Determinações históricas e ideológicas de O Capital (Final)
As particularidades históricas que originaram a feitura de O Capital (1), como vimos no artigo anterior, inserem a grande obra de Karl Marx no marco teórico de uma excepcional exegese do capital, desde o redemoinho da I Revolução Industrial à constituição do capitalismo de forças produtivas típicas desse modo de produção, ou do advento da autodeterminação do capital industrial. Mas é fundamental insistir sempre no traço distintivo da teoria econômica de Marx: sua economia política responde aos processos da produção capitalista em sua forma social; não apenas seu lado técnico-material.
Por isso, em sua costumeira percuciência, o grande economista russo Isaac Rubin considerava que a economia política de O Capital não poderia ser compreendida se negligenciássemos o fato de Marx estar tratando de uma sociedade específica. Para Marx – acentua Rubin –, as categorias da sociedade burguesa moderna exprimem formas de ser, determinações de existência, da mesma maneira que em toda ciência histórica e social (Marx, apud Rubin, 1987:15-16).
Desse ponto de vista, qual seja de uma análise materialista e dialética, onde os fenômenos são rigorosamente imersos nas circunstâncias históricas, observe-se: num percurso de aproximadamente 200 anos, é forçoso notar que a passagem da manufatura à grande indústria representa uma radical transformação – altamente destacada (2) –, decisiva para a caracterização do novo regime, em trânsito e sobre a base do sistema de máquinas.
O referido Paul Mantoux, por exemplo, em seu clássico e pioneiro A revolução industrial no século XVIII – estudos sobre os primórdios da grande indústria na Inglaterra (1906), chama ainda a atenção para o significado daquela interpretação, pois – escreve ele –segundo Marx, foi no tempo do Renascimento e da descoberta do Novo Mundo, na expansão súbita do comércio, do aumento do numerário e da riqueza que adveio a forja da vida econômica dos povos ocidentais, o início da evolução do capitalismo moderno.
Esclarece igualmente Mantoux (1988: 12-13) que, para Marx, essas fases da economia mercantil-capitalista compreendiam dois períodos: a) até meados do século XVIII, ou época da vigência da manufatura; b) e por volta de 1760, quando começara a era da grande indústria.
Apreenda-se, por conseguinte, que a teoria econômica de Marx, inscrita destacadamente em O Capital, traduz também, pela primeira vez, uma visão de mundo onde o caráter científico da economia política reside no movimento materialista da história, cujo objeto consiste em modificações das relações de produção; estas por sua vez dependentes do desenvolvimento das forças produtivas. Noutras palavras, a teoria econômica de Marx analisa as relações de produção do capitalismo e seu processo de mudanças originário das modificações das próprias forças produtivas; simultaneamente suas contradições e suas crises. Portanto, Marx quer o captar e o desvelar da forma social dessas relações, adquirida no capitalismo, distinguindo-a da configuração e do processo técnico-material.
A demolição ideológica da economia “vulgar”
“Para determinar a mais-valia, Ricardo, como os fisiocratas, A. Smith etc, tem de definir, antes de tudo, o valor da força de trabalho ou, conforme diz em concordância como A. Smith e seus predecessores, o valor do trabalho” (Marx, 1983: 832) (3).
Essas passagens, contidas no Livro 4 de O Capital (as famosas “Teorias da mais-valia”, escritas em 1861-1863) (4) nocionam a “limpeza de Hércules” que Marx teve de fazer para a necessária crítica da economia política burguesa em suas diversas variantes. Como dissemos, na verdade Marx teve de dissecar toda a história do pensamento econômico existente até o momento de construções acumuladas de sua teoria econômica. E, note-se, além disso: anteriormente Marx tinha levado aproximadamente 15 anos para a conclusão dos Grundisse, referidos na primeira parte deste artigo.
