Trabalho, soberania e desenvolvimento nacional
Cresce na sociedade brasileira o debate sobre um novo projeto nacional de desenvolvimento, alternativo ao neoliberalismo e capaz de promover um crescimento econômico mais vigoroso, sustentado ao longo do tempo e sustentável para o meio ambiente. É uma questão complexa e polêmica que compreende vários aspectos e inspira a luta de idéias inclusive no seio dos movimentos sociais. Este artigo sugere que devemos procurar desenvolver uma compreensão e uma consciência marxista do tema, o que significa abordá-lo sob uma ótica classista orientada pelos interesses da classe trabalhadora, resumidos na bandeira do desenvolvimento nacional com soberania e valorização do trabalho.
É uma falácia supor que as questões relativas ao desenvolvimento são estritamente técnicas, existindo à margem das classes sociais e da luta de classes. As divergências de opinião sobre o assunto no mais das vezes refletem interesses conflitantes das diferentes classes e agrupamentos sociais que integram nossa sociedade. Isto fica mais claro quando nos defrontamos com demandas como redução da jornada sem redução de salários e valorização do salário mínimo. Que impactos terão medidas do gênero sobre a economia e o desenvolvimento nacional? Capital e trabalho certamente apresentarão respostas diferentes para tal pergunta, pois a contradição dos interesses em jogo inspira pontos de vista distintos e é fonte de irremediáveis divergências.
Quando o pensamento tem por objeto a economia ou a política não raro, após um exame criterioso, as idéias se revelam fiéis escravas dos interesses de classe, aos quais até mesmo a ciência costuma bater continência. Não sem razão os céticos enxergam nas políticas econômicas neoliberais a extensão dos interesses da oligarquia financeira. Por seu turno, a teoria marxista, essencialmente crítica em relação ao modo de produção capitalista, não oculta seu compromisso com os interesses imediatos e futuros da classe trabalhadora, caracterizando-se, portanto, como uma teoria classista. Trabalho e produção
Do ponto de vista do marxismo e da economia política clássica, o trabalho é a principal força-motriz do desenvolvimento econômico, a força que cria (ou agrega) novo valor à produção. É, por conseqüência, a fonte original de toda riqueza social e o conteúdo das diferentes formas pelas quais a renda nacional pode ser apropriada por empresas, governos ou indivíduos (lucros, dividendos, aluguéis, juros, impostos, salários, aposentadorias). É exclusivamente no processo de trabalho que ocorre a valorização real do capital. Por tudo isto, é justo atribuir ao trabalho um papel central na economia moderna, assim como à classe trabalhadora uma grande relevância política.
Entretanto, a centralidade do trabalho está hoje em xeque. A relevância dos trabalhadores nas lutas políticas é contestada pelo pensamento dominante e negada ou negligenciada pelo senso comum. Prevalece, na consciência da maioria, a idéia segundo a qual a “sociedade do trabalho” acabou e só resta aos seus representantes a perspectiva de decadência e depreciação. Para coroar tal raciocínio, as forças do trabalho vêm sendo submetidas a uma brutal ofensiva do capitalismo, através das iniciativas econômicas, políticas e ideológicas configuradas no chamado neoliberalismo.
O neoliberalismo fez da depreciação do trabalho uma profissão de fé. Segundo seus ideólogos, para obter um crescimento mais robusto das economias e combater o desemprego é indispensável flexibilizar e abolir direitos sociais, desvalorizar a mão-de-obra, facilitar as demissões imotivadas e desmantelar as redes públicas de proteção social. No final das contas, trata-se de aumentar o grau de exploração da classe trabalhadora. Além disto, segundo a cartilha neoliberal, as nações devem promover o “Estado mínimo”, as privatizações, a liberalização do comércio exterior e dos fluxos de capitais.
Neoliberalismo e desenvolvimento
Á medida que consegue hegemonia ideológica e política pelo mundo, o projeto neoliberal vem atropelando conquistas históricas do proletariado e impondo o retrocesso das relações sociais. Mas um balanço honesto e realista dos fatos históricos revela que a depreciação do trabalho não favoreceu o desenvolvimento das forças produtivas. Contribuiu, pelo contrário, para o declínio das taxas de crescimento e o aumento assustador dos níveis de desemprego, além de agravar a dependência e espoliação das nações mais pobres pelo capital financeiro internacional. Este tem sido o caso, em geral, na América Latina e também no Brasil, onde o neoliberalismo tornou-se dominante a partir dos anos 1990.
