A árdua recuperação argentina e sua nova política econômica; a política econômica semi-ortodoxa no Brasil; a sensação de desequilíbrio de benefícios de que se ressentem Uruguai e Paraguai; e, finalmente, os esforços americanos de negociação da Alca e, mais recentemente, de acordos bilaterais de livre comércio fizeram reacender o debate sobre os méritos e desvantagens da integração regional no nível do Mercosul e no nível da América do Sul.

Um primeiro argumento desse debate afirma que a economia argentina e a brasileira não estariam ainda integradas e que a integração regional agravaria a desintegração interna e as disparidades entre as regiões de cada país. A tarefa prioritária seria integrar os sistemas econômicos nacionais antes de tentar integrá-los aos de seus vizinhos e antes, com maior razão, de tentar uma inserção radical na economia mundial.

Os economistas multilateralistas liberais argúem que a abertura para bens e capitais estrangeiros seria indispensável para relançar o desenvolvimento. Consideram que uma política de integração regional seria menos eficiente que uma política de integração em nível mundial, pois o mercado mundial seria muito mais amplo, dinâmico e vantajoso do que o regional. Uma variante desse argumento é que a integração com os Estados Unidos por meio de acordos bilaterais de livre comércio ou de uma eventual Alca seria mais vantajosa do que a participação no Mercosul.

O argumento do multilateralismo é reforçado pelo conceito de global trader. Argentina e Brasil, pela diversificação geográfica de seu comércio, não deveriam integrar suas economias, pois isto levaria a um desvio de comércio em favor de produtores ineficientes em termos mundiais, aumentando os custos de importação e de produção.

Adicionalmente, se argúi no Brasil que a integração regional favorece mais os produtores argentinos que os brasileiros, já que aqueles teriam acesso preferencial ao mercado brasileiro, várias vezes maior que o argentino.

Um último argumento econômico do lado argentino é que a maior eficiência industrial brasileira e a maior eficiência agropecuária argentina podem levar a uma especialização agrícola por parte da Argentina, frustrando seu desenvolvimento industrial e sendo prejudicial a longo prazo, pelas características dos mercados agrícolas. Do lado brasileiro, o argumento diz que a maior eficiência agropecuária argentina teria um impacto destruidor sobre a agricultura brasileira, em especial no Sul do país, prejuízo que não seria compensado pelas vantagens obtidas com as maiores exportações de manufaturados brasileiros.

Do ângulo político, no Brasil se argúi com a mercurialidade da política exterior argentina, lembram-se incidentes comerciais, em especial no comércio do trigo, e a sobrevivência de rivalidades políticas históricas e recentes. Do lado argentino, se argúi com a verdadeira identidade européia do país, seu relativo maior avanço cultural e a hegemonia que tende a ocorrer em favor do Brasil, graças a assimetrias de toda ordem.

A argumentação favorável à integração econômica e à cooperação política entre a Argentina e o Brasil parte de uma visão realista da dinâmica política e econômica mundial e traz implícita a idéia de que a integração regional não pode ser exclusivamente comercial e passiva, mas deve ser parte de uma vigorosa estratégia comum de desenvolvimento, em especial na área industrial e de serviços.

A eficiência econômica e a tecnologia moderna exigem, em muitas linhas de produção industrial, escalas mínimas para as quais tanto o mercado brasileiro quanto o argentino, isolados, são insuficientes e, portanto, levam ao superdimensionamento de unidades, com a conseqüente ineficiência, ou à simples inexistência de produção local daqueles bens.

O mercado mundial é maior do que qualquer mercado nacional ou regional; todavia, o mercado mundial é sempre mais instável, pois suas várias partes (os Estados nacionais) estão sujeitas a soberanias distintas e a mudanças súbitas de política que afetam as exportações, o que torna mais arriscados investimentos de grande porte que sejam destinados à exportação para o mercado mundial.

