Há atualmente um consenso – quase uma unanimidade – na comunidade de economistas em relação ao fato de a política fiscal no Brasil há alguns anos ter se caracterizado pelo sacrifício dos gastos em investimento por parte do governo, em particular dos investimentos em infra-estrutura, já que são a principal destinação do investimento público.

Este sacrifício de investimentos não é uma marca apenas do atual governo; ao contrário, tem sido praticado por vários governos. As conseqüências, naturalmente, não poderiam ter sido as mais graves para a possibilidade de o Brasil retomar, em algum momento, o fôlego de crescimento perdido há mais de 30 anos, quando nossa trajetória de crescimento foi interrompida e entramos, então, no ciclo infernal de stop and go, ou seja, de sucessão de fases de crescimento medíocre, por um curto período, seguido de uma desaceleração do crescimento. Raras vezes é dramática desaceleração, mas em compensação também raras vezes é eufórico o crescimento.

De fato, o stop and go tem dois lados: se não crescemos muito nos tempos melhores também não nos ocorrem catástrofes quando caímos. Enfim, é um resultado mais de mediocridade, de estagnação, do que propriamente de crise. Se compararmos nossa experiência com a da Argentina, veremos que o ciclo em nossos vizinhos é muito mais dramático. Lá, a euforia se segue ao desastre, e novamente a euforia etc. Em nosso caso, não nos machucamos demais, mas também nunca nos levantamos completamente e caímos antes que tenhamos aprendido a nos manter de pé.
Um dos elementos centrais desse ciclo medíocre em que nos debatemos – e isso também parece ser consensual – é o que acontece com o investimento público.

Muito antes do Plano Real, o Estado brasileiro já vinha num processo falimentar. Desde a aceleração inflacionária no final dos anos 1970 o Estado vem perdendo a capacidade de investimento, seja pela corrosão real de receitas característica da alta inflação, seja pela dificuldade, ou quase impossibilidade, de cálculo econômico naquelas condições.

No debate atual, contudo, o consenso de certa forma se encerra no diagnóstico que aponta no colapso do investimento público um dos limitantes mais importantes do crescimento econômico brasileiro. Na discussão de remédios, o consenso cede lugar a uma oposição bastante forte entre dois grupos que, às vezes, em sua manifestação pública, parecem ter perfis mais claramente definidos do que quando confrontados em detalhes. Há um grupo para o qual a principal razão para a queda do investimento público é o crescimento das despesas correntes. Aponta este grupo em particular para o crescimento das despesas com inativos – o crescimento dos gastos com o INSS – responsabilizando-o pela incapacidade do setor público em realizar investimentos. Em oposição a este, o outro grupo também atribui a redução de investimentos ao crescimento de outros gastos, mas substituindo o vilão da história, ou seja, propondo que o espaço do investimento estaria sendo tomado basicamente pelo pagamento de juros sobre a dívida pública, das despesas financeiras do Tesouro, a taxas mantidas extraordinária e desnecessariamente elevadas pelo Banco Central.

Por coincidência, no presente a equivalência dos dois argumentos é até numérica, porque a ordem de grandeza dos dois candidatos a vilão, despesas com previdência e transferências financeiras, é semelhante. No gasto público, o gasto com inativos está um pouco acima de 8% e as despesas financeiras também estão por volta de 8%. Apesar de ser basicamente uma coincidência, esta equivalência acaba servindo para ressaltar a oposição entre os dois argumentos.

De alguns anos para cá, em particular depois da crise cambial de janeiro de 1999 e do acordo do governo brasileiro com o Fundo Monetário Internacional, o problema se tornou, digamos, mais explícito, na medida em que foram colocadas demandas de ajuste fiscal, de redução de gastos do governo para que, então, fosse viabilizada a geração de superávits primários que pudessem, em tese, deter a expansão da dívida pública. Em tese, porque, na verdade, esses superávits primários têm sido, de qualquer forma, inferiores às despesas de juros, fazendo com que a dívida afinal continuasse crescendo.

Mas, enfim, passou-se a ter um foco para o debate: a geração do superávit primário como instrumento para dar sustentabilidade à dívida, tentando estabilizá-la num patamar suportável pela economia brasileira. E aí a questão se abriu, ou seja: se é preciso gerar um superávit nos gastos públicos, que cortes abrirão espaço a esse superávit? O que pode ser reduzido para que se possa, então, da receita normal do Estado, a receita de impostos, destinar esse excedente para o serviço e liquidação de dívidas e, portanto, para a sua estabilização?

