Neles, tem procurado enfatizar a necessidade de associações comunitárias como estratégia geral de resistência à standartização do mundo pela indústria cultural de consumo dos EUA, e de estímulo à diversidade cultural, em cuja florescência considera residir a possibilidade de um mundo geopoliticamente multipolar e socialmente mais justo

Qual sua avaliação de três anos de governo Lula nas áreas de Ciência e Tecnologia e de Educação Superior?
Benjamin – Os dois ministérios não puderam implementar novas políticas em razão das restrições orçamentárias. A situação do Ministério da Ciência e Tecnologia, em razão da boa administração do CNPq – não obstante essas limitações, a par da transparência na destinação de verbas para a pesquisa –, voltou-se também para o apoio às áreas de ciências humanas e sociais, o que foi um ganho. Já no Ministério da Educação, embora haja grande transparência em suas ações voltadas para o ensino superior, tem havido uma relativa paralisia. Há carências de toda ordem que se acumulam há mais de uma década, o que torna problemática qualquer solução em curto prazo. Releve-se nestes anos a gestão da Capes, que procura dinamizar o conjunto do sistema educacional brasileiro. Suas ações voltadas para a qualidade do ensino e da pesquisa universitárias são normativas, exteriores. Não há a contrapartida das universidades públicas, hoje em pleno processo de sucateamento.

O MEC exige uma porcentagem mínima de mestres e doutores no quadro docente de instituições de nível superior para que elas tenham seu funcionamento autorizado. No que tange às instituições privadas, como todos sabem, mal a equipe do MEC virou a esquina após sua visita de avaliação dos cursos, mestres e doutores são demitidos em massa. O senhor tem conhecimento de alguma iniciativa governamental para solucionar isso? Muitos doutores hoje omitem sua diplomação para garantir seus empregos: está valendo a pena investir na pós-graduação, particularmente no mestrado e no doutorado?
Benjamin – Esses fatos estão sendo investigados pelo MEC. Não adianta a Capes estabelecer critérios e estes não sejam obedecidos pelo conjunto do sistema educacional brasileiro. Pelo meu entendimento, é importante realizar uma auditoria nas universidades privadas para verificar o cumprimento das disposições oficiais. Ensino universitário sem pesquisa não tem razão de ser. Para o país é fundamental a busca do conhecimento novo, que não vem da mera reprodução do já conhecido, mas de uma práxis que imbrique docência e pesquisa. Como justificar então ensino superior com professores horistas, restringindo-se apenas ao papel de ministradores de aula, sem tempo para suas investigações científicas? São necessários novos hábitos, criativos e críticos, tanto em relação ao docente-pesquisador quanto aos alunos, igualmente aos pesquisadores – inclusive em termos da preparação de professores para o ensino fundamental e médio. O aluno de hoje não é o de ontem, solicitando novas práticas. Além disso, o ensino precisa ser criativo em todos os níveis, dando condições para o desenvolvimento de inclinações que o aluno deverá levar para todos os campos, da escola, em seus vários níveis, para a cidadania.

A expansão do ensino superior privado nos últimos anos virou a balança, ao menos numérica, em favor do ensino superior pago. Que impacto isso tem na escolarização do brasileiro e que repercussões tem para a pesquisa?
Benjamin – Há a necessidade de se fazer distinção entre as universidades privadas que são meras empresas de serviços e objetivam apenas à lucratividade de um empreendimento que tem apoio do Estado, e as universidades denominadas comunitárias, religiosas e laicas. Nestas últimas há uma preocupação, menor ou maior, com a capacitação docente e com a pesquisa, o que não ocorre com as primeiras. Acontece, infelizmente, que a maior parte do ensino superior se volta para a simples reprodução do conhecimento. Pior, limita-se a um rito de sala de aula, onde o professor faz de conta que ensina e o aluno tem a ilusão de que aprendeu. O título universitário, por extensão, é também um faz-de-conta. As implicações desse processo são nefastas. Em termos de pesquisa, esse profissional será um mero aplicador acrítico de técnicas que vêm de fora, contribuindo para o poder das grandes corporações que têm suas bases centrais nos Estados imperiais. Em termos de ensino, compare-se com os exemplos de alguns países do Oriente, mesmo numa perspectiva capitalista. Lá o ensino é visto como forma de capitalização nacional (o capital informacional) e procura-se fazer dessa capitalização uma espécie de reversão da assimetria dos fluxos da globalização neoliberal. É de se interrogar em que medida esse processo tem contribuído para a formação do cidadão, mas indiretamente, toda a comunidade e toda a sociedade se engajam nesse processo. Aqui, nem essa ênfase no capital tecnológico existe: não temos efetivamente programas de formação do professor e apoios comunitários, sociais e estatais, capazes de imprimir práticas semelhantes.

