 8 de março, é uma homenagem prestada às 129 operárias têxteis queimadas vivas em Nova Iorque em 1857 por exigirem redução da jornada de trabalho. Esta homenagem, proposta por Clara Zetkin na 2ª Conferência Internacional de Mulheres Socialistas realizada em 1910 em Copenhague, Dinamarca, selaria simbolicamente a íntima relação da caminhada libertadora da mulher com a luta dos operários por sua emancipação social.

É justamente nestes tempos de resistência ao neoliberalismo, de afirmação da centralidade do trabalho e de reavivamento da perspectiva socialista que considero importante registrar no mês da mulher as contribuições marxistas para o entendimento da opressão da mulher e sua perspectiva libertadora. Apresento uma breve resenha das principais contribuições que servirão de roteiro de estudo e aprofundamento sobre o tema.

Feminismo x Marxismo

Vale destacar que os marxistas, em todos os tempos, sempre se preocuparam com o tema acima exposto e deram uma interpretação científica, ao afirmarem: “A questão feminina é uma questão social e só como tal poderá ser resolvida”. Fizeram a primeira análise mais sistemática sobre o assunto, desnaturalizando a condição de subordinação das mulheres e situando sua gênese num processo histórico-social.

Além dessa noção de historicidade, a teoria marxista contribui com o conceito de alienação – mais especificamente, de alienação em relação ao processo de trabalho – fundamental ao entendimento do papel do trabalho doméstico no processo de produção da vida material.

O principal a ser destacado é que o núcleo central da teoria marxista – a concepção de um processo histórico e materialmente situado, originando conflitos, hierarquias e instituições – permitiu desnaturalizar as desigualdades de gênero, superando uma abordagem essencialista que situava na natureza humana a base da dominação e da subordinação (C. Araújo).

Assim como a teoria marxista precisa ser desenvolvida, também sua elaboração sobre a questão da mulher precisa avançar – inclusive à luz das experiências socialistas e do atual estágio do capitalismo, da ofensiva neoliberal conservadora e da resistência dos povos.

Muitas foram as críticas às teses marxistas sobre a questão da mulher, sobretudo com a alegação de que estes deixaram de lado sua especificidade e reduziram sua condição apenas a uma questão econômica. Um apêndice das relações produtivas. No livro A ideologia Alemã, Marx e Engels demonstram entender esse aspecto como parte de um único processo. Nele, afirmam que a reprodução e a manutenção da vida dos indivíduos, assim como as relações sociais que os mesmos estabelecem, são tão importantes quanto as relações de produção. Tudo isso permitiu uma dimensão coletiva da subjetividade humana. Outra resposta a esta questão foi dada por Engels em 1890, numa carta a Bloch, quando esclareceu: “(…) segundo a concepção materialista da história, o fator que em última instância determina a história é a produção e reprodução da vida real. Nem Marx nem eu afirmamos, uma vez sequer, algo mais que isso. Se alguém o modifica, afirmando que o fato econômico é o único fato determinante, converte aquela tese numa frase vazia, abstrata e absurda. A situação econômica é a base, mas os diferentes fatores da superestrutura que se levanta sobre ela – as formas políticas da luta de classes e seus resultados, as constituições que, uma vez vencida uma batalha, a classe triunfante redige etc, as formas jurídicas e inclusive os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos que nelas participam, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as idéias religiosas e o desenvolvimento ulterior que as leva a converter-se num sistema de dogmas – também exercem sua influência sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam sua forma, como fator predominante” (grifos de Engels).

E afirma mais adiante: “Se os mais jovens insistem, mais do que devem, sobre o aspecto econômico, a culpa em parte temos Marx e eu mesmo. Face aos adversários, éramos forçados a sublinhar este princípio primordial que eles negavam e nem sempre dispúnhamos de tempo, de espaço e de oportunidade para dar importância devida aos demais fatores que intervêm no jogo das ações e reações”. É preciso voltar, portanto, às fontes marxistas para identificar seus pressupostos, o contexto histórico em que foram produzidos, os acertos e os problemas pendentes a enfrentar à luz do atual momento histórico.

Contribuições pré-marxistas

Nos primórdios do capitalismo, os ideólogos burgueses procuraram justificar “cientificamente” a inferioridade da mulher com base em suas particularidades biológicas, em suas funções reprodutoras da espécie humana e por sua “inclinação natural” em se ocupar da casa e da educação dos filhos.
Em contrapartida, muitos pensadores progressistas pré-marxistas assumiram o combate a essas idéias reacionárias e defenderam a valorização social da mulher.

Dentre eles, os enciclopedistas franceses, na luta contra o feudalismo, e, mais tarde, os socialistas utópicos.
Charles Fourrier afirmou nessa época: “a mudança de uma época histórica pode ser sempre determinada pela progressão das mulheres em direção à liberdade (…) O grau de emancipação da mulher é a medida da emancipação em geral”.