Um mercado regional, por sua vez, onde vigem as mesmas normas permite às empresas uma base de operação doméstica mais ampla e, assim, a instalação de unidades com escala de produção mais elevada, para operar em condições permanentes e estáveis. É necessário, todavia, que não haja entre as empresas participantes desse mercado uma assimetria excessiva, em termos de capacidade financeira, gerencial e tecnológica.

Os mercados em expansão sustentada a longo prazo não são os mercados agrícolas (apesar da expansão da demanda chinesa), mas sim os mercados de bens industriais e de serviços conexos. A participação eficaz nesses mercados mundiais é função da dimensão das empresas, a qual depende, por sua vez, da escala do seu mercado original, o que torna vantajosa a integração regional de mercados e a constituição de empresas com capitais dos países que participam da zona de integração.

Os mercados mais lucrativos são aqueles criados pelas inovações tecnológicas que geram novos produtos e que são monopolizados, ainda que temporariamente, pelas empresas detentoras das patentes a que correspondem tais produtos. A geração de novos bens depende de investimentos em ciência e tecnologia, desde a formação de pessoal até o desenvolvimento industrial e gerencial da inovação. As atividades de pesquisa são caracterizadas por custos, economias de escala e riscos elevados e retorno demorado. Assim, a integração regional pode permitir a coordenação de esforços na área científica e tecnológica em países com escassez de recursos públicos e inapetência relativa das empresas nacionais para o investimento em pesquisa, o qual é essencial para o desenvolvimento futuro dessas empresas e das economias nacional e regional.

As vantagens da integração para as economias brasileira e argentina decorrem não somente da possibilidade de alcançar maior eficiência, e assim aumentar sua capacidade de competir no mercado mundial a partir de uma base regional maior, como de questões específicas que se referem à agricultura, aos níveis de nutrição, ao aprendizado industrial – e, conseqüentemente, ao aumento de produtividade, ao desenvolvimento e à proteção adequada dos serviços – e, finalmente, à possibilidade de reduzir disparidades regionais.

As características de solo, clima, demografia e nível de nutrição fazem com que a economia brasileira tenda a ser – ainda que não o seja nas condições atuais em virtude dos níveis extremos de pobreza e desnutrição – uma importadora líquida de alimentos, enquanto que as características do mercado internacional de alimentos, em especial não processados, em termos de crescimento de demanda, substituição, novos concorrentes, instabilidade de preços, fazem com que o Brasil possa representar, para a agricultura argentina, um mercado amplo, crescente, seguro e preferencial.

De outro lado, os mercados reais, específicos, de bens e serviços têm tal natureza que tanto a Argentina como o Brasil correm muito menor risco de desindustrialização pela abertura intraregional – inclusive pela menor diferença de eficiência entre seus respectivos setores – do que em decorrência da abertura em relação aos países altamente desenvolvidos. Portanto, o risco de especialização desfavorável para a Argentina, se existe, decorreria de abertura excessiva para países desenvolvidos e não da integração regional. Tanto para o Brasil como para a Argentina, o principal, mais favorável e promissor destino para suas exportações de manufaturas têm sido seus mercados recíprocos e os demais mercados do Mercosul e da América do Sul, onde gozam de preferências e, portanto, podem melhor competir com importações procedentes de outras regiões. Assim, a integração comercial regional, desde que acompanhada de política industrial regional, contribui para o alcance de níveis superiores e mais amplos de industrialização, o que permite a sociedades populosas como Brasil e Argentina aumentar a produtividade social agregando maior valor à produção, ampliar o emprego, aumentar a coesão social e atingir níveis mais elevados de cidadania e de desenvolvimento cultural.

O processo de integração econômica afeta de forma diferenciada o capital, o trabalho e as regiões dos países que dele participam. Esse processo somente pode sobreviver se dispuser de mecanismos compensatórios para reduzir os desequilíbrios e as tensões que gera em distintos setores da economia e para promover o desenvolvimento mais acelerado das regiões afetadas de forma desfavorável, de modo a reduzir os desníveis regionais e suas repercussões na esfera política.

