Protocolo de Kyoto: o Brasil e o mundo
Sem margem para muitas dúvidas o Protocolo de Kyoto foi uma resposta institucional a um problema que afeta toda a humanidade, a questão ambiental. O artigo segundo do Protocolo sugere o fomento da eficiência energética em determinados setores da economia, o que demanda um certo nível de apreensão tecnológica. Sabemos que um dos “nós” para o desenvolvimento econômico na periferia do capitalismo está justamente na questão da tecnologia. Sabidamente, existem duas fontes de energia não poluentes: a energia hidrelétrica e a nuclear, que dependem de altos investimentos. Como você enxerga esta relação entre fomento da eficiência energética, tecnologia e desenvolvimento econômico na periferia do capitalismo, levando em conta que as revoluções industriais são marcadas, entre outras coisas, por mudanças também na fonte de energia?
Luis Fernandes – O Protocolo de Kyoto se refere a uma dimensão da questão ambiental, que é o aquecimento global. E esse tema é muito importante porque está vinculado aos efeitos da Revolução Industrial. Sabe-se hoje que a Revolução Industrial pressupôs e materializou a migração para uma matriz energética baseada em energia fóssil, ou seja, a queima dessa energia nas suas diversas versões: inicialmente o carvão e posteriormente o petróleo. Essas fontes de energia emitem gases que se acumulam na atmosfera e não permitem a liberação e a reflexão dos raios solares e do calor associado desses raios para fora da atmosfera. A esse fenômeno dá-se o nome de efeito estufa justamente porque corresponde ao que acontece numa estufa em que os gases bloqueiam a saída do calor e com isso processa-se um aquecimento global no planeta, com uma associação direta às conseqüências da Revolução Industrial e aos processos que constituíram e constituem as atuais assimetrias no sistema internacional.
Os países centrais, dominantes e hoje imperialistas são os que tomaram a dianteira na Revolução Industrial e se valeram da transição para uma matriz energética altamente poluente para crescer e se impor econômica e politicamente no mundo. Então, o mesmo processo que gerou o efeito estufa é o que gerou e reproduziu as desigualdades no sistema internacional e isso é uma questão fundamental para nos posicionarmos em torno da questão.
O protocolo de Kyoto é o desdobramento da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre mudanças climáticas, acordada na Rio 92. Naquele momento a diplomacia brasileira teve uma posição muito importante em introduzir um conceito chamado “responsabilidades comuns, mas diferenciadas”, ou seja, o aquecimento global é um problema global e não pode ser combatido apenas pelas ações de um país. Ele exige, para ser eficaz, a ação conjunta de preferência de todos os países. É um programa comum e exige respostas comuns, mas a responsabilidade histórica pelo aquecimento global é diferenciada entre os países. Aqueles que tomaram a dianteira na Revolução Industrial – hoje os países centrais, os ricos do sistema internacional – têm a maior responsabilidade, pois foram historicamente os que mais soltaram gases poluentes que se acumulam e não se dispersam na atmosfera; portanto, eles são os principais responsáveis pelo aquecimento global que atinge a todos. O processo que os constituiu como países dominantes no sistema internacional hoje atinge a todos. O princípio sacramentado na Rio 92 é esse, o da responsabilidade comum mas diferenciada, ou seja, todos devem se unir para combater a mudança climática e o efeito estufa, mas os principais responsáveis pela evolução do problema têm que arcar com o principal custo da sua resolução. Esse princípio foi inscrito e materializado no Protocolo de Kyoto, que estabelecia uma diferenciação entre os países centrais e ricos que assumiriam metas quantitativas de redução da emissão de gases poluentes em razão de sua responsabilidade histórica pelos efeitos do aquecimento global. E esses países passaram a compor um anexo chamado Anexo 1 do protocolo. Trata-se da lista de países que são fundamentalmente ou países centrais ou aqueles que compunham o antigo campo socialista na Europa central e oriental e assumem metas quantitativas de redução de emissão de gases poluentes.