De outra parte, conforme notou recentemente F. Teixeira (2004: 70-74), importa também compreender terem Smith e Ricardo conseguido desenhar uma “representação” da sociedade capitalista enquanto uma totalidade na medida em que descortinaram a regularidade regente das irregularidades do mercado: a lei do valor. Entretanto, tal visão de totalidade “é vazia, sem vida própria, pois não tem, em si mesma, a lei interna do seu movimento”. Dito de outra maneira, a economia política de Smith e Ricardo fraqueja na medida em que o trabalho valorizador de valor aparece como uma forma natural de produção social, não como uma forma histórica.
Mas qual a importância dessa referência à regularidade estrutural fundamental existente desde vigência de relações mercantis, ou à época das trocas comerciais? Ela reside concretamente no fato de sob o modo de produção capitalista pleno a regularidade estrutural se desenvolver amplamente e condicionar o duplo caráter do trabalho (valor de uso e de troca), bem como a lei do valor na sociedade burguesa: a mais-valia (cf. Afanásiev e Lantsov, 1986: 16-26).
Examinemos um pouco mais amiúde essas questões e as relacionemos com o pensamento do liberalismo econômico.
Sinteticamente, para os ícones da economia política clássica, o valor no capitalismo era representado (em Smith) por uma troca correspondente à quantidade de trabalho que uma mercadoria pode adquirir – numa troca entre capital e trabalho assalariado, seguindo-se o lucro e a renda fundiária (5). Em Ricardo, o valor da troca se efetivaria pela quantidade de trabalho contida em uma mercadoria. Ou seja, a crítica de Ricardo se concentrava no fato de o valor de Smith se confundir no efeito da troca: o valor resulta da produção, algo, portanto, anterior à troca, afirmava Ricardo (6).
O gênio de Marx parte nuclearmente da idéia crítica ao conceito de trabalho que sustenta a categoria clássica do valor de troca. E de maneira a afirmar que no duplo caráter do trabalho (70 dos produtores de mercadorias no capitalismo repousa a compreensão da economia política e todos os seus fatos: de um lado, é trabalho concreto ou como fonte de valor de uso da mercadoria; de outro, é trabalho abstrato ou fonte de valor da mesma.
Dessa forma (Rubin, 1987: 42):
O valor pressupõe o valor de uso e o processo de formação do valor pressupõe o processo de produzir valores de uso;
O trabalho abstrato pressupõe uma totalidade de diferentes tipos de trabalho concreto aplicados em diferentes ramos de produção;
O trabalho socialmente necessário pressupõe uma diferente produtividade do trabalho nas várias empresas do mesmo ramo e a mais-valia pressupõe um dado nível de desenvolvimento das forças produtivas;
O capital e o trabalho assalariado pressupõem uma forma social dos fatores técnicos de produção, materiais e pessoais.
De acordo com Marx, sociologicamente, todo esse processo implica considerar as categorias materiais da sociedade mercantil-capitalista como reflexos da relação entre pessoas (e suas classes) e de relações sociais entre coisas. Daí a “vulgaridade” da economia política burguesa: ao invés do exame dos nexos internos da natureza social de tais categorias, o estudo da aparência, o alheamento das relações econômicas.
Para uma nova epistemologia
Ora, exatamente esta questão – a crítica da economia política clássica – merece de Marx (na organização do volume feita por Engels das últimas páginas do Livro 3 de O Capital) uma formulação transcendente e que nos parece de grande alcance para a elaboração de uma nova epistemologia, dialética e materialista:
“Aliás, toda ciência seria supérflua se houvesse coincidência imediata entre a aparência [a expressão fenomênica] e a essência das coisas” (Marx, 1974: 939).
Assim, como sugeriu o filósofo José Barata-Moura (Marx e a cientificidade do saber, 1997) transparecem
Notas
(1) Sobre os dois planos para a edição de O Capital, trabalhados por Marx, bem como as razões (alegadas por Roman Rodolsky) da não inclusão da idéia inicial de um livro sobre o “trabalho assalariado” e outro sobre a “propriedade da terra”, assim como as modificações feitas entre 1857 e 1865-66, ver o Capítulo 2 de seu famoso estudo Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx (Contraponto, 2001, pp. 27-65). Acerca das datas das edições do célebre estudo de Marx, do boicote da imprensa européia, da recepção entre intelectuais e no movimento operário e de uma cronologia de suas edições na Rússia, Europa e América, ver a importante e detalhada pesquisa de Lincoln Secco, “Notas para a história editorial de O Capital”, in: Revista Novos Rumos, nº 37, 2002.