A depreciação da força de trabalho é entre nós um fato insofismável, bem conhecido pelo movimento sindical e que transparece claramente nas estatísticas sobre a evolução da distribuição da renda nacional entre capital e trabalho ao longo dos últimos anos; no desemprego massivo, adquiriu um caráter crônico (não se restringindo às fases depressivas do ciclo produtivo); na desregulamentação, flexibilização e precarização crescente do mercado de trabalho nacional. A participação da renda dos trabalhadores no PIB, incluindo informais e autônomos, caiu de 52,3% em 1990 para 40,7% em 2002, segundo dados do Ministério do Trabalho; a taxa de desemprego praticamente triplicou no mesmo período; 48% dos empregados ganham até 2 salários mínimos e mais de 50% não têm carteira assinada.
O arrocho não favoreceu o crescimento do PIB, mas deprimiu a capacidade de consumo das famílias brasileiras; associado às políticas de ajuste externo ditadas pelo FMI, provocou sensível redução das dimensões do mercado interno. Uma vez que a produção encontra o seu limite na capacidade de consumo social, a depressão do mercado interno vem se revelando um sério obstáculo ao crescimento econômico, pois sujeita as empresas que produzem predominantemente para o consumo doméstico a crises recorrentes de superprodução relativa.
Classes sociais e nação
É notória no Brasil e em outros países ditos emergentes a centralidade política da questão nacional. Qualquer projeto de nação deve contemplar, prioritariamente, a garantia de soberania econômica e política. Em nosso caso, isto exige uma estratégia de integração solidária e soberana dos países latino-americanos, em contraposição à Alca proposta pelos EUA. Supõe igualmente o estabelecimento de uma agenda comum dos movimentos sociais, bem como lutas e reivindicações unitárias da classe trabalhadora.
Não devemos interpor uma Muralha da China entre a chamada questão nacional e a luta dos trabalhadores. No Brasil, durante os anos 1990, a ideologia e a política neoliberal angariaram um amplo consenso e apoio da burguesia e das classes dominantes brasileiras. As elites capitalistas abriram caminho à política neoliberal, à abertura indiscriminada da economia, à liberalização do movimento de capitais estrangeiros, aos acordos com o FMI. Além disto, sempre manifestaram total concordância e indisfarçável satisfação com agendas de redução dos direitos sociais, depreciação dos salários ou flexibilização e precarização dos contratos trabalhistas.
Diante da necessidade de propor um novo projeto nacional de desenvolvimento e por ele lutar, cabe indagar: qual o papel das classes sociais neste novo projeto? Não parece que a grande burguesia brasileira tenha credibilidade, moral e disposição para encabeçar a luta por um modelo econômico alternativo ao neoliberal. Já os interesses da classe trabalhadora parecem mais sintonizados com o progresso e uma vez contemplados tendem a promover desenvolvimento. A valorização do trabalho é o caminho para a ampliação do mercado interno e a concretização de um projeto nacional de desenvolvimento com soberania.
Isto significa que a classe trabalhadora pode ser a força-motriz, protagonista, do novo projeto de desenvolvimento, desde que não procure marchar sozinha. Um novo projeto de desenvolvimento deve agregar amplos setores e forças sociais, abrindo caminho a uma ampla união nacional pela mudança do modelo econômico, pela soberania, pelo emprego e pelo desenvolvimento. Setores do empresariado brasileiro podem desempenhar papel relevante nesta batalha, mas caberá à classe trabalhadora o papel principal, pois é a única que tem interesses concretos em conduzir uma luta vigorosa e conseqüente contra o neoliberalismo e por um projeto nacional de desenvolvimento com soberania e valorização do trabalho.
O imperativo do crescimento
Avaliada sob o critério do desenvolvimento nacional, a orientação neoliberal fracassou deixou a renda per capita praticamente estagnada, resultou num crescimento rizível do PIB, elevou o nível de desemprego. Frente a tais resultados, forma-se no Brasil, como em outros países da América Latina, um amplo consenso de ser necessário mudar, de forma a criar as condições para viabilizar taxas de crescimento mais elevadas, de pelo menos 5% ao ano. Ganha força na região a luta antiimperialista por um novo rumo político, que pressupõe um projeto de desenvolvimento nacional diferente, alternativo.
Em oposição ao neoliberalismo, que continua perseguindo a depreciação do trabalho, a elaboração deste novo projeto, afinado com os interesses nacionais e populares, deve perceber na valorização do trabalho uma fonte (em vez de um obstáculo) para o desenvolvimento nacional. Numa ótica guiada pelos interesses da classe trabalhadora, será preciso defender a recuperação e o fortalecimento do mercado interno como fundamentos indeclináveis de um modelo econômico desenvolvimentista. Isto exige a reversão da lógica imposta pelo neoliberalismo.