Já os países em desenvolvimento não. Eles são incentivados a adotar políticas nacionais de desenvolvimento limpo, ou seja, que combinem desenvolvimento com redução da emissão de gases poluentes, mas não têm metas quantitativas.
A partir dessa compreensão, estabeleceu-se um mecanismo que permite aos países centrais que não conseguirem atingir sua meta de redução de emissão de gases poluentes financiar projetos de desenvolvimento limpo nos países em desenvolvimento e com isso obter créditos, chamados “créditos de carbono”, para abater da sua meta de redução de emissão de gases poluentes. Esse mecanismo foi um triunfo não só da diplomacia brasileira, mas também dos países em desenvolvimento porque ele permite agora que a transição como matriz energética mais limpa nos países em desenvolvimento seja financiada pelos países centrais. Essa solução é muito importante porque os países em desenvolvimento têm que se defrontar com o dilema do desenvolvimento e o desenvolvimento sempre encerra dento de si a possibilidade de riscos ambientais e de destruição ambiental. Então, o mecanismo acertado no protocolo de Kyoto é de combinar a preservação da prioridade do esforço de desenvolvimento dos países mais pobres com novas modalidades de financiamento que lhes permitam adotar tecnologias de desenvolvimento limpo e uma matriz energética mais limpa, evitando com isso as conseqüências nefastas para o meio ambiente que acompanharam a trajetória de industrialização dos países capitalistas centrais.
Essa é uma forma de combinar desenvolvimento econômico com desenvolvimento sustentável do ponto de vista ambiental na periferia do sistema. Estamos diante dessa possibilidade e é um modo de lidar com a questão que não aceita que o tema da proteção do meio ambiente se transforme num instrumento para bloquear o desenvolvimento dos países mais pobres; pelo contrário, ele busca garantir com o financiamento dos países centrais a possibilidade de adoção de matrizes energéticas limpas nos países em desenvolvimento que, dessa forma, se desenvolveriam de maneira sustentável, diferentemente do que aconteceu nos países centrais em suas trajetórias originais. Há uma gama de possibilidades energéticas para os países em desenvolvimento adotarem com base nos compromissos do protocolo de Kyoto, com acesso a financiamento dos países centrais. Por exemplo, as energias hidrelétrica, nuclear, solar, eólica, a exploração da biomassa e da agroenergia como a do álcool e a do biodiesel, ou seja, a biomassa como fonte energética alternativa à fonte mais poluente, que é baseada em combustíveis fósseis.
Há uma questão controversa em relação ao protocolo de Kyoto. Trata-se dos créditos de carbono, situação em que se estabelecem cotas de emissão para cada país nas quais um país pode vender sua cota a outro. Já há inclusive, no Rio, uma bolsa de cotas de carbono. Há aqui dois problemas: o primeiro, levantado por quem encara esse tipo de comércio como algo que pode congelar o desenvolvimento dos países pobres ao abrirem mão de seu direito de emissão. O outro é levantado por ambientalistas segundo os quais este mecanismo não ajuda a diminuir os atuais níveis de emissão de gases na atmosfera, mas que, ao contrário, os congela. Qual sua opinião a respeito?
Luis Fernandes – Em relação a essas duas questões, a lógica do mecanismo é exatamente a do não congelamento. A pergunta é: isso pode congelar o desenvolvimento dos países pobres que abrem mão do direito de emissão? Em primeiro lugar não é direito de emissão, o que existe são países em desenvolvimento sem metas de redução. Não se trata de concessão de direitos de emissão. O fato é que, ao vender créditos de carbono para os países centrais, estes países obtêm novas fontes de recursos e podem ampliar a adoção de tecnologias ímpares para o seu desenvolvimento nacional. Não se trata de congelar, isso aconteceria se não houvesse o crédito de carbono. Seria como dizer “vocês têm de assumir metas de não emissão de gases poluentes”. Isso equivaleria a colocar os países em desenvolvimento na mesma posição dos países centrais, assumindo uma outra lógica: financiamento dos países centrais para o desenvolvimento sustentável dos países mais pobres.
