O processo de constituição do Brasil e da sociedade brasileira caracteriza-se por um conjunto de aspectos singulares em que se inscreve, com destaque, a mestiçagem, ou seja, a intensa mistura de genes, valores e signos, de múltiplas procedências.

O impacto da mestiçagem brasileira foi amplificado, ao longo de nossa história, por um modo peculiar de absorver influências e transformá-las em algo próprio, muitas vezes novo, ou com forte tempero local – modo este que ganhou o nome de antropofagia cultural.

A mestiçagem e a antropofagia cultural, alimentadas por constantes fluxos migratórios de pessoas e de idéias, produziram aqui uma cultura potente e plural, com um grau de diversidade e renovação comparável ao de alguns poucos países do planeta.

No vasto universo da cultura brasileira pulsa uma produção que nasce da criatividade do povo brasileiro, se multiplica em sua miscigenação genética e cultural, se aprofunda em sua sensibilidade e se potencializa em sua disposição para superar as adversidades.

Esta cultura diversa ocupa um papel central na vida social do país e constitui, ao lado de nossa biodiversidade, o grande patrimônio brasileiro, a nossa principal riqueza, uma extensa semiodiversidade que tem inestimável valor econômico e social. inovação tornam-se os ativos fundamentais de um país, e de qualquer organização ou comunidade, a vitalidade e a diversidade cultural surgem como fatores decisivos de desenvolvimento.

Neste contexto, as expressões culturais do povo brasileiro afirmam-se como diferenciais competitivos e vetores potencialmente estratégicos no enfrentamento de dois desafios históricos: o desenvolvimento pleno do país e sua inserção soberana na globalização.

A cultura impacta positivamente o crescimento econômico, atuando sobre a geração de renda e emprego, assim como na inclusão social e no bem-estar da sociedade. É ao mesmo tempo um impulsionador e um qualificador do processo de desenvolvimento.

A economia da cultura movimenta diretamente cerca de 7% do PIB anual do planeta. É o setor que mais cresce, mais emprega, mais exporta e melhor paga atualmente. No Brasil, a cultura responde por 5% dos empregos formais e 5% do PIB (Ipea/Mercosul Cultural).

Os dados existentes mostram que a cultura brasileira é extremamente relevante em nossa vida social e contribui decisivamente para o desenvolvimento do país, em termos sociais e econômicos. Mostram, ainda, que o potencial ainda não-realizado é imenso.

Mas, se é verdade que a cultura brasileira tem esta importância, este papel estratégico, este potencial, também é verdade que pouco disso tem a ver com a atuação do poder público, em suas três esferas. Para o Estado, a cultura ainda não é uma prioridade.

Como fazer, então, com que as políticas públicas de cultura ganhem a consistência e a abrangência necessárias? Como fazer com que o poder público tenha, na cultura, uma atuação à altura da qualidade e da diversidade das expressões culturais do país? Como ampliar o grau de acesso da população brasileira à produção e à fruição de bens e serviços culturais? Como criar um ambiente favorável à realização e à maximização do potencial – de geração de renda, emprego, inclusão social e qualidade de vida – da cultura?

Essas perguntas não serão respondidas sem que a questão da cultura entre na agenda da sociedade brasileira, da mídia e do poder público do País, com o destaque devido, para que este não seja um tema e uma bandeira somente de artistas, produtores e gestores, e para que as discussões não se limitem às linguagens artísticas ou se fragmentem entre as incontáveis demandas deste ou daquele segmento cultural.

Um bom caminho já se apresenta para que o debate em torno da cultura seja de todos os brasileiros: a elaboração do Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual e peso de lei, que consagre a conexão entre cultura e desenvolvimento, cultura e inclusão social, cultura e cidadania e cultura e identidade, e que articule e amplifique a atuação do poder público na cultura.