Há duas questões na esfera da organização da economia mundial que fazem com que a integração econômica e a cooperação política venham a ser estrategicamente decisivas para o futuro da economia e da sociedade dos dois países, desde que o limitado esquema atual de integração venha a se tornar parte de um projeto conjunto de desenvolvimento econômico, político e social.

A negociação de normas internacionais para disciplinar os mercados de bens, de serviços e de capitais pode resultar em quadros jurídicos mais ou – o que é mais provável – menos favoráveis para os países subdesenvolvidos, inclusive para o Brasil e para a Argentina. Assim, a atuação coordenada dos dois países em foros de negociação dessas normas, tais como a Organização Mundial do Comércio (OMC), onde têm de enfrentar a influência e o poder de compelir das grandes potências econômicas, tem sido e será sempre altamente proveitosa. Por outro lado, Argentina e Brasil, países importadores de capital e com dívidas externas importantes (estoques e fluxos), podem sofrer dificuldades relativas aos fluxos negativos de certos itens do balanço de transações correntes e têm interesse na negociação de novas regras para o sistema financeiro internacional mais favoráveis aos países devedores. Nessas circunstâncias, a atuação coordenada de Argentina e Brasil como devedores diante de credores, que sempre negociam de forma conjunta e articulada, e em organismos financeiros pode contribuir para que os dois países possam obter melhores normas e mais realistas condições de financiamento externo.

A integração econômica entre Brasil e Argentina no âmbito do Mercosul pode ser o caminho preparatório de cooperação política mais ampla e duradoura, mas esta também pode contribuir decisivamente para o sucesso ou insucesso da integração econômica.

O sistema político e econômico internacional vem se caracterizando por processos de rápida e acentuada concentração de poder político, econômico e militar nos países desenvolvidos, que se articulam em estruturas hegemônicas de poder, e de uso da força por esses países, com ou sem a autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas, em flagrante violação do Direito Internacional, cada vez mais aceita e justificada pela mídia e pela opinião pública.

Nesse sistema, onde surge, de um lado, um grande novo Estado que é a União Européia e, de outro, ocorre a reemergência do Japão e a rápida expansão chinesa (e a perspectiva, ainda que distante, de eventual cooperação sino-japonesa), Brasil e Argentina podem multiplicar o seu poder de influir caso atuem de forma conjunta no processo internacional, quer no que diz respeito a seus momentos pacíficos – de negociação e elaboração de normas – quer em situações em que ocorre o uso ou abuso de poder. Essa possibilidade de cooperação duradoura e ativa alteraria de forma significativa a correlação internacional e regional de forças e, por essa razão, outras potências tendem a desestimular e a dificultar sua concretização na prática apesar de elogios retóricos.

A atuação conjunta na esfera política e na esfera militar requer um esforço prévio prolongado de coordenação e compreensão para muito além da atividade diplomática rotineira. A coordenação política segue a integração econômica, mas, quanto mais cedo a primeira começar, melhor, para que se possam evitar os casos de iniciativas isoladas nas esferas política e militar, que criam apreensões e ressentimentos capazes de afetar o processo de aproximação entre os dois países, inclusive na área econômica e, portanto, no Mercosul

As assimetrias entre o centro e a periferia do sistema internacional tendem a se agravar, assim como os esforços dos países do centro no sentido de articular e consolidar mecanismos de controle das reivindicações periféricas e dos distúrbios que tendem a ocorrer nessa área. No centro desses esforços estão a legitimação do uso da força por organizações como a Otan e a ampliação da competência e da composição do Conselho de Segurança da ONU, assim como a ampliação do G-8, com a inclusão da China. O condomínio político do Conselho de Segurança, o condomínio nuclear do TNP e o condomínio econômico e cada vez mais político do G-8 passariam a ter quase que a mesma composição. A reforma do Conselho de Segurança da ONU e as próprias regras para emendar a Carta da ONU criam, todavia, uma oportunidade única de incluir a América Latina no Conselho e permitir à região influir sobre o sistema internacional e assim defender seus interesses em uma era futura que se prenuncia de grande turbulência e abuso de poder.