Por outro lado, temos a crítica de alguns setores ambientalistas que fazem o serviço, consciente ou inconscientemente, da política externa para os países dominantes. Um dos pontos de reclamação dos EUA em relação ao protocolo de Kyoto é justamente este: como os EUA vão assumir metas de redução se os grandes países em desenvolvimento – como Brasil, Índia, China, África do Sul – não têm metas? Então esses ambientalistas cobram dos países em desenvolvimento que eles também assumam metas. Mas isso contraria o princípio da justiça internacional, inscrito no protocolo de Kyoto. Esses países não são historicamente os principais responsáveis pelo efeito estufa, portanto, os países que são os principais causadores do problema têm de arcar com o maior custo de sua solução. O Brasil tem defendido com sucesso nos fóruns internacionais que os países em desenvolvimento não tenham metas, mas tenham incentivos para adotar programas de desenvolvimento limpo em seus países – isso foi inscrito nos acordos da recém-realizada Conferência de Montreal. No caso das florestas tropicais, como no Brasil, entre 70% e 75% da emissão de gases poluentes são frutos do desmatamento. Por isso, não nos marcos do protocolo de Kyoto, mas nos da Convenção das Nações Unidas, foram estabelecidos mecanismos de incentivo para os países em desenvolvimento preservarem as suas florestas tropicais. O Brasil inclusive teve um grande avanço em 2005, ano em que conseguimos reduzir em 31% o desmatamento de Amazônia. Essa é a nossa principal contribuição para combater a emissão de gases, sem, no entanto, ter metas para cumprir.
O Brasil, por conta de sua natureza privilegiada, pode desenvolver fontes alternativas e renováveis de energia. Intelectuais como Bautista Vidal e Beroaldo Maia Gomes têm chamado há décadas a atenção para a solução a partir da energia solar e da concentração nos vegetais de substâncias químicas, que se resume no termo biomassa. O governo brasileiro tem mostrado disposição em tocar adiante projetos de pesquisa em torno deste recurso. Em que estágio anda este tipo de pesquisa para utilização da biomassa como uma matriz energética no Brasil hoje?
Luis Fernandes – O Brasil é líder no desenvolvimento de tecnologia de exploração da biomassa para fins energéticos. Isso se expressa especificamente na utilização no etanol do álcool. Aliás, o professor Bautista Vidal foi um dos responsáveis pela primeira versão do programa do álcool no Brasil – isso é reconhecido mundialmente. Existem vários países comprando tecnologia brasileira para utilização da tecnologia do álcool. Hoje os motores chamados flex fuel – que utilizam tanto o álcool quanto a gasolina – já representam mais de 70% da produção automobilística no país. Portanto, é uma iniciativa de ponta. Temos também o programa do biodiesel que inclui não só a incorporação de 2% de biodiesel ao petróleo – base da energia produzida para transportes – mas também o fato de a produção do combustível limpo do ponto de vista da emissão de gases vir aliada a um conteúdo de inclusão social muito forte, pois se trata de cultivos vegetais vinculados à população mais pobre e à agricultura popular. Temos o exemplo do cultivo da mamona no semi-árido e do dendê na região Norte. Há todo um campo a ser explorado na área da agroenergia –justamente o potencial agrícola brasileiro – visando a uma energia limpa para todo o país. A própria matriz hidrelétrica brasileira também é relativamente limpa. Nas características do nosso país, diferentemente de outros países e em função da profusão dos rios existentes, a produção de energia elétrica é gerada por usinas hidrelétricas. São poucos países no mundo que têm essa capacidade, pois são dependentes, por exemplo, do carvão e do petróleo para produção de eletricidade. Por isso é muito importante essa sinalização definida na Conferência de Montreal: pensar um novo paradigma de cooperação internacional nos marcos da Convenção Quadro das Nações Unidas. Porque ali foi indicado que seria necessário definir novas formas de investimento por meio das quais recursos dos países centrais fomentariam a transferência de tecnologia e desenvolvimento limpo entre os países em desenvolvimento. E nesse terreno o Brasil é claramente líder e pode transferir tecnologia para todos os países em desenvolvimento, pois tem uma ampla experiência e capacidade instalada para tanto.
