Realizamos há poucos dias a II Conferência Nacional de Esporte, vivência democrática importante para o mundo do esporte e espaço de articulação e elaboração política. Tarefa-chave estabelecida pela Conferência é a estruturação de um Sistema Nacional de Esporte e Lazer, medida que melhor capacita o país a efetivar o esporte como um direito para todos.

A reflexão sobre a estruturação de um novo Sistema de Esporte e Lazer deve considerar as experiências vividas e os distintos aparatos normativos do esporte são bússolas úteis para esse intento. Apesar de, por vezes, a legislação esportiva brasileira pouco falar – ou mesmo se calar – é possível interpretar a visão de cada época sobre agentes, responsabilidades e outros elementos constitutivos do sistema.

Construir uma linha de tempo importa resgatar aspectos centrais, numa leitura panorâmica, das principais normas reguladoras do esporte no século XX que serão tratadas pela Lei Geral, visto o impacto e abrangência que tiveram.

No Brasil, a primeira Lei Geral foi o Decreto-Lei 3.199, de 14 de abril de 1941, “que estabelece as bases de organização dos desportos em todo o país”. No âmbito do Ministério da Educação e Saúde, foi instituído, à época, o Conselho Nacional de Desportos (CND), com réplicas regionais, para “orientar, fiscalizar e incentivar a prática dos desportos no Brasil”.

O CND se configurou como vértice do sistema esportivo brasileiro, absolutamente verticalizado, e assumiu a tarefa de coordenar a atividade das entidades esportivas. Tal modelo correspondia ao ambiente político e social da época em que o governo do presidente Getúlio Vargas dava os passos iniciais para a construção de um Estado nacional marcado pela centralização política e presença estatal decisiva nos vários aspectos da vida econômica e social do país.

O Conselho nascia com a responsabilidade de disciplinar e organizar associações esportivas, financiar associações esportivas, promover a educação física, afirmar a cultura nacional, garantir moralidade no esporte profissional, apoiar o esporte amador e promover a participação do Brasil em eventos internacionais.

Com isso, o sistema federativo é institucionalizado – confederações, federações, ligas e associações esportivas. O esporte militar, o esporte universitário e o esporte escolar – chamado esporte da juventude – têm regras específicas. O poder público – União, Estados, Municípios – fica responsabilizado pela construção de instalações esportivas, quando o apoio da iniciativa privada não fosse suficiente para tal objetivo e assume a responsabilidade de subvencionar as entidades esportivas no desenvolvimento de suas atividades. O incentivo fiscal para o esporte aparece na forma de isenção de impostos para importação de equipamentos sem similar nacional.

A primeira Lei Geral criou uma série de regras para o funcionamento das entidades esportivas e algumas delas se projetam até hoje. Por exemplo, as funções executivas das entidades cabiam aos presidentes e as funções de direção das entidades não podiam ser remuneradas. Foram instituídas restrições a estrangeiros de participar de direções, treinamentos e competições, assim como à participação de mulheres em “esportes incompatíveis com sua natureza”.

O sistema estruturado a partir dessa Lei Geral atravessou três décadas. Caracterizou-se pela administração do esporte sob a tutela do Estado, com forte papel normativo e provedor de recursos financeiros, e pela perspectiva funcional na qual a educação física e o esporte assumiam atribuições de medida disciplinadora, moralizadora e capaz de aperfeiçoar aptidões para o trabalho.

Normatização no regime militar

A segunda Lei Geral, nº 6.251, de 08 de outubro de 1975, foi estabelecida no auge do regime autoritário instalado pelo golpe militar de 1964. Essa nova Lei parte da conceituação do esporte como “atividade predominantemente física, com finalidade competitiva exercitada segundo regras pré-estabelecidas”.

A organização do esporte é livre à iniciativa privada, que conta com amparo técnico e financeiro do poder público, principal responsável pelo desenvolvimento do esporte. O caráter provedor do Estado permanece, com a disposição no orçamento da União de fontes precisas de financiamento, e os investimentos do governo federal em obras e instalações passam a ter caráter suplementar – o que reflete parcialmente uma visão de cooperação entre as entidades da Federação.

A União, agora através do MEC, continua como protagonista do setor definindo a Política Nacional de Educação Física e Esportes que deveria atender aos objetivos de aprimorar a aptidão física da população, elevar o nível do esporte em todas as áreas, massificar a prática esportiva, qualificar a representação brasileira em competições internacionais e fazer do esporte uma alternativa de lazer, de ocupação do tempo livre.