A questão militar é de suma importância para o processo de integração Brasil-Argentina e para o Mercosul, considerando o passado e os justos ressentimentos quanto ao autoritarismo militar (isto é, de ditaduras civis/militares, ainda que lideradas por esses últimos) e a possibilidade de competição e tensão regionais que decorreriam de hipotéticas corridas armamentistas no Cone Sul e da constante pressão externa de grandes potências pelo desarmamento unilateral da região.

A extensão do território da Argentina e do Brasil, a necessidade de defesa de suas longas fronteiras terrestres e marítimas, o futuro de turbulência e a necessidade de projeção de poder que decorreria do próprio êxito da integração econômica e da cooperação política tornam indispensável manter Forças Armadas adestradas, equipadas, com capacidade tecnológica, democráticas e estreitamente coordenadas, e um nível de despesas com defesa semelhante ao de países desenvolvidos que têm dimensões territoriais e demográficas e potencial inferiores aos do Brasil e da Argentina.

Soberania e integração

Processos de integração econômica como o Mercosul se encontram estreitamente vinculados às questões da soberania e do território e, portanto, têm aspectos políticos, sociais e culturais muito mais importantes do que aparentam. Os defensores desses processos procuram apresentá-los como fenômenos puramente econômicos e técnicos e, portanto, isentos de raízes e conseqüências políticas. Todavia, os processos de integração têm implicações políticas e a não-atenção a elas pode vir a resultar em dificuldades na execução desses projetos, dificuldades essas que aparecem como inesperadas, surpreendentes e irracionais aos olhos daqueles apologistas.

A integração econômica é o processo pelo qual se eliminam os obstáculos à circulação de bens, capitais e pessoas entre territórios econômicos que se encontram sujeitos a soberanias distintas e, portanto, a legislações específicas, elaboradas e implementadas por Estados distintos, refletindo os interesses de classes ou setores hegemônicos diferentes, que podem ou não ter, mas em princípio têm, um passado mais ou menos remoto de rivalidade, antagonismo e luta. Esse passado de antagonismo é natural na medida em que, no processo de formação dos Estados nacionais, as sociedades feudais ou coloniais que os antecederam entraram em luta, por razões políticas, econômicas, religiosas e outras, para definir territórios e soberanias mutuamente excludentes.

Ora, os projetos de integração econômica, para ter viabilidade e possibilidade de êxito, devem ser empreendidos entre territórios geograficamente próximos, e muitas vezes contíguos, cujas fronteiras foram definidas, em geral, pela força. Esse processo levou naturalmente a esforços e a políticas posteriores de afirmação de identidade nacional (e, portanto, de acentuação das diferenças em relação às populações vizinhas e de criação de estereótipos antagônicos) e gerou rivalidades de ordem política e cultural. As dificuldades e os deslocamentos econômicos que a livre circulação de bens, de capitais e de pessoas necessariamente provoca tenderão a fazer ressuscitar esses antagonismos, sempre que se aguçar a percepção de grave desequilíbrio de benefícios entre os Estados e as sociedades participantes. Assim, o processo de integração não é somente fluido, tranquilo e gerador de cooperação e amizade, mas pode também desencadear tensões entre as classes hegemônicas dos Estados que dele participam em torno da nova divisão de exercício da soberania no novo território, ainda que apenas econômico, em formação.

Quanto mais recentes as rivalidades entre os Estados que participam do projeto de integração e quanto menor a percepção de que a formação do novo território é indispensável para fazer frente à influência e ao poder de outros Estados soberanos, mais intensos e mais ressentidos serão os deslocamentos de poder das classes hegemônicas em cada uma das partes, e maior será sua repercussão política, o que poderá pôr em risco o projeto de integração.

Esses deslocamentos e essas tensões internas são menos sentidos nas sociedades e nos Estados que foram vencedores (ou que se vêem como tal) no processo histórico de delimitação de soberanias e naqueles menos dependentes dos mercados intrazona de integração; mas essa menor dependência e essa menor tensão interna, pelo contrário, podem até afetar a sobrevivência do projeto de integração, por causa do menor interesse dos sócios maiores – e dele menos dependentes – em preservá-lo.