Então em médio, talvez em longo, prazo nosso país poderá por si só dar conta de um desenvolvimento ambientalmente sustentado?
Luis Fernandes – No meu entender, a nossa perspectiva é a das mais favoráveis do mundo, pois temos essas características não só de desenvolvimento tecnológico, mas as de clima, de flora, que permitem esta exploração sustentável do país.
O protocolo de Kyoto concentra o problema a variação climática que tem acometido o nosso planeta. Essa variação, em seu entender, tem relação com a ação antrópica ou com um chamado ciclo natural do planeta Terra? (EDVAR/ ELIAS: para mim, está faltando alguma coisa nessa frase)
Luis Fernandes – Segundo o entendimento que fundamenta o protocolo de Kyoto, o presente processo de aquecimento global é fruto da ação antrópica e isso é medido. Hoje não há mais dúvidas em relação a isso. Pesquisas realizadas na Antártida, inclusive com participação brasileira, deram as provas definitivas para essa questão. Claro, há um ciclo natural de flutuação de temperatura na Terra – nós já tivemos várias eras do gelo anteriores e vários períodos de aquecimento. A pesquisa na Antártida, como ambiente-palco dos estudos pelo grande acúmulo de neve e ainda por ser uma região inabitada, permite recompor os ciclos da atmosfera na Terra via profundidade da neve. Trata-se de um fenômeno: bolhas de ar ficam presas dentro da neve, então as camadas sucessivas assumem uma ordem cronológica. Há pesquisas que fazem um corte nessas camadas e conseguem traçar as quatro estações na Antártida de hoje até centenas de milhares de anos atrás. Desse modo, essa pesquisa revela a flutuação da temperatura na Terra, mas também revela a composição da atmosfera, como, por exemplo, a composição de gases poluentes responsáveis pelo efeito estufa. Há um ciclo natural, mas fica claro nos estudos que se nota nos últimos 300 anos – em particular nos últimos 200 anos – uma evolução que sai por completo do ciclo natural nas duas dimensões. Isso acontece em termos de aquecimento fora do ciclo natural da terra e de elevação de temperatura média, por um lado. Por outro, uma presença muito maior de gases poluentes responsáveis pelo efeito estufa na atmosfera. Portanto, a única explicação para isso são as conseqüências da Revolução Industrial e a opção pela utilização de combustíveis de origem fóssil como base da matriz energética naquele momento – e isso é claramente demonstrado. Então, claramente, há uma variação de um ciclo natural da Terra, mas há agora também uma evolução que foge por completo desse ciclo e é responsável pelo aquecimento global. Essa evolução e esse aquecimento global vêm acompanhados de inúmeras implicações; por exemplo, o aumento das secas, a redução de geleiras, a alteração da flora e da fauna, o aumento da incidência de furacões e fenômenos naturais extremos como o Tsumani, entre outras. Essas conseqüências são ainda mais drásticas para aqueles países que são ilhas de baixa elevação, como Samoa e também as ilhas Faroe, que podem ser simplesmente varridas do mapa com a elevação do nível das águas, fruto do aquecimento global.
Você chefiou a delegação brasileira ante a Conferência do Clima ocorrida em Montreal há algumas semanas. Novamente os interesses do centro e da periferia do sistema entraram na pauta, sendo que o Brasil ganhou notoriedade ao aventar a hipótese de os países periféricos intensificarem seus próprios esforços de redução de gases e que o aumento desse esforço depende necessariamente de compensações feitas pelos países ricos. Qual o resumo que você faria deste encontro e o papel do Brasil na defesa dos interesses dos países da periferia?