Esta seria, independentemente de qualquer outra motivação, uma oportunidade excelente para se discutir estratégia, para se discutir o longo prazo, para se discutir prioridades, escolhas, uma vez que tais preocupações frequentemente são soterradas pelas demandas e tarefas de todos os dias.
A discussão das propostas de Orçamento dentro do próprio Congresso tende a ser fragmentada, compartimentalizada. Discute-se despesa por despesa, e em torno de cada um há vários interesses envolvidos e nem sempre se tem ou se mantém a visão do processo, do todo, a preocupação com o: “afinal de contas, para que isso tudo, aonde se quer chegar?”.

Infelizmente, essa discussão estratégica acabou suplantada por todo tipo de razão e esse processo de “ajuste fiscal” – por razões que talvez fiquem mais claras daqui a pouco, coloco a expressão entre aspas – acabou envolvendo algumas dificuldades reais, que reaparecem o tempo todo e prejudicam a definição de uma estratégia talvez mais racional de viabilização da retomada de investimentos públicos.

No meu entender, há três grandes problemas aqui gerados pelo modo como a questão tem sido tratada. O primeiro reside na própria dívida pública, que tem volume inadequado, é muito grande. Para países similares ao Brasil, ela tem perfil ainda muito inadequado sendo muito concentrada no curto prazo; mesmo alguns papéis de prazo mais longo envolvem indexadores que, para todos os efeitos, fazem com que essa dívida seja curta porque é como se ela fosse renegociada a cada mudança nesses indexadores.

Essa concentração, esse perfil inadequado que coloca um peso muito grande na dívida de curto prazo, dá ao Banco Central uma influência sobre esse processo, que ele não tem em outros lugares, nem mesmo nos Estados Unidos.

E aqui, em uma linha, apenas para deixar claro do que se trata: num país em condições normais – supondo que fosse os Estados Unidos apesar de todos os desequilíbrios que também exibem – existe uma divisão do trabalho no que se refere a títulos públicos.

O Tesouro americano, por exemplo, emite as chamadas Letras do Tesouro, títulos de curtíssimo prazo, que são usadas com reservas pelo sistema bancário. É isto que o Federal Reserve compra e vende para fazer a sua política monetária.

As variações da taxa de juros de curto prazo têm pouco impacto sobre as despesas do Tesouro. Os custos da dívida pública americana são muito pouco influenciados diretamente por esse elemento, o que dá grande liberdade para o Federal Reserve fazer sua política monetária sem se preocupar com seu impacto fiscal. Se o Fed precisar subir a taxa de juros – como tem feito nos últimos meses –, ele sobe; se julgar que deva descer, porque o desemprego está subindo etc, ele desce.

O impacto que isto tem sobre o financiamento da dívida pública americana é muito pequeno, porque a taxa de juros que controla incide sobre um estoque de papéis que está ali na pontinha do que se chama de curva de rendimentos (curva, por sua vez, que mostra a taxa de juros que é paga por cada maturidade de dívida, se ela é de seis meses, um ano, dois anos etc).

O grosso do financiamento do Tesouro americano se faz com papéis de cinco anos ou mais. O que o Tesouro americano emite – o Federal Reserve não emite títulos – de curtíssimo prazo, as chamadas letras, não serve para financiamento das atividades públicas, mas simplesmente para o Banco Central americano poder comprar e vender e, com isso, regular liquidez.

Há uma separação clara – que nós não temos – entre o que é política monetária e o que é política de administração da dívida pública, embora haja comunicação entre os dois segmentos do mercado, o de curto prazo e o de médio e longo prazo. Por quê? Porque a dívida pública é administrada pelo Tesouro, quando decide que maturidades são mais longas e quais notas e bônus do Tesouro serão colocados no mercado. E a política monetária é decidida pelo Federal Reserve, ao operar apenas no segmento das letras. O Fed faz sua política monetária, e o Tesouro sua política de administração da dívida pública.

No Brasil não temos essa curva de rendimentos. Aqui, o prazo mais longo em que o mercado consegue pensar é um ano. A partir daí, fica tudo nebuloso, não há, praticamente, grandes volumes de negócios, ou seja, realmente, não tem influência importante sobre a economia. A dívida pública, inclusive aquela que financia o Tesouro, na verdade, está, cerca de metade dela, indexada à Selic.