Flora Tristan também combateu a idéia da mulher como pária da sociedade, expondo suas idéias em União Operária.
Embora defendessem posições avançadas para a época, nenhum deles identificou as raízes sociais da discriminação da mulher, não conseguindo indicar o caminho para sua emancipação.

A Contribuição Marxista

Marx e Engels demonstraram em sua obra que a opressão da mulher coincide com o surgimento da propriedade privada dos meios de produção e o surgimento das classes sociais. Indicavam que a história de submissão da mulher começa quando ela é afastada da produção social.

A primeira idéia sobre o assunto aparece no Manifesto do Partido Comunista, em 1848. Nele, afirmam que somente a socialização da propriedade pode fazer desaparecer a situação de submissão da mulher. Também nesse documento, Marx e Engels afirmam o papel da família na reprodução da opressão da mulher e indicam a possibilidade e a necessidade de transformar essa instituição.

Afirmam que a burguesia reduz as mulheres a instrumento de produção ou prostituição. Fazem uma crítica sobre a instrumentalização da burguesia das relações afetivas e do lugar socialmente reservado às mulheres.

No livro Á questão judaica fazem a distinção entre emancipação política e emancipação humana, indicando os limites da igualdade jurídica ou formal como instrumento de reversão da subordinação vivida pelas mulheres. Numa compreensão de que a subordinação não cessará apenas com a abolição das distinções legais, mas, sim, com a busca de uma transformação das estruturas econômicas e políticas geradoras de desigualdades.

Nas Teses sobre Feuerbach, Marx, ao desenvolver a concepção materialista da história, aborda a função social da maternidade, quando caracteriza a família como terceiro fator que intervém no desenvolvimento histórico ao afirmar: “O terceiro fator que aqui intervém, desde o princípio, no desenvolvimento histórico, é o de os homens, que renovam diariamente sua própria vida, começam, ao mesmo tempo, a criar outros homens, a procriar: é a relação entre marido e mulher, entre pais e filhos, a família”.

Após analisar os três fatos históricos (a produção da própria vida material, o surgimento de novas necessidades e a procriação), Marx afirma: “Esses três aspectos da atividade social não devem ser considerados como três degraus diferentes, mas simplesmente como três aspectos, ou como (…) três momentos, que coexistiram desde o início da História e desde o primeiro homem e que ainda hoje continuam regendo a História”.

Em 1884, dando continuidade aos estudos de Marx sobre Morgan, Engels publica o livro A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, no qual analisa as diversas fases históricas do desenvolvimento da humanidade para comprovar que as mudanças na condição da mulher sempre corresponderam às grandes transformações sociais, ao desenvolvimento da ciência e da técnica.

Analisa a involução da situação da mulher, das condições de uma igualdade na época do considerado comunismo primitivo até a condição da chamada civilização. Mudança que se operou a partir da exclusão da mulher do processo produtivo social. Daí a conclusão de Engels: “A emancipação da mulher e sua equiparação ao homem são e continuarão sendo impossíveis enquanto ela permanecer excluída do trabalho produtivo social e confinada ao trabalho doméstico, que é um trabalho privado. A emancipação da mulher só se torna possível quando ela pode participar em grande escala, em escala social, da produção; e quando o trabalho doméstico lhe toma apenas tempo insignificante”. Há questionamento com base na evolução da antropologia de que a superioridade masculina, a segregação das mulheres, teria sua origem na divisão dos papéis que se operou nas sociedades comunitárias de caçadores-coletores. As mulheres tornando-se pouco móveis, graças ao estado de gravidez e amamentação constantes, tinham dificuldades em participar de caçadas longínquas ou das guerras, e ficavam na colheita, e nos trabalhos domésticos. Para os marxistas, essa divisão de papéis só passa a ter conotação de submissão com o surgimento da propriedade privada e o confinamento da mulher para garantir a herança da propriedade.

Augusto Bebel, um dos fundadores da II Internacional também se dedicou à questão da mulher e escreveu A Mulher e o Socialismo, em 1889. Nele, há o mesmo argumento de Marx e Engels sobre a questão, ao afirmar: “Todas as opressões sociais encontram sua raiz na dependência econômica do oprimido em sua relação com o opressor. Desde os tempos mais remotos, a mulher se encontra nessa situação: a história do desenvolvimento da sociedade humana o ensina”. Bebel vai além de Engels quando identifica a diferença de liberdade e a hierarquia existente entre o homem e a mulher proletária. Chega a afirmar que todas as mulheres, apesar da classe, teriam algum interesse em comum e poderiam se unir em torno de algumas demandas.