A segunda Lei Geral define objetivamente o Sistema Esportivo Nacional com órgãos públicos e privados para dirigir, orientar, supervisionar, coordenar, controlar ou proporcionar a prática de esportes no país. O esporte nacional passa a se organizar como comunitário, estudantil, militar e classista. Comunitário equivale ao esporte de rendimento incorporado formalmente pelo Comitê Olímpico Brasileiro, em posição de destaque. A figura da recreação, como atividade típica de prática esportiva não ligada ao sistema federativo, o lazer, surge na legislação desvinculada da agenda do poder público.

Fato digno de nota, por inusitado, é uma Lei engendrada num período autoritário ter instituído uma medida democrática para o sistema federativo ao limitar mandatos e reconduções de presidente e vice-presidente das entidades esportivas. No campo do financiamento, passa-se a dispor dos recursos oriundos da loteria que, ao longo do tempo, se constituiu como fonte do esporte no plano nacional.

Tema constitucional

A terceira referência do marco regulatório considerada relevante é a Lei atual – de 24 de março de 1998 – e suas modificações posteriores, a chamada Lei Pelé. De fato, a Lei 8.672, de 06 de junho de 1993, a Lei Zico, teve importância histórica para adequação das regras a uma conjuntura nova, mas a Lei Pelé continua sua obra e a desenvolve sem alterar-lhe a perspectiva.

Na atual legislação, elaborada na década passada, repercute o fato de o esporte ser elevado a tema constitucional – artigo 217 – cuja marca central é reconhecer o esporte como “direito de cada um”.

A incorporação do conceito de esporte como direito social na Constituição de 1988 tem origem na Carta Internacional da Educação Física e do Esporte, publicada dez anos antes pela Unesco, mas também é fruto do ambiente de redemocratização do país, cujas lutas sociais se expressaram na chamada “Constituição Cidadã”, assim batizada pelo deputado Ulisses Guimarães em função do conjunto de direitos que ela passou a reconhecer.

A hegemonia política daquele período reclamava pelo fim da “era” Vargas. No momento da ofensiva liberal, no Brasil e no mundo, uma redefinição importante diz respeito ao papel do Estado e sua relação com a sociedade. São fortes os apelos para a autonomia plena da sociedade civil assim como estímulos à iniciativa privada. Essa conjuntura repercutiu no texto legal.

A atual Lei Geral é futebolizada, reflete a paixão nacional, mas, sobretudo, a força dos interesses do futebol articuladas no Congresso Nacional. Tratar dos tempos atuais exige extrair dessa Lei os itens relativos ao novo esquema conceitual do esporte, ao papel do poder público, às definições quanto ao financiamento e mesmo à estrutura necessária a um Sistema de Esporte e Lazer.

O artigo 217 da Constituição Federal é fundamental por ter constitucionalizado o direito ao esporte, não obstante o texto ser um tanto quanto genérico. Mereceriam atenção as propostas de ajustes na sua forma e conteúdo. O texto constitucional é incisivo apenas ao estabelecer a prioridade dos recursos públicos para o esporte educacional.

Ainda assim, há de se reconhecer o esforço da atual Lei Geral para avançar no desenvolvimento do preceito constitucional ao definir as manifestações do esporte fixadas na Carta Magna. Ao estabelecer a distinção entre práticas esportivas formais e não formais a Lei amplia o alcance que deve ter o lazer em sua dimensão esportiva a qual é timidamente registrada no texto constitucional.

Os doze “princípios fundamentais” fixados pela Lei, que devem inspirar o fazer esportivo, abarcam a totalidade de possibilidades dessa prática social em suas múltiplas dimensões. Por vezes, eles são contraditórios entre si, entretanto, úteis para a reflexão sobre um Sistema, principalmente por se tratar de uma redação legal correspondente a um determinado quadro de correlação de forças no Parlamento brasileiro que segue praticamente inalterado.

Esporte educacional

A definição de esporte de rendimento é fina, precisa. Esporte de participação é a expressão escolhida para caracterizar o lazer esportivo e que pode ser aperfeiçoada. A definição que exigiria melhor juízo diz respeito ao esporte educacional. Nessa visão vale refletir sobre a singularidade do esporte educacional como manifestação típica, específica.

A elaboração da Política Nacional do Esporte (1) já revelou a necessidade de buscar o real significado dessa manifestação. Tal como é posto hoje o sentido educacional perpassa inclusive as demais manifestações esportivas às quais pode ser atribuído sentido educativo. Essa é uma questão-chave porque diz respeito não apenas à legislação, mas, sobretudo, impacta na estruturação da gestão pública e no financiamento do esporte brasileiro.