Então, quando o Banco Central faz sua política antiinflacionária, está fazendo também política de dívida pública. Muito provavelmente várias pessoas aqui viram, na semana passada, o Secretário do Tesouro, Joaquim Levy, com certa sutileza, vocalizar essa queixa, claramente, nos jornais, argumentando algo como: “O Banco Central opera numa lógica que não é a nossa. O Tesouro está tentando reduzir a dívida indexada à Selic e o Banco Central, pelos seus procedimentos, aumenta essa dívida através do que se chama de swap reverso”.

Há aqui um conflito, porque o Tesouro tem uma função e o Banco Central outra. Mas ambos convergem para a mesma coisa. Há um problema real aqui. Enfim, a política monetária enganchou-se em algo que não lhe cabe, tem uma conseqüência que não é, digamos, da sua estratégia e não cabe ao Banco Central pensar se o Tesouro está se financiando de forma adequada ou não. No entanto, é assim que o mercado brasileiro opera.

O efeito acaba sendo termos uma política fiscal dominada pela política monetária. Por quê? Porque toda vez que o Banco Central julgar necessário aumentar a taxa de juros, o agente econômico imediatamente impactado é o próprio governo. É o Tesouro Nacional que paga essa Selic em cerca de 50% de sua dívida. Então, a política monetária restritiva do Banco Central é fiscal-expansiva, da forma mais estranha possível, porque não é, obviamente, intenção do governo expandir seus gastos. É um subproduto quase inevitável pela forma em que o mercado de dívida pública acabou organizado no país.

Esse é um primeiro problema, extremamente difícil: como desvincular política monetária de administração de dívida pública. Ou melhor: como diferenciar a dívida pública brasileira em maturidades diferentes, de tal forma que o Banco Central lide com a sua parte? E, quando isso acontecer, ainda discutiremos taxas de juros? Continuaremos discutindo, não há a menor dúvida. Porém, esses impactos fiscais perversos de hoje em dia – existem há muitos anos – que atuam, na verdade, ao contrário das estratégias escolhidas pelo próprio governo, pelo menos desapareceriam e a política econômica poderia ser decidida de forma mais racional.

O segundo problema, naturalmente, é importante até pelo modo como essas decisões são tomadas. Existe a tendência de açodamento, especialmente quando isso é feito sob pressão, como foi o caso em 1999 quando estávamos numa crise cambial e o Fundo Monetário exigia uma série de condições para aprovar um financiamento. Então, não há, propriamente, um grande debate. Ocorre que é preciso assinar o que for possível, o mais rapidamente possível.

Os “ajustes” – por isso costumo colocar aqui entre aspas – acabam obedecendo muito mais ao que é
expediente do que ao que é necessário. Se se ajusta pelo mais fácil, o mais fácil de se ajustar é sempre o investimento.

Essa não é uma característica brasileira, mas genérica. Politicamente, investimentos públicos são órfãos. Por quê? Porque eles servem ao país como um todo e, na hora H da negociação, o país somos todos nós. Mas isso equivale a dizer que o país não é ninguém, em particular. Por isso mesmo, quando se aloca alguma coisa, é sempre muito mais fácil cortar o capital ainda não criado. Atitude, obviamente, sempre acompanhada do discurso de que “um dia o investimento cortado hoje será retomado, quem sabe?”. O investimento é sempre adiado, mas não propriamente cancelado, criando a ilusão de que a perda será revertida um dia. Mas acaba acontecendo que, simplesmente, o grupo – a população como um todo – favorecido ou desfavorecido por essas medidas – é muito difuso, sem expressão política.

Nos anos 1990, um dos grandes economistas americanos da segunda metade do século passado, o Prêmio Nobel James Tobin, criticando a política de redução de déficits dos Estados Unidos, apontava que o erro da política fiscal americana, nessa década, teria sido promover ajuste fiscal através de cortes de investimentos.

Para ele,
“Seria tolo e fútil reduzir déficits governamentais pelo corte de investimentos públicos. Investimentos, calçamentos e saneamentos não merecem menor prioridade do que a construção de motéis, cassinos e shoppings centers. Na verdade, a pesquisa econômica recente mostra que a negligência com o investimento público tem uma grande responsabilidade pela desaceleração no crescimento da produtividade neste País”.

