A América do Sul vive um paradoxo. A atual condição, singular – aberta pelo fato de forças progressistas com plataformas de política externa pró-integração estarem à frente de importantes governos nacionais – nos faz assistir ao melhor momento histórico para fazer avançar a união sul-americana e, ao mesmo tempo, contraditoriamente, faz recrudescer tensões e obstáculos para sua consecução.

A nacionalização do gás boliviano; as “ameaças” difundidas pelos conservadores quanto ao “neopopulismo”, às “duas esquerdas” e a influência de Chávez; a aliança entre Bolívia, Venezuela e Cuba, no âmbito da Alba; a desintegração da Comunidade Andina, derivada da adesão de Peru e Colômbia à esfera de influência norte-americana, e as ameaças indiretas de Uruguai e Paraguai fazerem o mesmo em detrimento de sua presença plena no Mercosul; e a “crise das papeleiras” entre Argentina e Uruguai são fatos da nova realidade política que alimentam a corrente segundo a qual existe uma “crise” no processo de integração da América do Sul.

Uma chave – a principal – para entender esses fatos é compreender a reação dos Estados Unidos, que resistem à redefinição, mesmo que parcial, de sua hegemonia à luz do avanço das forças progressistas na região, e buscam dividir ou cooptar essas forças.

Outra chave, de natureza diferente: as insuficientes convicções de setores dessas forças progressistas no sentido da necessidade de um projeto comum, coletivo, sul-americano, como base para a superação de seqüelas e dramas econômicos e sociais, catapultaram essas mesmas forças aos governos nacionais – no qual não cabem demarcações de qualquer natureza.

É preciso ter em conta que seria uma monumental ingenuidade e subestimação esperar a ascensão de governos progressistas na região, em si mesma, gerar um processo sem obstáculos para a realização da integração. Vale recordar que neste mês de junho completam-se 180 anos da primeira grande tentativa de unir as ex-colônias espanholas da América, então recém-independentes, com o Congresso Anfictiônico do Panamá, comandado por Simon Bolívar, em 1826 – já então solapado pelos Estados Unidos.

Em seu conjunto, as tensões atuais são fenômenos típicos do período de transição pelo qual passa a América do Sul, após finalizarem-se os ciclos políticos hegemônicos anteriores: desenvolvimentismo; regimes militares; redemocratização; governos neoliberais.

Tal período de transição pode conter as sementes de uma nova luta pelo socialismo, mas é condicionado pela característica principal da atual etapa histórica, isto é, pela vigência do neoliberalismo como padrão do capitalismo contemporâneo. Nesse sentido, se elevam as dimensões das tarefas de resistência e da busca de alternativa ao neoliberalismo a uma dimensão de luta anti-sistêmica, anticapitalista.

Ou seja, a transição em si, dada as atuais características do capitalismo, guarda em seu germe a luta pela substituição da atual sociedade – e por isso mesmo, traz em si um conjunto de fases cumulativas e intermediarias. A não compreensão dessa moldura histórica pode levar a derivações táticas voluntaristas, que tendem a queimar etapas históricas a despeito da correlação de forças e, portanto, redundar em retrocessos.

No atual momento, a transição a um novo ciclo na América do Sul se expressa pela busca de afirmação de caminhos nacionais, pelo desenvolvimento. Essa é a dimensão principal da atual conjuntura, na qual a centralidade da questão nacional para a busca da superação das seqüelas históricas, com a emergência de um novo nacionalismo na América do Sul, é a marca principal.

A nacionalização boliviana

A decisão do presidente Evo Morales de nacionalizar os hidrocarbonetos bolivianos em maio último representou a um só tempo um direito legítimo e soberano de seu governo; uma conquista histórica depois de prolongado processo de luta de seu povo; e a realização de um dos dois compromissos fundamentais de sua campanha – o outro foi a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte.

Mas a decorrência principal do ato foi o forte impacto sobre o quadro político sul-americano, na medida em que deflagrou uma violenta ofensiva da parcela da alta burguesia brasileira mais dependente e associada a interesses externos, contra a conformação da Comunidade Sul-Americana de Nações, tendo como núcleo o relançamento do Mercosul, a principal prioridade da política externa do governo Lula nos últimos três anos e meio.

Essa ofensiva explicitou o centro da questão em jogo, ao propor o abandono dessa política, das posições “anacrônicas” e “terceiro-mundistas” e o (re)alinhamento aos Estados Unidos e à União Européia. Sucederam-se propostas que chegavam ao extremo – como o fez um jornal conservador paulistano, reconhecido porta-voz dessas forças –, ao pedirem o uso do “porrete”, no velho (todavia, atual) estilo imperialista do “big stick”.

Menos belicoso, mas igualmente nítido em suas intenções, se expressou um diretor da Fiesp, ex-funcionário do governo FHC, ao sustentar a existência de “um excesso de visão geopolítica em detrimento de interesses comerciais e econômicos”, pelo que defendeu retroceder o Mercosul a uma simples zona de livre comércio em lugar da atual união aduaneira, possibilitando assim a efetivação de acordos bilaterais com os EUA (1). Essa é, pois, uma síntese da opinião média, corrente, desse setor político, econômico e social; insustentável, no entanto, tanto do ponto de vista “dos interesses comerciais e econômicos”, quanto do ponto de vista geopolítico, isto é, dos interesses estratégicos nacionais.

