A intensa modernização da agricultura brasileira – ocorrida na esteira do processo substitutivo de importações – promoveu, com o aporte estatal: a centralização de diferentes capitais; a conquista de novas terras antes não ocupadas; a desagregação da produção de autoconsumo, estruturada à base e em torno da pequena produção mercantil de bens agrícolas; a criação do semiproletário agrícola; a expansão do mercado interno; a liberação da mão-de-obra para o segmento urbano-industrial; a ampliação da produção de alimentos (pondo fim às crises de abastecimento até a década de 1970); o aumento da participação brasileira no mercado mundial de alimentos (soja, suco de laranja, frutas, açúcar, carnes, entre outros); e o direcionamento do Estado, sob o regime militar, para a pesquisa agropecuária (Embrapa, Epagri etc).

Todo esse processo, como resultado do pacto de poder estabelecido em 1930, foi altamente progressista à medida que transformou o latifúndio semifeudal em latifúndio capitalista, comerciantes em agroindustriais e boa parte da pequena produção de subsistência numa produção especializada com alta produtividade e integrada aos mercados.

Aqui entendemos a produção agrícola juntamente com a indústria de insumos, equipamentos e a agroindústria, pois a agricultura em si não tem mais nenhum sentido prático.
Somando o papel desse setor ao abastecimento do mercado interno, à geração de divisas com exportações e ao acúmulo de técnicas produzidas pelas empresas nacionais de pesquisa a grande produção agrícola – incluindo a normalmente chamada agricultura familiar, pois esta é mais um elo na divisão do trabalho agrícola – deve ocupar papel de destaque num projeto nacional de desenvolvimento. Ignorar isto é tão prejudicial ao desenvolvimento do Brasil quanto a defesa do latifúndio orquestrada cotidianamente pela UDR (União Democrática Ruralista).

Não é possível associar a grande produção agrícola ao latifúndio. Trata-se de um erro político fatal. Seria como confundir os interesses dos produtores que visam a lucrar com sua produção (como no setor industrial), com os interesses rentistas vinculados à especulação fundiária e à propriedade da terra como fonte de poder político. É preciso distinguir entre os setores progressistas da produção agrícola e os interesses do latifúndio.

A grande produção agrícola necessita do crescimento do mercado interno e da renda e perde com a política macroeconômica recessiva tanto quanto qualquer setor produtivo. A produção voltada primordialmente para o mercado interno não tem podido se expandir satisfatoriamente devido à estagnação do crescimento do consumo, com exceção dos produtos que passaram por mudança tecnológica, como o leite UHT. Por este motivo, primordialmente, os setores mais dinâmicos concentram-se na exportação e não porque queiram sabotar o mercado interno. A produção agrícola responde em primeiro lugar ao preço; em segundo, à demanda. O mercado externo vem oferecendo essas duas condições de maneira crescente, em especial a partir da desvalorização cambial em 1999 e com a retomada do crescimento da economia mundial a partir de 2002.

As pequenas propriedades estão vinculadas à grande produção da mesma maneira que as grandes propriedades. Prova irrefutável disto é que alguns dos setores agroindustriais mais dinâmicos – como aves, suínos, leite e fumo –, têm a produção agrícola basicamente nas pequenas propriedades, via sistemas de integração. O aumento de produtividade alcançado nas últimas décadas pelos avanços técnicos na mecânica e bioquímica propiciou aumentos de produção sem aumentos equivalentes de área cultivada e de incorporação de mão-de-obra. Isto levou, por um lado, à concentração em produções onde o diferencial é a escala de produção e a mecanização (por exemplo, grãos), mas, por outro, à integração crescente da média e pequena propriedade também nos cultivos de escala, mas primordialmente nos produtos em que o tamanho da propriedade não é o diferencial, como a avicultura, a pecuária leiteira, a horticultura entre outros. Logo, quando falamos em grande produção agrícola nos referimos ao conjunto das atividades agrícolas, industriais e de serviço que se ligam à produção agrícola. A abordagem que põe o tamanho da propriedade agrícola no centro da discussão é por demais limitada.

O setor agrícola como um todo, a que nos referimos, tem sido responsável mais recentemente pelos excelentes superávits da balança comercial brasileira, conforme tabela abaixo.

Na tabela 1 verificamos que tanto as exportações quanto o superávit comercial apresentam valores excepcionais. Entre 1989 e 2004, as exportações cresceram de US$ 13.921 bilhões para US$ 39.016, o que representou uma participação de 40% na pauta de exportações totais brasileira e 32,06% no saldo da Balança Comercial brasileira. Entre março de 2005 e fevereiro de 2006, as exportações brasileiras do agronegócio totalizaram US$ 44.055 bilhões. Isto significou um crescimento de 10,7% acima do valor exportado no período de março de 2004 a fevereiro de 2005, ou seja, US$ 39.801 bilhões. Dentre os setores que mais contribuíram para o incremento das exportações do agronegócio no período analisado destacam-se açúcar e álcool (42,2%); carnes (28,7%) e café (33,9%).

Além da existência das pressões que afetaram o seu dinamismo – por exemplo, as valorizações e desvalorizações cambiais, o protecionismo dos países desenvolvidos via barreiras tarifárias e não tarifárias, os subsídios europeus e americanos concedidos aos seus próprios produtores, os custos produtivos elevados, os problemas fitossanitários etc – chama a atenção a falsa dicotomia imposta pelos meios acadêmicos, jornalísticos e movimentos sociais, entre a defesa do agronegócio e a defesa da indústria. Essa polêmica surge em função de o governo brasileiro ter implantado uma política econômica que beneficia os setores ligados à exportação de bens agrícolas, visando a aliviar o serviço da dívida externa, os déficits internos e o de financiar as importações para controlar os preços internos.