Sonho antigo, o Plano começou a se tornar realidade em agosto de 2005, quando o Congresso Nacional promulgou a Emenda nº 48, que altera o artigo 215 da Constituição e estabelece sua criação. O novo texto do artigo tem imensa importância para a população brasileira: significa que os direitos culturais foram ampliados pela Carta Magna, passando a ter o mesmo valor e a mesma importância dos direitos sociais e econômicos, e criam as condições para que a cultura passe a ser tratada como questão de Estado, e não apenas de governo. Também reforça a idéia de que a cultura deve ser um direito de todos, já que um de seus objetivos fundamentais é a efetiva democratização do acesso aos bens culturais.

Foi, aliás, com o foco neste aspecto inclusivo da cultura que, ao apresentar o projeto de Emenda, o deputado Gilmar Machado usou o seguinte argumento: “A aprovação do PNC reafirma o fato de a cultura representar uma política estratégica para a emancipação da sociedade brasileira – política ditada por uma visão cultural inclusiva e participativa, de forma a promover uma época de desenvolvimento cultural com realização mais satisfatória das aspirações sociais de um país tão diverso e culturalmente amadurecido”.

O parlamentar tem razão em conferir tal magnitude ao Plano: ele não só deverá realizar um diagnóstico da cultura brasileira em suas múltiplas dimensões e estabelecer os princípios, as diretrizes, os papéis institucionais, os recursos necessários, os programas e as metas que devem pautar a atuação do poder público no setor nos próximos anos, mas, sobretudo, permitirá ao País estabelecer políticas públicas de cultura que, de um lado, melhorem as condições de acesso e de produção dos bens culturais e, de outro, contribuam com a redução das desigualdades existentes em nosso território e com o desenvolvimento econômico e a inclusão social.

Consciente da necessidade de uma grande mobilização para se construir o documento a ser examinado pelo Congresso Nacional, o Ministério da Cultura (MinC) assumiu o compromisso público de coordenar o processo participativo de sua elaboração, estabelecendo de modo pactuado a metodologia e o cronograma, assim como a redação final.

Pretende envolver, num processo o mais amplo, atraente e democrático possível, um grande número de pessoas e de instituições, incluindo os cidadãos interessados no tema, os artistas, os produtores e gestores culturais, os intelectuais, as universidades, as associações e entidades representativas, as ONGs culturais e as três esferas do poder público.

Esta parceria, na verdade, já começou: os estados, municípios e as Comissões de Educação e de Cultura da Câmara e do Senado Federal, juntamente com o MinC, se organizaram para realizar a Conferência Nacional de Cultura, que já produziu subsídios para a elaboração das diretrizes do PNC. Eles serão ponto de partida importante que, somado a outros debates e subsídios, irá compor os textos-base a serem disponibilizados, juntamente com o cronograma, a metodologia e a arquitetura do PNC, para consulta pública e deliberação.

Espera-se que até o final de 2006 o documento já possa ser entregue ao Legislativo. Como esse é um ano eleitoral, não seria de se espantar – ao contrário, seria até desejável – que o Plano e as propostas para a cultura constassem das plataformas e dos debates eleitorais, mormente as campanhas dos postulantes ao cargo de Presidente da República.

Por outro lado, é preciso construir, em meio às inevitáveis disputas, o diálogo, de forma a diminuir os campos de tensão entre segmentos e agentes, pois a criação do novo instrumento legal deve ser um processo de mobilização e de reflexão capaz de produzir não só o mais abrangente debate sobre a cultura já realizado no país, mas um plano de vôo escrito a milhares de mãos, capaz de dotar o Brasil de um sistema cultural que articule e potencialize sua incalculável diversidade, eixo irrecusável de um projeto nacional de desenvolvimento.
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Sérgio Sá Leitão é jornalista e Secretário de Políticas Culturais do Ministério da Cultura e Elder Vieira é escritor e Coordenador-Executivo do Plano Nacional de Cultura na Secretaria de Políticas Culturais do Ministério da Cultura.

EDIÇÃO 83, FEV/MAR, 2006, PÁGINAS 73, 74, 75