Afinal, no plano comercial, estritamente, os resultados são robustos: as exportações brasileiras aos países da América do Sul mais que dobraram no período em tela e já equivalem às exportações aos EUA. E têm qualidade superior, pois se compõem, sobretudo, de manufaturados. Ao contrário da pauta de exportação para os países ricos, majoritariamente de commodities. Mesmo nesse quesito (pragmático, como dizem eles) da balança comercial, uma relação bilateral Brasil-EUA seria absolutamente desvantajosa, como mostrou bem fundamentado estudo do IPEA (2).

Já a acusação de “excesso de visão geopolítica” retrata a mentalidade colonizada, rebaixada, com que essas forças percebem o Brasil, numa chave subordinada aos interesses de fora, pelo que desprezam e mesmo questionam a possibilidade de um projeto nacional de desenvolvimento.

Olhar o mundo desde a América do Sul

A proposição de adesão do Brasil ao projeto de hegemonia estadunidense é incompatível com as dimensões e a potencialidade do país. A inserção brasileira no mundo deve se dar a partir de seu entorno geopolítico, a América do Sul – não como uma opção, mas como um destino.

O Brasil, para além de qualquer recurso retórico, possui objetivamente diferenças de fundo com os Estados Unidos, pois ambos possuem interesses geopolíticos e estratégicos dispares, antagônicos. Esses contenciosos, a despeito de conjunturalmente se manifestarem ou não abertamente, recrudescerão em médio e longo prazo, sobretudo quando avançarmos na formatação do Projeto Nacional. O antiimperialismo, pois, está na gênese do projeto nacional brasileiro de autonomia.

Afinal – utilizando aqui a feliz síntese do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães – “apenas o Brasil, os Estados Unidos e a China estão, ao mesmo tempo, na relação dos dez países de maior território, dos dez países mais populosos e dos dez países de maior PIB (em paridade de poder de compra) do mundo”, pelo que “o destino da sociedade brasileira jamais poderá ser médio” (2006:341).

Além disso – a despeito da tese às vezes popular entre setores “à esquerda”, e ativamente fomentada desde o centro imperialista –, o Brasil não possui pretensões hegemonistas sobre a América do Sul. Somos um dos poucos, entre os grandes países do mundo, cujo desenvolvimento pode se sustentar, principalmente, no extenso mercado interno nacional – a propósito, base da força do crescimento chinês e indiano atual – e em nossas amplas riquezas naturais e de energia – ou seja, em insumos endógenos. Afinal, a despeito do período neoliberal, “o Brasil é o único país realmente industrializado (produção industrial, maior que produção agrícola) na América do Sul” (3).

O desafio da integração sul-americana para o Brasil atende a um objetivo nobre, de defesa de uma nova ordem mundial. Afinal, para ele, a América do Sul, que “possui o dobro do território e uma população maior que a dos Estados Unidos, é indispensável, para poder defender de forma efetiva seus interesses de longo prazo em um mundo instável, violento e arbitrário (para) trabalhar com firmeza cotidiana para o surgimento de um sistema multipolar, do qual ela (a região) deve aspirar a ser um dos pólos, e não somente uma sub-região de um outro pólo político ou econômico” (2006:406).

Esse sentido estratégico explica, em grande parte e como sentido de fundo, o violento ataque imposto pela parcela da burguesia mais associada aos interesses hegemônicos na campanha vigente nos últimos meses para desestabilizar o governo Lula – a despeito de qualquer insuficiência demonstrada – e, agora, na xenofobia orquestrada contra a Bolívia.

A questão nacional na ordem do dia na América do Sul

A (re)emergência da questão nacional, em maior ou menor grau, do protagonismo do Estado nacional é o fato novo mais destacado decorrente da ascensão das forças progressistas e mesmo de forças de centro aos governos nacionais na América do Sul.

Um traço comum a esses novos governos é a visão crítica ao discurso neoliberal e a busca por retomar instrumentos estatais de promoção do desenvolvimento, pela crescente ou estratégica presença do segmento estatal da economia.

. No Brasil, pelo novo papel destinado às empresas estatais, revitalizadas em seu conjunto, direcionando-as para a busca do desenvolvimento, características de uma política econômica híbrida, de transição.

. Na Argentina, pela retomada do controle de alguns serviços públicos, pela reorganização de uma estatal de petróleo, pela busca ativa do crescimento.

. Na Venezuela, pelo papel da Pdvsa – fortalecida pelos ganhos extraordinários resultantes da alta do petróleo –, na promoção do desenvolvimento e no financiamento de iniciativas de sua política externa no âmbito da Alba; pela proclamação de objetivos socialistas.

. Na Bolívia, pela busca da reorganização das YPFB (Jazidas Petrolíferas Fiscais Bolivianas), arrasadas nos governos neoliberais.