O país a que ele se refere é os Estados Unidos. Obviamente, o estrangulamento do investimento público no Brasil tem responsabilidade semelhante. Basta vermos a situação, sempre citada, das estradas etc – o que aumenta em custo de transportes, em perdas e assim por diante –, para termos idéia do que isso significa em termos de produtividade.

As questões aqui, naturalmente, são duas, do ponto de vista da política fiscal. A primeira é a de saber até onde a existência de um déficit público que redunda, obviamente, num crescimento da dívida, é problema. A segunda, talvez até mais importante, é: se for um problema, o que se deve fazer para encará-lo?

Na literatura macroeconômica sobre desequilíbrios fiscais, a esta altura já muito extensa e conflitiva – nunca há unanimidade; existem correntes de pensamento – há, pelo menos, no meu entendimento, um razoável grau de consenso em torno de duas condições. Ou seja, déficit público é, certamente, um problema em duas circunstâncias.

Primeira: a economia estaria em pleno emprego ou operando na sua capacidade, ou para usar a expressão que, hoje em dia, cria tanta confusão, estaria no seu produto potencial. E aqui a razão é óbvia: déficit público aumenta a demanda. Se o produto social já é o máximo possível, então não há nada a ser feito. Ou melhor, o governo só pode aumentar sua demanda à custa de alguém. Para que o governo possa comprar, alguém tem de deixar de comprar. Pode ser um investidor privado, um consumidor. O fato é que o déficit público aqui não contribui para a expansão do produto se a economia não puder expandir seu produto. Isso é mais ou menos óbvio. Na prática, é muito menos óbvio do que parece, porque há uma imensa dificuldade em se descobrir qual é esse produto potencial.

Manifestarei, rapidamente, uma discordância tópica em relação ao que foi levantado na sessão anterior, no sentido de que as expansões de demandas nos últimos anos tenham dado origem a pressões inflacionárias e, por isso, o Banco Central teria aumentando a taxa de juros. A maior parte dos episódios aqui de pressão inflacionária dos últimos quatro ou cinco anos é pressão de custos: alta de
dólar que move contratos indexados, preços administrados e assim por diante.

Em 2004, há alguma dúvida sobre se aqueles 4,9% realmente colocaram ou não o Brasil na plena realização de capacidade. Há um debate se ali a pressão inflacionária se deveu a isto. Mas, nos outros casos, inclusive dos últimos anos, pelo meu entendimento, verificamos que, ao contrário, a excitação inflacionária veio pelo lado da oferta e não pelo lado da demanda. E, se esse é o caso, a política monetária, como forma de controle, não é eficaz. A política monetária reduz demanda. Se a demanda já não é o problema e se os preços sobem por elementos como cartelização ou choque de custos os preços continuarão subindo de qualquer forma, mesmo que a demanda se estrangule. E nós temos o pior dos mundos. Temos um mundo com inflação e desaceleração.

A grande questão é saber quando estaremos nesse ponto de pleno emprego e alcance dos limites efetivos ao crescimento – este é um ponto inevitavelmente cercado de incertezas. Apenas advirto contra algo que se tornou muito comum nos últimos anos: na academia – infelizmente, também em governos –: tenta-se resolver essas incertezas através de modelos econométricos.

Modelos são muito úteis para se estudar economia. Mas o grau de incerteza que cerca a construção de qualquer modelo é sempre muito grande. Em debates acadêmicos isso não é tão importante porque neles quer se conhecer tendências, sinais de variação etc. Sabe-se que grau de erro se espera etc. Governos devem ser muito mais pragmáticos do que isso. Citarei a frase lembrada pelo Joaquim Elói: “A prova do pudim é a colherada”. Talvez o que tornou Alan Greenspan um mito dos anos 1990 tenha sido exatamente – e é um grande risco o novo presidente Ben Bernanke não ser assim agora, porque pelo seu discurso ele parece mais academicista do que político; talvez aprenda com a prática – a sua proverbial recusa de operar por modelos. Os modelos usados dentro do próprio Federal Reserve apontavam para uma taxa de desemprego adequada aos Estados Unidos: a chamada, em economia, Taxa Natural de Desemprego, de 6,5%.