Ir além das dimensões esportivas de rendimento e participação requer revisar a relação entre esporte e educação (2). O ambiente das instituições de ensino pode ser espaço para atividade esportiva nas duas dimensões citadas. As competições estudantis – escolar e universitária – podem colaborar com a iniciação e o desenvolvimento da base do esporte de rendimento.

De outro ângulo, a recreação e o acesso ao conhecimento compõem os elementos principais do esporte como conteúdo curricular da educação física. Essas considerações sugerem a necessidade de estabelecer melhores fronteiras entre as manifestações esportivas e precisar a relação entre esporte e educação, o que repercutirá na estruturação do Sistema de Esporte e Lazer.

Estrutura do esporte nacional

Com o “objetivo de garantir a prática esportiva regular e melhorar seu padrão de qualidade” a Lei Geral criou o Sistema Brasileiro de Esporte compreendendo: o Ministério do Esporte, o Conselho Nacional do Esporte e o Sistema Nacional do Esporte – que articula o esporte de rendimento. Permeável, ela previu a hipótese de incorporar no Sistema Brasileiro entidades que “desenvolvam práticas não-formais, promovam a cultura e as ciências do esporte e formem e aprimorem especialistas”.

Na realidade, o Sistema Nacional do Esporte definido nessa Lei corresponde à estrutura do esporte de rendimento desenvolvido ao longo do século XX e funciona com um nível de articulação satisfatório. A chamada Lei Agnelo-Piva viabilizou essa área na medida em que criou as condições para o planejamento e o desenvolvimento de suas atividades com regularidade ao estabilizar o financiamento com a vinculação de parte dos recursos das loterias.

A Lei dá autonomia às entidades de administração e de prática do esporte de rendimento, entretanto, deve-se refletir sobre a relação entre o poder público e as entidades privadas principalmente considerando a presença do caráter provedor do Estado, inaugurado em 1941, até os dias atuais.

Autonomia não é independência, importa vínculos e compromissos e qualificá-los pode servir ao desenvolvimento do esporte brasileiro. É fundamental, portanto, ao Estado analisar profundamente o financiamento público e a regulação do Sistema.

Atualmente, o Conselho Nacional do Esporte incorpora alguns dos setores sugeridos pela norma para compor o atual Sistema Brasileiro. Do ponto de vista político, não deixa de ser um arranjo institucional que, em pequena medida, explicita o que se configuraria na articulação do Sistema.

O desenvolvimento das ações do Ministério do Esporte é outra expressão da operação na perspectiva de um sistema coeso e coordenado, na medida em que estabelece mecanismos de cooperação com as outras entidades da federação de administração e prática de esporte, além da ação intersetorial com outras instituições da administração federal. Sistematizar essas experiências traz subsídios para o funcionamento pleno de um Sistema.

E ainda deve referenciar as reflexões o pacto federativo estabelecido pela Constituição Federal, que redefiniu os papéis de Estados e Municípios, inclusive estabelecendo competência normativa concorrente às entidades da federação. Importa considerar, também, a autonomia dos estados e municípios que difere da de outras épocas.

A constituição de algum modelo de Sistema requer um novo pacto entre as entidades da federação com a construção de mecanismos de adesão ao Sistema. A mesma lógica vale para o setor privado que goza de autonomia equivalente.

Esporte e lazer no novo sistema

A preparação da II Conferência Nacional do Esporte produziu uma polêmica no tocante à amplitude do sistema que se busca viabilizar. A questão de fundo foi: até onde vai o lazer no Sistema articulado para o esporte?

Alguns fatos relevantes devem ser observados. Primeiro, o lazer é percebido pelo senso comum, sobretudo, como prática corporal; segundo, as estruturas de gestão – públicas e privadas – aproximam ambos os temas; terceiro, a área que mais investigou essa questão está ligada às ciências do esporte; e, quarto, as legislações os tratam quase sempre de modo vinculado. Há um acordo conceitual importante na medida em que se acredita que “no tempo e espaço de lazer, a manifestação cultural esportiva, despojada de sentido performático, apresenta-se como possibilidade de ser vivenciada por todos que o acessam”. Desse modo pode ser uma experiência que colabore para a emancipação humana, devendo motivar a ação consciente e decidida de estímulo ao lazer esportivo.

Entretanto, dúvidas partem da premissa de objetivamente o lazer possuir uma dimensão que extrapola enormemente o fazer esportivo. A discussão em torno de um Sistema que inclua o lazer, do ponto de vista do esporte, deve considerar esses limites.