. No Uruguai, onde um conjunto de iniciativas denominadas “Uruguay Productivo” busca viabilizar o desenvolvimento a partir da ação do Estado.

. No Equador, pela desapropriação dos ativos da petrolífera norte-americana Occidental Petroleum e o repasse desses à estatal PetroEcuador. Pelo fim das negociações bilaterais com os EUA.

. No Peru, nas decorrências possíveis da derrota da candidata presidencial com programa ultraneoliberal já em primeiro turno, pela volta do governo da APRA, execrado pelos “mercados”, num Congresso amplamente de centro-esquerda.

. Mesmo no Chile, a despeito de ser exemplo da retórica neoliberal da “boa esquerda”, pela manutenção da gigante estatal de cobre (Codelco) nas mãos do Estado, fato que permite, em grande parte, a busca de uma política fiscal contracíclica de inspiração keynesiana.

Mas não só na América do Sul o edifício da globalização e a tese da diminuição da importância dos Estados Nacionais apresentam claros sinais de fissura, de contestação aberta e de crise, a despeito da persistência de sua hegemonia.

No campo da empresas de energia, por exemplo, há muitos casos, como o da Rússia que reestatizou a Gazprom, uma gigante petrolífera, visando ao domínio de instrumentos estratégicos numa quadra em que depende do fluxo estável desses insumos a sustentação do crescimento de países dependentes de sua importação, como EUA, China e Índia. Mas não é só energia: a The Economist (março de 2006) fez um “inventário” desse “novo nacionalismo” no editorial ironicamente denominado de “Copiando as anotações de Karl Marx”.

Mesmo no terreno das negociações comerciais, a Rodada de Doha da OMC é marcada por impasses: até os mais otimistas não consideram ser possível um acordo amplo que resulte numa importante redução dos distorcivos subsídios agrícolas – a este objetivo o Brasil, através do G-20, tem se empenhado com protagonismo, em correspondência ao interesse nacional e aos interesses dos países em desenvolvimento. O aparecimento do G-20, aliás, foi determinante para o freio, ao menos parcial, à avalanche de imposições cunho ultraliberal no terreno comercial.

Conclusões

A reversão dos atuais obstáculos e tensões que se apresentam no cenário sul-americano e condicionam os avanços da integração regional, tende a se dissipar gradualmente, em velocidades distintas: ela depende, sobretudo, de novos avanços das forças progressistas, de novos saltos na acumulação de forças, da efetivação de convicções estratégicas por parte dessas forças, todavia insuficientes. De projetos nacionais com forte dimensão sul-americanista. Não obstante, está sujeita a retrocessos pontuais e mesmo ao surgimento de novos obstáculos.

Afinal, a América do Sul, dentre as regiões da atual periferia do planeta, é a que apresenta melhores condições para constituir um projeto coletivo autônomo e independente para a conformação de um pólo.

A África padece de extrema pobreza e divisões étnicas e tribais. O Oriente Médio, alvo maior da ofensiva imperialista, está praticamente sob ocupação militar. A Ásia é composta por grandes estados, rivais entre si na busca de uma hegemonia regional.

Já na América do Sul inexistem graves conflitos étnicos ou militares. Nossos povos e nações têm aspirações gerais comum quanto ao desenvolvimento, à soberania, à democracia, à justiça social. Falamos línguas parecidas. Nossas economias possuem forte complementaridade. Temos abundantes recursos naturais, minerais, biológicos, aqüíferos, num mundo marcado pela crescente escassez dessas riquezas. O seu potencial de energia poderá transformá-la em fonte provedora desse insumo, motor do crescimento econômico, com o Gasoduto sul-americano – obra maior do que a construção de Itaipu –, e a promissora experiência brasileira de produção de biocombustíveis (etanol e biodiesel). Temos vastas terras agricultáveis que nos permitem abundante produção de alimentos. Importantes centros industriais, universidades e centros de pesquisas estão situados na região. As barreiras naturais – Amazônia e Cordilheira dos Andes – não são intransponíveis: é possível a integração física da região, como demonstram projetos em curso, como a carteira do IIRSA (4). Temos acesso aos dois principais oceanos do mundo.

Em síntese, estão dadas as condições para a conformação de um pólo independente, soberano, democrático e próspero. Esse é o grande desafio para a luta dos povos brasileiros sul-americanos, no presente, para o futuro.

Ronaldo Carmona é membro da Comissão de relações Internacionais do PCdoB.

Notas
(1) “A política de liderança benevolente”, R. Giannetti da Fonseca, O Globo, 21/05/06.
(2) “ALCA: uma estimativa do impacto no comércio bilateral Brasil-Estados Unidos”, H. Kume e G. Piani, 2004.
(3) “¿Qué quiere Brasil con Sudamérica?”, Luis Moniz Bandeira, La Onda.
(4) Iniciativa para a Integração Regional Sul-americana.

Referências
GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Desafios Brasileiros na Era dos Gigantes. Contraponto, 2006.
PCdoB. Nota sobre a nacionalização dos Hidrocarbonetos na Bolívia, 13/05/2006.

EDIÇÃO 85, JUNHO, 2006, PÁGINAS 66, 67, 68, 69, 70