É famoso o procedimento de Greenspan, de pegar o telefone, conversar com empresários e concluir que 6,5% não eram bons, seria possível reduzir o desemprego além desse número. Continuou baixando a taxa de juros, e o desemprego americano chegou a 3,5% – um número absurdamente baixo. Mas só quando o desemprego já havia caído mais de 2% abaixo do limite instransponível a economia americana começou a dar sinais de que estava sendo pressionada demais.

É isso o que um policy maker competente faz. Um governo não calcula uma curva qualquer e diz: “Não, então vou mexer na taxa de juros, ou nisso, ou naquilo, porque pelo meu modelo 3,5% de crescimento é o limite”. O governo deve tentar ir além, com cautela, mas também com ousadia; se não der, volta atrás. Os governos devem fazer isso. Mas se julgarem que – por terem um modelo, operarem com um bom computador, dispondo de umas equações muito elegantes etc – é daí que se determina a política econômica, teremos uma distorção absurda, um teatro do absurdo como o que temos visto, em que o Banco Central se auto-congratula, como no último relatório sobre inflação. Como se reduzir o crescimento econômico de 2005 a 2,3% merecesse agradecimentos da sociedade.

De toda discussão precedente sobre o Federal Reserve, para mim, talvez a mais sugestiva seria aprendermos com Alan Greenspan. Talvez não seja o caso de imitar a instituição. Lembremo-nos de que a economia de verdade é muito mais complicada, não é aquilo que desenhamos em quadro negro. A lição é simples, contudo: o papel do governo é mesmo o de testar os limites e ter, obviamente, o bom senso de voltar atrás quando for o caso.

A segunda condição em que o déficit tem problema é naturalmente quando há dificuldade de financiamento, ou seja, quando há perspectiva de moratória, quando se acha que o governo está emitindo papéis, mas não tem intenção de honrar esses contratos. Isto é um problema que entra pela ciência política. Não darei mais palpites do que a minha condição de economista me permite, mas é certamente um problema sério.

Apenas acentuarei uma confusão freqüente, mas importante: confundir gasto público com déficit público. Isto é muito comum até na imprensa, onde são freqüentes comentários que apontam algo como “a política keynesiana de déficit público…”. Isto é completamente falso. Desde o próprio Keynes, o instrumento de política econômica é gasto público.

Ou seja, o gasto público é que pode ser um elemento dinâmico importante. Déficit público é um resultado adverso.

Keynes gostava de lembrar as limitações do que um ex-aluno meu e atualmente colega costuma chamar de “macroeconomia do lar”. Vemos isso muito quando as pessoas dizem: “O Governo é como uma família. O pai não pode gastar o que ele não ganha, se não alguém vai lá e toma a casa”. O governo não é como uma família. Na verdade, nada tem a ver uma coisa com a outra. Quando um governo gasta, primeiro ele está, automaticamente, impulsionando algumas fontes da sua própria renda. Quando eu gasto, do dinheiro que gastei nada volta para mim. No caso do governo, volta.

Primeiro, se a renda aumenta, em resultado dos gastos do governo, em função do chamado multiplicador, a renda aumenta; quando a renda aumenta, a receita de impostos aumenta; uma série de gastos, por exemplo, seguro desemprego etc, reduz-se. Assim, parte do gasto do governo, ao contrário do que acontece com o pai de família, volta ao próprio governo. E o resto? E o que não volta? O que não volta – a parte da renda da economia que cresceu – é demanda por ativos. Se a pessoa não quer gastar, como vai guardar aquele dinheiro? Um dos veículos é a própria dívida pública.

Na verdade, a macroeconomia do lar apela muito para as pessoas por esse lado intuitivo, mas freqüentemente o que é intuitivo é simplesmente tolice. O gasto público não é semelhante ao do pai de família, que pensa se os filhos querem mais mesada ou não. Além de infantilizante, essa metáfora é simplesmente um equívoco, leva a decisões tolas, com custos pesados para o país.

Isto significa então que o Estado pode gastar qualquer coisa? Não, é óbvio. Há o problema da demanda por esses títulos públicos, e pode ser que não haja demanda. Então o governo terá um problema financeiro nas mãos. E, ainda, se a economia estiver em sua plena capacidade ela não reagirá, a renda não crescerá, todo o esforço se esfumaçará em inflação e terá sido uma oportunidade perdida.