Luis Fernandes – Eu apontaria duas questões fundamentais. Primeira: o protocolo de Kyoto entrou em vigor apenas no ano passado, porque para entrar em vigor era necessário que países responsáveis por mais de metade da emissão de gases poluentes no mundo aderissem a ele. Diante da recusa dos EUA – os principais emissores de gases poluentes – em assiná-lo, essa barreira dos 50% só foi atingida com a assinatura da Rússia, dando encaminhamento ao protocolo em fevereiro de 2005. As metas de redução de gases, nele acordadas, têm um prazo de vigência até 2012. Então, a primeira grande discussão da Conferência é haver uma sinalização clara de que o sistema de metas do protocolo vai continuar depois de 2012, pois a tendência das empresas dos países centrais seria de adotar um comportamento oportunista e descompromissado em função do prazo não acordado. Então um dos avanços da Conferência de Montreal foi os signatários do protocolo terem sinalizado claramente que essas metas terão continuidade, inclusive com a adoção de metas mais duras após esse período. Esse fato cria um clima de segurança regulatória para os países e as empresas. Foi então definido um novo calendário para que ao longo de 2006 as novas metas dos países centrais sejam estabelecidas, preservando o critério de que os países em desenvolvimento não assumirão metas nos marcos do protocolo de Kyoto. Sem esse primeiro avanço, boa parte dos princípios do protocolo não poderia ser executada de imediato, pois não haveria segurança no seu cumprimento.
Segunda: estabelecimento de um novo marco para um diálogo mais amplo sobre mudanças climáticas para além do protocolo de Kyoto. Então, acordou-se – e os EUA se recusaram inicialmente em fazer parte do diálogo, inclusive se retirando das negociações no ponto mais crítico da Conferência de Montreal, mas, por fim, tiveram de recuar e aceitar a posição defendida pela esmagadora maioria dos países presentes – que fosse aberto um novo diálogo sobre mudanças climáticas nos marcos da Convenção Quadro, aprovada na Rio-92. Nesses marcos foi introduzida essa possibilidade de estabelecer um novo paradigma de cooperação internacional para promover o desenvolvimento limpo e combater as mudanças climáticas do efeito estufa. Essas mudanças serão possíveis com o financiamento dos países centrais e a transferência de tecnologia entre os países em desenvolvimento, objetivando generalizar a adoção de tecnologias limpas e com padrões de desenvolvimento sustentável nos países não-centrais. Esse segundo ponto da Conferência representou uma derrota da posição original da política externa dos EUA, que se recusavam a propor esse tipo de negociação, mas tiveram não só que recuar e aceitar, mas também adotar os termos inscritos como orientadores na nova rodada de negociações.
O Brasil teve papel absolutamente decisivo nesses dois pontos fundamentais da Conferência. A própria idéia de ter dois trilhos de negociação – um no âmbito do protocolo de Kyoto e outro no da Convenção Quadro das Nações Unidas – foi uma iniciativa da diplomacia brasileira, construída ao longo do tempo, que acabou predominando na Conferência.
Como você vê essa discussão sobre o meio ambiente? Quais são os principais aspectos que os marxistas devem explorar nesse tema da danificação da qualidade de vida das pessoas como conseqüência do estágio que o próprio capitalismo alcançou neste início de século?