A universidade pública tem papel significativo do desenvolvimento tecnológico e este por sua vez tem repercussões na própria soberania nacional. Como fica essa questão diante da chamada globalização, que tende a “hamburguerizar” todo conhecimento?
Benjamin – Só é soberano quem desenvolver políticas onde a unidade seja construída em toda sua diversidade, uma diversidade que seja produtiva, capaz de se reciclar continuamente. Uma identidade com muitos caracteres, dinâmica, que estabeleçam fronteiras múltiplas, sem que o sujeito – em suas dimensões individual, social e nacional – se esqueça onde estão seus pés e por onde circula sua cabeça. A partir desse solo, torna-se importante estabelecermos fronteiras múltiplas de cooperação, para revertermos ou atenuarmos o que existe de avassalador no processo de americanização do mundo. Não é possível a limitação ao nacional, toda a estratégia política, seja em nível da economia ou da vida social e cultural, é preciso envolver estratégias supranacionais. E países como Brasil, África do Sul, Índia, China etc têm condições, melhor do que outros, de se contraporem ao novo império. Cada um deles já em si concentra enorme contingente populacional e econômico. Melhor ainda se estabelecerem blocos econômicos e culturais e concertarem estratégias comuns.

Suas pesquisas são marcadas pelo esforço de estabelecer elos entre os países de língua portuguesa e os de língua espanhola. Que vantagens e dificuldades há nesse comércio simbólico? Em que ele contribui na busca de uma geopolítica multipolar?
Benjamin – Pelo meu ponto de vista – que tenho defendido há mais de quinze anos –, na circulação das formas simbólicas, precisamos abrir espaço para mostrar nosso rosto diferenciado. Não o rosto folclórico que nos atribui a mídia, mas como nos imaginamos. Vem daí a importância dos laços de comunitarismo cultural que mantemos com outros povos, em especial com os países de língua portuguesa e espanhola. Num mundo onde o inglês se transforma no idioma da globalização, falemos também em português e espanhol – em termos lingüísticos, culturais e tecnológicos. Outras associações também são possíveis, no âmbito das nacionalidades, como a da União Latina (que fala francês) ou de comunidades, que acabam por estabelecer fios com a contestação da política globalizadora, em muitos países, inclusive com a periferia dos centrais. São os movimentos pacifistas, em defesa das crianças, de situações de gênero etc.

Como foi a experiência no Timo Leste em que esteve diretamente envolvido?
Benjamin – As ações da USP no Timor Leste mostram como as instituições educacionais brasileiras podem atuar em conjunto e em missões não apenas fora do país, mas também em nossas regiões periféricas. Um grupo de 18 alunos foi até esse país para sensibilizar alunos timorenses ao uso da língua portuguesa através da canção popular brasileira. Essa foi uma forma de ganhar essa juventude, mostrando-lhe as potencialidades culturais desse idioma. Como se sabe, o português é uma das línguas oficiais do Timor Leste e é vital para o projeto político de identidade nacional desse pequeno país, que conta com uma dezena de línguas e dialetos mauberes. Falar português nesse contexto transformou-se numa forma de se mostrar a identidade desse país predominantemente católico, em face do inglês australiano e do bahasa indonésio, imposto violentamente durante o domínio militar da Indonésia. Curiosamente, o português, pelas circunstâncias históricas, de língua colonial transformou-se em idioma de identificação nacional.