Trata-se de reverter a trajetória de declínio da participação da renda do trabalho no PIB e implementar uma distribuição mais justa da produção nacional. Em tais condições, as bandeiras do trabalho não devem ser mais defendidas e entendidas apenas como bandeiras sindicais, meramente corporativas ou economicistas. São a um só tempo bandeiras do trabalho e bandeiras de um novo projeto nacional de desenvolvimento. Ao compreender isto o movimento sindical, a começar pelo sindicalismo classista, dará um passo a mais no sentido de elevar o nível de sua intervenção política e contribuir de forma mais efetiva para a classe trabalhadora de fato poder exercer a missão que a história lhe confia de protagonista e vanguarda das lutas e da transformação sociais.
Analisamos a seguir as relações entre algumas bandeiras da classe trabalhadora (pleno emprego, redução da jornada e educação) e o desenvolvimento nacional.
Identidade entre emprego e produção
Um combate sistemático ao desemprego – visando à sua reversão através de um aumento substancial da oferta de emprego – é o ponto de partida para a valorização do trabalho. O desemprego em massa, grande flagelo dos povos na atualidade, cria uma pressão objetiva irresistível a favor da depreciação dos salários e das conquistas proletárias; desmoraliza e desmobiliza as organizações sindicais; abre caminho à desregulamentação das relações de trabalho; acirra a concorrência entre os trabalhadores e dificulta sua unidade. Assim sendo, não podemos imaginar valorização do trabalho sem primeiro equacionar o problema do emprego.
Cabe aqui ressaltar que a desocupação é uma fonte de prejuízos para a economia nacional, pois em si já traduz e representa enorme ociosidade e desperdício de forças produtivas. Ao investigarmos melhor o tema veremos existir uma identidade dialética entre emprego e produção. Um trabalhador empregado (no processo de produção capitalista) gerará renda, agregando valor à produção e, deste modo, dará sua cota de contribuição para o crescimento da economia nacional e também do consumo popular, à medida que recebe e gasta uma remuneração pelo trabalho que executa. Logo, emprego e produção constituem uma unidade indissociável. Cada novo emprego criado no setor produtivo significa a adição de uma nova fração de valor ao PIB.
Quanto maior o número de pessoas ocupadas no processo produtivo, sob dada jornada e produtividade do trabalho, maior será o volume e o valor da produção, conforme sugere, por sinal, a famosa lei do valor-trabalho descoberta pelo fundador da economia política, o inglês Adam Smith. Quanto maior a taxa de ocupação da população economicamente ativa maior será o PIB e o crescimento relativo de uma nação.
Em contrapartida, um trabalhador desempregado, condenado à ociosidade, é por definição um ser improdutivo, embora não deseje tal condição. Como também não recebe nenhuma remuneração ao ficar parado, em tese, ele nada acrescenta ao consumo social, contribuindo para o emagrecimento do mercado interno. Em função de sua dimensão social, massiva, o desemprego moderno provoca prejuízos de toda ordem, onera o orçamento público (com seguro desemprego e outras verbas assistencialistas que numa situação de pleno emprego poderiam ser investidas de forma mais produtiva), estimula a criminalidade, deprime as contribuições previdenciárias e fomenta a instabilidade social.
Por isto, a bandeira do pleno emprego deve ser considerada uma bandeira desenvolvimentista. Batalhar pelo pleno emprego significa lutar pela utilização plena das forças produtivas nacionais, pelo crescimento mais vigoroso da economia, pelo fortalecimento do mercado interno. Todavia, não convém esperar que a solução para o problema do desemprego surja espontaneamente como resultado da livre movimentação das forças de mercado. Já nos anos 30 do século passado a suposição liberal de que o mercado de trabalho move-se automaticamente para um ponto de equilíbrio (entre oferta e demanda) era criticada e desmoralizada na prática e na teoria (por Keynes); agora retorna à baila, com nova roupagem e a idéia aparentemente inocente de que para aumentar o nível de emprego é necessário acabar com os obstáculos à liberdade de mercado, que seriam criados pelos sindicatos, o Estado e, em especial, a legislação trabalhista. Esta concepção é tão falsa hoje como no passado. O desemprego não é causado pela legislação ou pelos sindicatos, decorre antes das leis objetivas do desenvolvimento capitalista. A intervenção do Estado na regulação dos mercados, compreendendo a mudança da política econômica de viés neoliberal e a promoção de políticas públicas de pleno emprego, é indispensável.
Jornada e mercado de trabalho
Também cabe assinalar que o crescimento da economia por si só não soluciona o problema do desemprego massivo, mesmo porque a relação entre investimento e emprego é decrescente ao longo do tempo em função do fenômeno que, há mais de um século, Karl Marx identificou como alta da composição orgânica do capital, impulsionada pelo avanço da produtividade social do trabalho. Isto reforça a necessidade de também reduzir a jornada de trabalho.