A II Internacional e o papel de Clara Zetkin

Embora tenha colocado entre os objetivos da organização a paridade entre os sexos e a defesa das condições de vida e trabalho da proletária, a II Internacional ignorou a luta pelo direito ao voto, apesar da ação política de Clara Zetkin. Além da luta pelo sufrágio feminino, ela considerava necessária a conquista de uma legislação mais humana para as condições de trabalho da mulher na fábrica e uma organização específica para a operária. Ela sofreu críticas por sua visão de classe de diferenciar a posição de classe na luta da mulher. Contribuiu para o entendimento da dimensão específica da opressão da mulher, ao mostrar que mesmo um partido revolucionário, sem que haja uma atuação das mulheres em torno de suas demandas, não contempla satisfatoriamente essa problemática.

A contribuição de Lênin deixou mais clara a estratégia da luta pela emancipação da mulher como componente da revolução proletária. Aproximou os objetivos dos dois movimentos. Lênin ajudou pessoalmente na elaboração de muitas leis que vieram a favorecer a mulher, após a instauração do poder proletário. Entendeu a importância do combate à dupla jornada de trabalho com a entrada em massa da mulher na produção social. Afirmou: “A tarefa principal do movimento operário feminino consiste na luta pela igualdade econômica e social da mulher e não somente pela igualdade formal. A tarefa principal é incorporar a mulher ao trabalho social produtivo, arrancá-la da escravidão do lar, libertá-la da subordinação – embrutecedora e humilhante – ao eterno ambiente da cozinha e do quarto das crianças. É uma luta prolongada que requer uma radical transformação da técnica social e dos usos e costumes. Porém, esta luta terminará com a plena vitória do comunismo”.

E mais: “Não se pode assegurar a verdadeira liberdade, não se pode edificar a democracia – sem falar de socialismo – se não chamarmos as mulheres ao serviço cívico, na milícia, na vida política, se não a tirarmos da atmosfera brutal do lar e da cozinha”.

Foi relevante o papel de Alexandra Kollontai, que se destacou na crítica ao problema do amor e da mulher na sociedade burguesa. Em seu livro A Nova Mulher e a Moral sexual destacou as características da nova mulher que nascia: “A autodisciplina, em vez de um sentimentalismo exagerado; a apreciação da liberdade e da independência em vez da submissão e da falta de personalidade; a afirmação de sua individualidade e não os esforços estúpidos para se adaptar ao homem amado; a afirmação do direito de gozar os prazeres terrenos e não a máscara hipócrita da ‘pureza’; e, finalmente, a subordinação das aventuras do amor a um lugar secundário na vida. Diante de nós temos não uma fêmea, nem uma sombra do homem, mas uma mulher-individualidade”.

Kollontai enriqueceu a compreensão teórica sobre a questão específica da mulher. Foi a primeira mulher a dirigir um gabinete ministerial (Bem-Estar Social). Perseguiu o objetivo político de dar à mulher completa independência legal, igualdade no casamento, direito ao aborto e o princípio do pagamento igual para trabalho igual na sociedade russa. O apoio do Estado à maternidade e às crianças. Combateu a marginalização da mulher no partido. Kollontai também reforçou a idéia de que as relações de discriminação da mulher possuíam uma dimensão ideológica bastante enraizada, que exigiam uma ação específica que fosse além das transformações no modo de produção econômica.

Perspectivas

– Vimos a grande contribuição dos marxistas ao identificarem a gênese da opressão e conseqüentemente apontarem o caminho da emancipação social e da opressão da mulher.
– Constatamos que o capitalismo avançou e as relações de trabalho se modificaram. Trata-se hoje de analisar a forma como essa dominação/subordinação foi se estruturando e conformando ao longo da história. Fica o desafio de entender a complexidade que as interações sociais foram assumindo até o período contemporâneo. A partir da idéia da subordinação da mulher como algo socialmente estruturado.
– Sem abandonar os eixos da análise marxista, atentar para a complexidade do processo de formação das idéias e da representação como elementos das relações sociais. De como estas relações foram se conformando e como a subjetividade coletiva foi sendo construída ao longo da história.
– Analisar a forma diferenciada de como os efeitos da opressão incidem sobre as mulheres das diferentes classes.
– Como relacionar melhor o público e o privado.
– Discutir o papel das ações educativas e transformadoras.
– O desafio de incorporar as mulheres na luta de resistência ao neoliberalismo, que hoje reforça a visão conservadora sobre a questão da mulher.
– Debater a perspectiva do socialismo, que abre caminho para a emancipação da sociedade e das mulheres.
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Ana Rocha é jornalista e psicóloga, presidente estadual do PCdoB-RJ e membro da Comissão Política Nacional do PCdoB.

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EDIÇÃO 83, FEV/MAR, 2006, PÁGINAS 76, 77, 78, 79, 80, 81