Devo acentuar que essa discussão vem de décadas e, provavelmente, vai prosseguir por outras tantas. Quero apenas chamar a atenção para a oportunidade deste debate, bastante importante, a fim de que se possa, por um lado, abordar o problema de forma racional; ou seja, superar essas imagens, os chamados sound bites, que soam interessantes quando emitidos, mas não significam nada. Substituir, portanto, esse tipo de análise superficial por um processo de reflexão efetiva sobre os impactos do gasto do governo, as condições em que ele possa e deva ser feito e assim por diante.

Por outro, também para discutir o papel do Orçamento. Aqui, estamos muito atrás. O grau de reflexão, tanto acadêmico quanto político – político no sentido amplo, não apenas no Congresso, mas na própria sociedade brasileira –, sobre o papel do Orçamento, sua natureza etc é muito fragmentado, reduzido a quem serve gastos específicos, ou seja, está limitado ao “levo isso, levo aquilo”.

Há necessidade de uma discussão estratégica, até para poder encarar questões, por exemplo, apresentadas no debate já mencionado: a importância da priorização de objetivos; a importância do acompanhamento e da avaliação dos gastos públicos. Não se trata apenas de quantidade, mas de saber se o que estamos gastando está resultando em bens públicos como deveria. Basta andar pela rua e ver: os hospitais não são bons, as escolas também não. Venho do Rio de Janeiro, nem preciso falar de segurança pública. É bom para a saúde, porque corremos muito mais, e com isso fazemos exercícios, mas, obviamente, não é seguro. Os serviços públicos em geral, independentemente de o gasto ter sido alto ou baixo, não são adequados. Por quê? Não se trata apenas de valor, mas de avaliação, de suprir os serviços necessários de forma mais racional.

O importante é realmente ter uma visão macroeconômica do Orçamento. Não acompanho de perto, mas apenas pela imprensa, os debates que ocorrem tanto no Poder Executivo quanto no Legislativo sobre o Orçamento. E tenho a impressão de serem muito tópicos: emenda isso, corta aquilo, porque tem a Lei Kandir, tem de devolver aquilo ali se não ninguém assina nada etc. Mas há poucos debates sobre a economia.

Qual o papel, inclusive macroeconômico, dessa peça de legislação? Já que estamos no Congresso Nacional, deixo uma sugestão – talvez possamos explorá-la um pouco mais. Há algumas economias em que esse debate foi instrumentalizado legalmente. Citarei dois exemplos: Estados Unidos e Inglaterra, por intermédio da chamada, em ambos os países, Lei do Emprego. Nos Estados Unidos, ela passou em 1946; na Inglaterra, mais ou menos no mesmo período.

A Lei do Emprego aqui simplesmente reconheceria a responsabilidade do governo pela estabilidade macroeconômica – e quero acentuar: estabilidade macroeconômica diz respeito a preços estáveis, mas também a emprego estável; dois objetivos que nem sempre se conciliam com facilidade. O governo tem responsabilidade pela estabilidade do emprego e do nível de atividades. Por isso a lei recebeu o nome de Lei do Emprego, não de Lei da Estabilidade – para acentuar essa responsabilidade. Nesse projeto de lei, então, definiu-se a responsabilidade do governo, criou-se o Conselho de Assessores Econômicos, cuja função executiva é nenhuma, exceto mostrar ao presidente quando a lei está sendo violada e aconselhar sobre o que ele deveria fazer a respeito.

Concordo que não devemos ficar aqui idealizando muito sobre o que se faz em outros países – como se acima do Equador tudo fosse perfeito –, mas esse elemento contribuiu bastante para que na discussão de problemas, como, por exemplo, política fiscal, se pudesse dar papel explícito à preocupação macroeconômica.

Ao lado de uma Lei de Responsabilidade Fiscal, que é um progresso – ela poderia ser muito melhor, mas de qualquer forma é melhor do que nada –, talvez uma Lei do Emprego pudesse ser uma iniciativa que nos impedisse de deixar as coisas deteriorarem.

*Fernando Cardim é professor de economia da UFRJ. Adaptação de apresentação feita no Seminário “Caminhos do Desenvolvimento”, promovido pela Câmara dos Deputados em Brasília no dia 15 de março de 2006.

EDIÇÃO 84, ABR/MAI, 2006, PÁGINAS 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29