Esses deslocamentos de poder podem ser tão intensos que o projeto de integração não poderá se salvar por soluções de natureza jurídica que levem à criação de instituições supranacionais ou de mecanismos de solução de controvérsias, o que em verdade envolve novas tensões políticas. Da mesma forma, demonstrações de economistas sobre a eficiência gerada pela integração na alocação de fatores de produção no conjunto do novo território visando à sua melhor inserção na economia mundial, e outros argumentos desse tipo, são de pouca utilidade para resolver crises dos esquemas de integração.

Soberania e integração no Cone Sul

Ao se iniciar o processo de cooperação e integração econômica entre Brasil e Argentina, em 1985, havia nos governos Alfonsín e Sarney a compreensão de duas questões: a primeira, de que esse era um processo político; e a segunda, de que era uma iniciativa necessária à defesa dos interesses econômicos e políticos da Argentina e do Brasil, em um sistema internacional cada vez mais competitivo, agressivo e concentrador em todos os seus aspectos. Os princípios fundamentais desse processo foram definidos como gradualismo, equilíbrio, flexibilidade e participação social. Procurou-se, então, construir os programas específicos de tal forma que pudessem ser implementados e não viessem a se transformar em meras manifestações de intenção. O princípio do equilíbrio de benefícios foi considerado essencial para solidificar a cooperação e difundir uma percepção de solidariedade e destino comum nas duas sociedades, dissolvendo preconceitos, estereótipos e rivalidades. Todavia, os desenvolvimentos domésticos e internacionais iriam afetar o curso desse projeto.

O estrangulamento exterior causado pelo peso do serviço das dívidas e pela escassez de capitais; o esforço ingente para a geração de mega-superavits; as dificuldades em controlar a inflação e o risco de hiperinflação; e a estagnação da produção levaram a conjunturas internas de instabilidade econômica e de risco de retrocesso político.

De outro lado, a revolução ideológica conservadora que se inicia com Thatcher e Reagan tornou hegemônica a visão neoliberal da economia em todo o mundo, com grande influência sobre a periferia, em especial sobre a Argentina e o Brasil.

Essa conjunção de fatores internos e externos fez com que nos Estados periféricos a restauração democrática fosse acompanhada, em especial a partir de 1989, pela vitória dos grupos na sociedade e no Estado favoráveis, tradicional ou recentemente, a uma política de abertura unilateral irrestrita e rápida da economia aos bens, serviços, tecnologias e capitais estrangeiros, de desregulamentação da atividade econômica e de redução das atividades do Estado como empresário, promotor e regulador do desenvolvimento.

A Nova Ordem Mundial que veio a ser implantada seria impulsionada ideologicamente pelo neoliberalismo e, na prática, pela expansão das megaempresas multinacionais em seu esforço para se instalar nas novas e lucrativas regiões abertas pela demolição do socialismo e nas áreas periféricas em que se instalara um capitalismo local, de empresas nacionais ou estatais protegidas pela legislação.

A ação das megaempresas multinacionais foi apoiada pelos seus respectivos Estados nacionais, por meio de pressões políticas acompanhadas de condicionalidades para a concessão de financiamentos e a renegociação de dívidas externas. As agências internacionais, controladas de fato ou de direito pelas grandes potências, em especial os Estados Unidos, lideraram o esforço ideológico de difusão das políticas neoliberais e de cooptação de elites intelectuais e políticas periféricas acompanhado de uma política ativa de promoção de abertura comercial e financeira radical, por meio das negociações comerciais multilaterais da Rodada Uruguai e das negociações bilaterais das dívidas externas, em que tiveram influência decisiva agências internacionais como o FMI e o Banco Mundial.