Um Sistema de Esporte e Lazer deve incorporar com destaque a dimensão esportiva do lazer, entretanto, não se configuraria propriamente num Sistema de Lazer, pois isso exigiria incorporar todo o esporte e ir muito além, exigiria a mobilização de agentes públicos e privados de vários outros setores: cultura, educação, saúde, meio ambiente, desenvolvimento urbano, trabalho. Cada um deles possui estruturas e dinâmicas próprias e exige uma agenda complexa para articulação de um Sistema institucional próprio. Portanto, apesar do avanço na discussão do lazer, em sentido pleno, não se pode descuidar de sua dimensão esportiva ao implementar o Sistema Nacional de Esporte e Lazer.

Lei de Incentivo ao Esporte

Outra problemática importante tratada pela II CNE refere se aos trabalhadores do Sistema. Embora seja necessário aprofundar essa questão, decidiu se que o caráter do Sistema deverá ser multiprofissional e multidisciplinar, e será constituído por todas as pessoas nele atuantes, inclusive os Agentes Comunitários de Esporte e Lazer.

Porém, “deverá ser indicado para cada área profissional as suas atribuições específicas e compartilhadas, o nível de formação e qualificação profissional exigida e a necessidade ou não de registro profissional, observando se a legislação vigente”.

O marco da II CNE foi o envio, ao Congresso Nacional, do Projeto de Lei de Incentivo ao Esporte. Uma conquista histórica do esporte brasileiro que, ao ser aprovado e sancionado, projetará o esporte a um novo patamar contribuindo para a ampliação e a diversificação das fontes de financiamento e para a aplicação eqüitativa dos recursos nas três dimensões do esporte: educacional, de participação e de rendimento.

O resgate dessa trajetória aqui desenhada serve para demonstrar o rico processo de desenvolvimento do esporte brasileiro. Os desenhos institucionais variaram em função de referências internacionais, aproximações com modelos nacionais de outras áreas e influências do ambiente político e social do momento.

No esteio da I CNE, em 2004, avançou se na elaboração do Sistema Nacional de Esporte e Lazer, tendo como referência a participação popular e a construção coletiva de políticas públicas que tem sido marca do governo Lula. Porém, sua efetivação não se dará sem a superação de alguns desafios.

O novo Sistema de Esporte e Lazer que se pretende construir deve:

Ser orientado pela Política Nacional do Esporte, aprovada pelo Conselho Nacional.

Rever a legislação brasileira, ajustar o texto constitucional e a lei ordinária, definindo melhor as manifestações esportivas.

Avançar na intersetorialidade do sistema esportivo, sobretudo com educação, cultura, saúde, trabalho e planejamento urbano, de modo que as políticas públicas tenham maior eficácia no que diz respeito ao desenvolvimento humano.

Atuar para ampliar e diversificar as fontes de financiamento e rever o uso dos recursos disponíveis de modo a potencializar sua aplicação.

Considerar o pacto federativo e definir competências para cada entidade nas ações públicas principais que devem ser objeto de acordos entre as partes.

Concentrar a participação do setor público nos investimentos necessários para dotar o país de infra-estrutura e equipamentos adequados.

Constituir uma Política de Formação de Recursos Humanos qualificada que permita o desenvolvimento do esporte em todas as suas dimensões.

Atribuir ao Estado a responsabilidade pela regulação do esporte de rendimento através de normas gerais e mecanismos de fiscalização de modo a estimular os investimentos e a administração privada.

Constituir o Conselho Nacional do Esporte como instância responsável pela elaboração e acompanhamento de Planos Plurianuais para o desenvolvimento do esporte brasileiro e fazer do Conselho uma projeção, em plano nacional, de mecanismo de controle social que se pretende estender a todo país como estrutura para o novo Sistema.

Institucionalizar o esporte e o lazer nos estados e municípios com a criação e o fortalecimento de
órgãos públicos próprios para a gestão desse setor.

Cabe registrar que não se pretende a construção de uma estrutura formal de sistema, nem tampouco a simples reorganização do que está posto, mas uma ação responsável sobre as possibilidades existentes a partir da análise cuidadosa da realidade atual e das suas perspectivas considerando as vivências e expectativas dos potenciais agentes do esporte nacional participantes do processo de re-construção e presentes à II Conferência Nacional de Esporte.

Orlando Silva Júnior é ministro do Esporte.

Notas:
(1) Brasil. Ministério do Esporte. Política Nacional do Esporte. Brasília: Assessoria de Comunicação. 2005.
(2) A respeito ver: DAMIANI, C. & ESCOBAR, M. “Construindo a relação esporte-escola”. In: Princípios, n. 84, abril/maio de 2006, p. 72-77.

EDIÇÃO 85, JUNHO, 2006, PÁGINAS 43, 44, 45, 46, 47, 48