Entretanto, a grande produção agrícola é, na atual conjuntura, a porta-bandeira do progresso, pois: abre novos mercados para os produtos brasileiros, abastece o mercado interno, alivia a ociosidade do Departamento I da economia, financia novas atividades, reduz a superprodução rural e urbana etc.

Desnacionalização da grande produção na década de 1990

Um dos aspectos centrais desta discussão refere-se ao controle patrimonial e à concentração do capital no agronegócio brasileiro. A crise econômica provocada pela política econômica do governo FHC levou à desnacionalização de parcela significativa da produção agrícola nacional e à centralização de significativas parcelas tanto da produção agrícola quanto de insumos nas mãos de poucos conglomerados internacionais.

Setores inteiros da produção de fertilizantes, defensivos agrícolas, sementes e industrialização de alimentos foram desnacionalizados, ampliando-se inclusive a importação de diversos destes elementos. Os grupos Bunge e Cargill, por exemplo, controlam a maior parte da exportação brasileira de soja, bem como a maior parte da produção de sementes e fertilizantes, detendo o controle acionário da ex-estatal Fósfertil, privatizada por Collor. Esta empresa dominava, juntamente com a Serrana – empresa brasileira vendida para a Bunge em 1996 –, 76% da capacidade de produção de fósforo (minério básico para a fabricação dos fertilizantes NPK). Hoje, apenas 13% do capital desta empresa pertencem à brasileira Fertibrás, e o restante à Bunge e Cargill. No período em questão, a Bunge adquiriu cinco empresas brasileiras de produção de fertilizantes (Serrana, IAP, Elekeiroz, Takenaka e Manah); a Cargill duas (Solorrico e Fertiza); e a holandesa Norski Hidro a Manah (1). Além do controle sobre a produção de fertilizantes, Cargill e Bunge são os dois maiores exportadores de soja do Brasil (o terceiro é o grupo norte-americano ADM).

O corte de recursos de pesquisa na Embrapa levou a que esta aceitasse contratos com estes grupos em troca do financiamento de pesquisas, ampliando sobremaneira a influência destes na agricultura nacional. Assim, a Monsanto detém algo em torno de 90% do mercado de sementes de soja no Brasil (18% próprios e 70% da parceria com a Embrapa).

O mesmo quadro de desnacionalização apresentou-se na indústria de alimentos, na agroindústria processadora e na produção de sementes. Torna-se claro que esta situação põe em risco a soberania nacional ao transpor parte significativa da produção e comercialização de alimentos a conglomerados internacionais que não podem ser completamente confiáveis, como o exemplo da quase falência recente da Parmalat. Esta deixou em sérias dificuldades milhares de produtores de leite e cooperativas agrícolas das regiões sul e sudeste, levando o BNDES a intervir para não ocorrer problemas de abastecimento para a população.

Há paralelos na história recente da utilização do alimento como arma, como no caso do golpe contra Salvador Allende. O estudo de Burbach e Flynn (1982) demonstra que os EUA eram grandes exportadores de alimentos ao Chile e que estes provocaram desabastecimento alimentar para desestabilizar e desacreditar o governo de Allende perante a população. Entre as empresas que participaram do boicote estava a Cargill.

O pacto pelo desenvolvimento e geração de renda

Na atual conjuntura faz-se necessário um novo pacto de poder em substituição à aliança entre o capital financeiro internacionalizado e o latifúndio decadente. Como aponta Ignácio Rangel (2005), este novo pacto de poder há de combinar os setores progressistas do capital industrial e da agricultura (da mesma classe nas condições atuais) com os trabalhadores e seus representantes, partidos desenvolvimentistas e movimentos sociais organizados interessados no desenvolvimento do país.

Essa aliança será capaz de reestruturar o serviço de intermediação financeira, “habilitando-o a suprir recursos para investimentos nos serviços de utilidade pública” (RANGEL, 2005: 125). Ainda segundo Rangel (2005: 125), “empreendida essa reforma de base; todos os setores da economia nacional entrarão em movimento, de tal maneira que aumentarão simultaneamente, o investimento e o consumo; elevar-se-á a demanda global, enquanto a moeda tenderá para a estabilização”. Portanto, essa aliança interessa ao agronegócio, ao capital industrial ocioso, à classe trabalhadora desempregada e empregada e aos próprios movimentos sociais, como o MST.

O mercado interno – entregue aos sabores do mercado desde os governos de Collor e de FHC – precisa ser retomado. E isto exige o reconhecimento da existência de um problema sério de renda e conseqüentemente de uma insuficiência crônica de demanda, como aponta Rangel. Estas são as principais causas das pressões inflacionárias e do fraco desenvolvimento dos setores produtivos voltados ao mercado interno, originando, conseqüentemente, os subinvestimentos em infra-estruturas que enfrentamos atualmente e aumento da dependência quanto ao capital externo.

*Carlos Espíndola é professor doutor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Geografia do Departamento de Geociências do CFH-UFSC e Marlon Medeiros é doutorando, mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP e professor do curso de Geografia da UNIOESTE (campus Francisco Beltrão).

Nota:
(1) Estes dados foram retirados do estudo de Benetti (2004), que contém informações detalhadas sobre centenas de processos de fusões e aquisições de empresas nacionais dos setores de alimentos e insumos agrícolas e sobre as conseqüências destes para a economia nacional.

Referências:
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EDIÇÃO 84, ABR/MAI, 2006, PÁGINAS 53, 54, 55, 56, 57