Na esfera político-militar, a vitória neoliberal tornou hegemônica uma visão cooperativa do sistema internacional em que o fim do conflito Leste-Oeste deveria levar ao desarmamento, à redução das despesas militares, ao fim dos conflitos regionais, ao fim do neutralismo e do movimento não alinhado, cabendo aos Estados periféricos contribuir para a paz, engajando-se unilateralmente nos programas de não-proliferação de armas de destruição em massa e de desarmamento convencional e organizando regimes democráticos, ainda que apenas formais, para executar políticas neoliberais.

De sua parte, os programas de integração na periferia deveriam se adaptar aos novos tempos e renunciar a suas características de formação de blocos econômicos para o fortalecimento das economias e dos capitalismos nacionais, de construção de seu poder de negociação internacional, de esforço conjunto de desenvolvimento industrial e tecnológico, para se tornarem mecanismos auxiliares de abertura neoliberal de mercados, sem discriminação em relação às megaempresas multinacionais e ao capital financeiro internacional, contribuindo para o processo de globalização e liberalização total da economia mundial. Daí a origem da expressão regionalismo aberto, cunhada pela Cepal, para justificar o regionalismo em uma época de globalização e derrubada de barreiras, apresentando os esquemas de integração periféricos como meras etapas do processo de globalização.

Assim ocorreu em 1991 com a transformação em Mercosul do Programa de Integração e Cooperação Econômica Brasil-Argentina. O PICE (1986) tinha como estratégia central a idéia de superar, cautelosamente, a rivalidade econômica e política entre Brasil e Argentina, através de um programa gradual e equilibrado de abertura comercial e de criação de mecanismos de desenvolvimento industrial e tecnológico entre os dois países maiores da América do Sul. Os aspectos desenvolvimentistas do PICE foram abandonados e foi ele transformado em um esquema simples de redução automática, até a eliminação completa de barreiras comerciais, criando uma zona de livre comércio que incluiria o Paraguai e o Uruguai e uma união aduaneira com uma Tarifa Externa Comum, com nível médio de alíquotas inferior ao antes vigente, em especial no Brasil, maior mercado da região.

A crises e as críticas que atingem a estrutura e os mecanismos do Mercosul hoje são apenas um reflexo das crises econômicas, sociais e políticas vividas em países do Cone Sul que decorrem do lento crescimento da economia regional, da eventual retração do comércio intrazonal, da sempre latente perspectiva de crise cambial, dos esforços ingratos de gerar superavits, do desemprego, do deslocamento de setores industriais e da percepção de assimetria de resultados, em especial em relação ao Brasil.

O caráter do Mercosul (abertura de mercados sem política industrial ou de reorganização setorial) não previu que um processo de integração econômica – isto é, de criação de um território econômico único entre quatro países tão distintos – levaria necessariamente a desequilíbrios econômicos setoriais e regionais como decorrência do maior dinamismo de uma economia ou de outra em diferentes estágios de industrialização ou de ciclo econômico. Nem previu que esse processo de integração comercial teria de ser acompanhado por políticas compensatórias e pela harmonização efetiva de políticas fiscais e de câmbio (e outras), e que esta harmonização não poderia ocorrer rapidamente e muito menos no prazo previsto no Tratado de Assunção, em virtude do caráter histórico conflitivo de formação do Estado, das classes hegemônicas e das soberanias nos dois países e de dificuldades econômicas e sociais estruturais.

Ao Brasil e à Argentina, todavia, continua a interessar acima de tudo a constituição de um bloco econômico, político e militar que, fortalecendo sua estrutura econômica, permita a participação a médio prazo dos dois países no sistema internacional em grau de igualdade com Estados de semelhante potencial econômico, demográfico e territorial. Este objetivo somente poderá ser atingido restaurando a idéia-força do desenvolvimento econômico com base no mercado interno (agora do Mercosul), isto é, no pleno emprego dos fatores nacionais e regionais de produção e na geração e absorção de tecnologias adequadas à constelação de fatores dos dois países e do Cone Sul, sem obviamente excluir o esforço indispensável de transformar as relações econômicas com os parceiros tradicionais e abrir novos mercados externos.