Luis Fernandes – A questão da proteção ambiental é um tema agudo da agenda mundial, mas nem sempre foi tratado com a importância devida pela teoria marxista. No meu entendimento, a teoria marxista é a mais bem equipada para lidar com a questão, porque o princípio promotor da destruição ambiental é a própria natureza predatória do capitalismo –um sistema orientado para o lucro a partir da propriedade privada. A questão ambiental pode então interferir no objetivo do capitalismo – a maximização do lucro –, o que gera uma predisposição predatória inscrita nessa lógica. Parece-me claro indicar que a agenda da preservação ambiental – combinada com a distribuição de riqueza e renda que gere maior igualdade no mundo e combata as desigualdades sociais – é respaldada pelo marxismo, que consegue aliar essas duas coisas. A agenda da preservação ambiental deve ser incorporada como um elemento estruturante da agenda socialista e antiimperialista para o século XXI no mundo, resguardadas as particularidades dos países em desenvolvimento – que se defrontam com a desigualdade econômica e política existente no sistema internacional, aguçada com o advento do imperialismo. A agenda é deles. Então no caso de marxistas atuando em países dominados pelo sistema imperialista, implicam também a sagacidade e a clareza em não aceitar que a bandeira da proteção do meio ambiente possa ser usada como instrumento para tolher o próprio desenvolvimento desses países. Por isso o tipo de iniciativa que nós conseguimos inscrever no protocolo de Kyoto é muito importante, pois nos permite combater as desigualdades geradas pelo sistema imperialista no mundo, com esforços para garantir o direito de desenvolvimento dos países mais pobres e dominados pelos países imperialistas, combinando a proteção ambiental com o combate à pobreza e a busca do crescimento econômico sustentável. Essa é uma agenda que deve ser incorporada como parte da agenda do socialismo no Século XXI, mas também como parte da agenda antiimperialista do Século XXI. O fato é conseguir combinar o desenvolvimento nacional dos países dominados com os mecanismos de promoção de desenvolvimento sustentável capazes de cobrar dos países imperialistas a sua responsabilidade histórica pela destruição ambiental, objetivando o fim da desigualdade existente no sistema internacional.
Você, como estudioso da experiência socialista da URSS, como analisa a gestão ambiental durante as primeiras experiências socialistas no século passado?
Luis Fernandes – O nosso balanço crítico das primeiras experiências socialistas nos remete à insuficiência das medidas de proteção ambiental, pois as experiências socialistas do século XX emergiram em países que estavam na periferia do sistema capitalista e que, portanto, tiveram de enfrentar conjuntamente o desafio da transição para o socialismo, com o desafio da superação do atraso herdado das sociedades anteriores. Havia urgência não só em termos de um projeto visto como necessário para a sociedade no seu desenvolvimento histórico, mas também pela situação geopolítica, na qual todas as experiências enfrentaram um cerco capitalista hostil e mais poderoso do ponto de vista econômico, político e militar. Portanto, a necessidade de se criar rapidamente uma base industrial era também um tema de defesa e de sobrevivência dessas experiências, pois se elas não tivessem montado rapidamente uma base industrial não teriam condições de se defender de uma eventual agressão por parte desse cerco capitalista que era a característica e o contexto do desenvolvimento dessas experiências. O exemplo concreto da URSS é claro, pois se ela não tivesse empreendido um esforço gigantesco de industrialização acelerada no final dos anos 1920 e ao longo dos anos 1930 não teria uma base industrial que pudesse ser convertida na indústria de defesa que, em última instância, derrotou o nazismo na II Guerra Mundial. Contudo, isso teve um custo do ponto de vista do não-desenvolvimento pleno do potencial de preservação ambiental, que faz parte do próprio projeto socialista, na medida em que ele não é movido pela lógica da maximização do lucro de empresas privadas, mas é um projeto de desenvolvimento em que predomina o interesse social. E há um interesse social inerente também na preservação do meio ambiente, porque os seres humanos são parte dele, na medida em que se trata das condições de vida das pessoas. Essa dimensão da agenda emancipatória da teoria marxista foi relevada em segundo plano. Ela foi obscurecida, abafada nas primeiras experiências socialistas do século XX. Isso pode ser claramente visto nas propagandas do socialismo da época, em que o trabalhador sempre era mostrado nos cartazes nos anos 1930 com as fábricas ao fundo, cheias de fumaça – e isso era valorizado como se fosse um progresso. A consciência do prejuízo ambiental que aquilo acarretava não foi desenvolvida pelo socialismo, entendendo o contexto histórico que elas enfrentaram, pois não podemos nos abstrair disso. Mas já temos condições no Brasil e no mundo para incorporar mais estruturalmente a agenda da preservação do meio ambiente a uma agenda do desenvolvimento nacional no mundo para o século XXI.
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Rita Polli é jornalista e assessora de imprensa da bancada federal do PCdoB.
EDIÇÃO 83, FEV/MAR, 2006, PÁGINAS 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13