(2) Como afirma enfática (e criticamente) Paul Mantoux, uma palavra sintetizaria os complexos elementos que prenunciaram a I Revolução Industrial: “manufatura: Nós devemos a Karl Marx que, em algumas páginas de sua grande obra dogmática, procedeu como historiador” (Mantoux, 1988: 14). Claro, não há dogmatismo coisíssima nenhuma em O Capital; ao contrário: são conhecidas as observações sobre os supostos “excessos” de hegelianismo, portanto influências interpretativas das leis de movimento da dialética de Hegel, naquela obra.
(3) E mais adiante: “Segundo Ricardo, o capital só se distingue de ‘trabalho imediato’ como ‘trabalho acumulado’. E é algo meramente material, simples elemento do processo de trabalho; a partir daí jamais poderá desenvolver a relação entre trabalhador e capital, salário e lucro” (idem, 1983: 832-33). E noutra passagem, bastante representativa da crítica de Marx, nas Teorias (volume I): “A concepção fisiocrática vê no lucro (juro inclusive) mera renda a ser consumida pelo capitalista e dessa concepção deriva esta tese de A. Smith e seus discípulos: a acumulação do capital se deve à poupança, às privações pessoais, à abstinência do capitalista” (Marx, 1980: 37).
(4) As Teorias integram um imenso manuscrito e correspondem a cerca de 2.900 páginas atuais impressas. Juntamente com um fragmento sobre a introdução de máquinas e a oposição entre trabalho vivo e o trabalho objetivado (morto), de “A mais-valia relativa – acumulação”, esse conjunto de textos segue o estudo de 1959, “Para a crítica da economia política”. (Ver: Teorias da mais-valia. História crítica do pensamento econômico, V. I, Civilização Brasileira, 1983: 9-12; e Marx e a técnica. Um estudo sobre os manuscritos de 1861-63, de D. Romero, Expressão Popular, 2005).
(5) (…) “em suma, para a origem da mais-valia (…)”, diz Marx, nas Teorias. Noutro ângulo e como insiste S. Possas, além dos Fisiocratas, Smith e os autores da escola clássica de economia eram firmes defensores da bandeira do “livre comércio”: vivia-se a herança feudal com seus monopólios do comércio, um regime cercado de entraves à ampliação do mercado (Possas, 2002, 21-22). Chama ainda a atenção a influência de vozes progressistas sobre Adam Smith; ver o importante estudo de Hugo E. A. G. Cerqueira, “Adam Smith e seu contexto: o iluminismo escocês”, Texto para a discussão nº 263, CEDEPLAR/FACE/UFMG, 2005.
(6) David Ricardo avança visivelmente sobre Smith quando vincula o valor às condições de produção. No entanto, não consegue explicar e dar significância ao dito “valor do trabalho” e, assim, o lucro.
(7) Voltamos assim à epígrafe que abre a primeira parte deste artigo, para desvendá-la. nítidas as formulações revolucionárias de uma nova epistemologia que emerge de O Capital. Asseveramos como nova porque ela metodologicamente transpassa – não só “inverte” – a dialética hegeliana das formas de maneira a fecundar as conexões mais profundas do fenômeno.
Como enfatizou o próprio Marx, no Posfácio à 2ª edição inglesa de sua obra:
“É, sem dúvida, necessário distinguir o método de exposição formalmente, do método de pesquisa. A pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão íntima. Só depois de concluído esse trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real” (Marx, 1983: 20).
Estava lançada a sorte das velhas “assombrações”, miméticas do “mundo enfeitiçado” (Marx, 1974: 952-53) dos poderes do capital.
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A. Sérgio Barroso é mestrando em economia pela Unicamp e diretor do Instituto Maurício Grabois.
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