Algumas Estratégias

Algumas das estratégias que têm sido sugeridas para enfrentar os impasses do Mercosul e atender às expectativas dos Estados membros são de difícil execução em prazo adequado, algumas parecem inviáveis e outras podem até agravar a situação atual. A construção de agências supranacionais para o Mercosul esbarra em assimetrias territoriais, demográficas, econômicas e sociais entre os quatro Estados membros. A inclusão de outros Estados no Mercosul é importante, em especial a da Venezuela, mas não altera a relação global de forças dentro do bloco decorrente daquelas assimetrias.

A construção de mecanismos objetivos e imparciais de solução de controvérsias não resolve a crise do Mercosul, pois o processo de construção de território único é muito mais político do que econômico e muito mais econômico do que institucional ou comercial. Apesar de a criação de agências supranacionais ou de mecanismos de solução de controvérsias ser, em teoria, um aperfeiçoamento institucional, na realidade e na prática do Mercosul há uma dificuldade que as extraordinárias assimetrias entre os quatro Estados trazem para a definição democrática e equilibrada de sua representação nessas eventuais agências e mecanismos, que elaborariam normas para vigorar em sociedades com extraordinárias diferenças demográficas, econômicas e sociais e que decidiriam os conflitos de execução.

Assim, tratar a construção de um território único como um processo comercial e considerar a crise que surge da percepção dos desequilíbrios e deslocamentos como meras questões comerciais privadas ou de falta de instituições revela uma deficiência de visão quanto à natureza do processo de integração e suas conseqüências econômicas e políticas. A coordenação de políticas macroeconômicas por meio de consultas entre autoridades, de avisos prévios sobre medidas ou mudanças políticas (o que, em geral, não parece ser possível), da fixação de metas macroeconômicas comuns ou da criação de moeda única (que implica a organização de um Banco Central único) envolve medidas de muito longo prazo, especialmente difíceis quando até a coordenação interna, dentro de cada país em desenvolvimento, dessas políticas encontra dificuldades permanentes e sofre os efeitos de choques externos imprevisíveis. O Mercosul provavelmente desapareceria se seu êxito dependesse de tal coordenação, e de toda forma, mesmo que se conseguisse um nível elevado de coordenação, o comércio tenderá ao desequilíbrio e a gerar tensões na ausência de políticas ativas compensatórias e de uma política industrial e de serviços comum.

Um programa estratégico de curto prazo que contribuiria para reduzir as tensões entre Argentina e Brasil e assim enfrentar os impasses atuais do Mercosul deveria:
• desenvolver, com urgência e por setores, uma política industrial e de serviços comum;
• definir e executar políticas conjuntas de expansão de exportações e de importações de outros países com vistas à geração de superavits comerciais permanentes, inclusive no complexo setor de serviços;
• criar um programa conjunto de identificação e de remoção de barreiras às exportações de bens e serviços do Mercosul para terceiros mercados;
• reconhecer a impossibilidade de incluir certos setores no programa de eliminação completa de barreiras comerciais e elaborar regimes especiais para seu comércio intrazona;
• criar um fundo de reestruturação industrial, com recursos provenientes da aplicação da Tarifa Externa Comum (TEC), para financiamento a setores específicos afetados pela expansão do comércio;
• criar um fundo de desenvolvimento tecnológico, com recursos da cobrança da TEC, para financiar as atividades de pesquisa de empresas de capital de países do Mercosul que já sejam exportadoras;
• ampliar os prazos de compensação do Convênio de Crédito Recíproco, tornando progressivamente dispensável o uso de moeda forte nas transações bilaterais, liberando divisas para as transações com outras áreas e construindo as condições para o estabelecimento futuro da moeda única.

*Samuel Pinheiro Guimarães é Secretário Executivo do Ministério das Relações Exteriores. Este texto faz parte do livro Desafios Brasileiros na Era dos Gigantes (em fase de lançamento pela editora Contraponto) e foi gentilmente cedido pelo autor à Princípios.

EDIÇÃO 84, ABR/MAI, 2006, PÁGINAS 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37