Segundo estimativas dos economistas do Dieese, uma redução de quatro horas na semana de trabalho pode gerar mais de 2 milhões de novos postos de trabalho no Brasil, desde que seja acompanhada pela limitação de horas-extras e abolição do banco de horas. A medida implica automaticamente uma substancial elevação do consumo doméstico e fortalecimento do mercado interno, favorecendo por esta via o crescimento da economia. A experiência história indica também que a repercussão da redução da jornada sobre a produtividade social do trabalho é francamente positiva.
Conforme Marx já ressaltava n’O capital (livro I, capítulo XIII), “o primeiro efeito da jornada de trabalho diminuída decorre dessa lei evidente: a capacidade de operar da força de trabalho está na razão inversa do tempo em que opera. Por isso, dentro de certos limites, o que se perde em duração ganha-se em eficácia”. É justo supor que em médio e longo prazo a redução da jornada favorecerá o avanço da produtividade e, por extensão, da competitividade das empresas nacionais.
A bandeira da redução da jornada sem redução de salários revela-se, assim, uma bandeira desenvolvimentista, um instrumento poderoso no combate ao desemprego, que fortalecerá o mercado interno com o aumento da massa salarial e tende a elevar a produtividade do trabalho e a competitividade nacional. Há outra virtude a destacar: é uma luta que unifica, ao invés de dividir, o movimento sindical. No Brasil, as seis principais centrais sindicais estão juntas na campanha nacional pela redução da jornada sem redução de salários.
Educação e desenvolvimento
A transformação da ciência numa força produtiva direta vem conferindo à educação um papel estratégico na produção e no desenvolvimento desigual das economias nacionais. O avanço da produtividade social do trabalho e da competitividade relativa dos países, assim como a maior agregação de valor nas cadeias produtivas, dependem cada vez mais do grau médio de escolaridade da classe trabalhadora, do número de universitários e dos investimentos em pesquisa e tecnologia.
Podemos inferir a lógica deste processo através da própria teoria do valor-trabalho. Sabemos, pelo menos desde Adam Smith, da existência de dois tipos distintos de trabalho, o trabalho mais complexo ou qualificado e o trabalho simples, sem maior qualificação. Ambos agregam valor às mercadorias durante o processo de produção, mas não na mesma proporção: uma hora de trabalho complexo cria mais valor que uma hora de trabalho simples. Isto transparece nos preços praticados no comércio exterior, constituindo a base do que alguns economistas (críticos do capitalismo) classificam de troca desigual. Esta se verifica, por exemplo, no intercâmbio de mercadorias entre os produtores de matérias-primas e os fabricantes de produtos mais elaborados, intensos em ciência e tecnologia, cujos preços são significativamente superiores.
Na época de Smith e, mesmo mais tarde durante a vida de Karl Marx, a diferença entre trabalho simples e trabalho complexo não tinha maior peso na economia e podia ser negligenciada na análise do processo produtivo. Hoje já não se pode dizer o mesmo. A generalização do ensino e os avanços acumulados na aplicação da ciência e das tecnologias à produção alteraram a realidade. O sistema imperialista também cuidou de transformar a divergência entre trabalho complexo e trabalho simples em fundamento da divisão internacional de trabalho entre os países situados no centro e na periferia do sistema, atribuindo aos primeiros o monopólio do trabalho complexo (especialmente no campo das pesquisas e alta tecnologia), ao mesmo tempo procurando condenar as nações da periferia ao trabalho operário mais simples e à produção de commodities.
Por essas razões, a educação da classe trabalhadora tornou-se uma questão estratégica para o desenvolvimento nacional e a inserção soberana do Brasil, como de qualquer outro país, na economia mundial. Enquanto não lograrmos melhorar a educação do nosso povo (e ampliarmos os investimentos em ciência e tecnologia) estaremos condenados ao subdesenvolvimento, ao trabalho de baixo valor (agregado), ao intercâmbio desigual e à exploração neocolonial por parte das potências imperialistas.
Cabe ao movimento sindical brasileiro transformar em bandeira de luta o objetivo de elevar o grau de escolaridade da classe trabalhadora brasileira e erradicar o analfabetismo.
Neste sentido, a Corrente Sindical Classista (CSC) propõe destacar uma parte da jornada de trabalho (remunerada), cinco ou seis horas semanais, para a educação, estabelecendo-se metas de erradicação do analfabetismo e gradual elevação do nível de escolaridade.
*João Batista Lemos coordenador da Corrente Sindical Classista e Umberto Martins é jornalista.
EDIÇÃO 84, ABR/MAI, 2006, PÁGINAS 58, 59, 60, 61, 62, 63