Seus últimos trabalhos alargam o leque de reflexões para o que talvez se possa chamar arco Ibero-afro-americano e para preocupações que extrapolam o campo literário, abrangendo amplos aspectos culturais. Isso é uma necessidade inerente às pesquisas que vem desenvolvendo ou atende também a um chamado de militância intelectual?
Benjamin – Conceitos e práticas críticas não são neutros. Há implicações políticas quando se constrói um determinado recorte do conhecimento. Inclusive nos conceitos que se articulam nas redes discursivas de um determinado campo de investigação científica. Damos relevo ao contexto ibero-afro-americano porque o consideramos politicamente relevante. É uma forma de nos olharmos no que temos em comum e também de diferente. A militância, considerada em termos gerais, está implícita nesse recorte científico, que implica o estabelecimento de grupos de intelectuais. A adesão empática ao objeto dessa ação compartilhada é fundamental, mas cabe à postura intelectual uma dimensão crítica capaz de dar voz à diferença. Uma tensão entre adesão e diferença é imprescindível às ações compartilhadas, politicamente organizadas.

Há atualmente espaço para a militância intelectual ao mesmo tempo científica e engajada numa perspectiva ideológica?
Benjamin – Talvez possamos sintetizar os muitos sentidos de ideologia a dois básicos, que se inter-relacionam: falsa consciência e idéias-ação. Um sentido justificativo, de quem olha para trás e se afina com o estereótipo, e o prospectivo, de quem se projeta para o futuro. O desafio de quem olha para frente é não tornar esse futuro um “depois”, mas procurar fazer com que ele se concretize no continuum do presente. A presentificação, sempre parcial e fragmentária, não deixará de alimentar o processo, sempre reciclável, é verdade. Por certo será sob o crivo da experiência que as formulações ideológicas poderão se despir de seus dogmas. Dogmas afins de posturas religiosas. Entendemos que a militância intelectual assim entendida implica a dialética entre a adesão solidária e distanciamento crítico. Constitui um gesto antifundamentalismos, seja religioso, seja de mercado. Como a ideologia dominante exacerba o individualismo, ou a essas condutas estereotipadas e acríticas de submissão do sujeito, posturas intelectuais voltadas contra a falsa-consciência tornam-se problemáticas. Sua inserção social precisa vencer fronteiras de resistência – tanto interiormente, quanto exteriormente –, ao campo intelectual.

O socialismo morreu mesmo? A utopia acabou e o que resta é o acúmulo monótono de episódios sem nexos?
Benjamin – Já decretaram inúmeras vezes o fim do socialismo e de seus principais monumentos críticos. Agora também o fim da história. Curiosamente, só defende o fim da história quem se considera no gozo de sua utopia, como ocorre com o capitalismo. Em sua perspectiva, estaríamos no melhor dos mundos – no paraíso do capital. Aos excluídos continua a fulgurar o processo que leva do reino da necessidade para o da liberdade. Consideremos a situação da intelectualidade. A dominância do capitalismo financeiro sobre outras modulações do capital e suas compulsões de mercado se exerce na busca da informação nova, tendo em vista transformá-la em novos produtos. A apropriação social do conhecimento sempre ocorreu, mas a diferença atual é que ele se situa como capital informacional, que se efetiva com uma intensidade nunca vista anteriormente. Essa circunstância torna as esferas intelectuais e tecnológicas politicamente importantes. Levemos em consideração, ademais, que os intelectuais que por aí se exercem enquanto práxis já não são como os de seus antecedentes da série histórica. Não se isolam e trabalham em projetos compartilhados, ensejando relações de solidariedade. E mais: a informação nova não vem do trabalho de especialistas, mas de um intercurso de muitos especialistas que são capazes de interferir nas áreas de outros. Há, pois, toda uma diversidade que se encontra num projeto. Projeto implica processo. Em termos sociais, processo político. Nesse sentido, para além da ideologia dominante, tornam-se socialmente necessários horizontes libertários, ter esperança de que as coisas possam ser diferentes e mais humanas do que são. Não uma esperança em abstrato, mas a esperança como princípio laico desvestida de suas implicações religiosas. Como fundamento, a experiência histórica e social consubstanciada em projetos. Só assim a sociedade se libertará da ideologia fundamentalista, com suas falsas esperanças, e do fundamentalismo de mercado e suas ilusões consumistas.

*Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP, docente do ensino superior e presidente do Centro Cineclubista de São Paulo.

EDIÇÃO 84, ABR/MAI, 2006, PÁGINAS 68, 69, 70, 71