O sucesso do modelo mercantil sob orientação socialista na China suscita o necessário resgate de uma elaboração científica da Economia Política do socialismo. Mas não somente isto. O êxito chinês bem analisado pode servir à contraposição ao senso comum – nascido na década
de 1930 e que se exacerbou na década de 1990 acerca da inviabilidade econômica do socialismo.

Como ressalva inicial – antes do debate teórico em si –, vale mencionar que o modelo em curso na China encontra fortes convergências com a Nova Política Econômica (NEP) apresentada por Lênin no final da década de 1910. Entre as principais convergências podemos destacar: 1) superestrutura de poder popular; 2) concentração da propriedade estatal e/ou coletiva restrita aos setores com alto grau de monopólio; 3) estatização do comércio exterior; 4) internalização de tecnologia avançada a partir de concessões a investimentos estrangeiros; 5) permissão
à comercialização de excedentes agrícolas, dando margem a: A) uma divisão social do trabalho
marcada por relações favoráveis à agricultura em relação à cidade; B) transformação de recursos ociosos na agricultura em poupança inicial à modernização industrial do país1.

Mercado e plano em Pareto e Barone

O êxito do modelo chinês e o necessário resgate do debate da retomada da construção da Economia Política do socialismo se devem ao fato de a China responder de forma prática à principal questão levantada nos debates do início do século passado:
É possível, sob o socialismo, um sistema contábil e de preços capaz de servir de guia à alocação eficiente de recursos?

Há mais de uma década, antes da Revolução Russa, a viabilidade do socialismo já era pauta de estudos e proposições. A possibilidade de funcionamento de uma economia centralmente planificada e baseada na propriedade social dos meios de produção teve nos economistas neoclássicos Vilfred Pareto e Enrico Barone seus primeiros “advogados”. Podemos classificá-los como pioneiros da idéia de uma economia de mercado sob orientação socialista.

Ambos partiram do correto princípio que compreende a similaridade de funcionamento econômico do capitalismo e do socialismo. Assim, concluíram que as condições de equilíbrio poderiam ser alcançadas pela utilização de um sistema de equações simultâneas onde os preços delas resultantes poderiam servir de parâmetro à correta e racional alocação de recursos2.

A contra-argumentação ultraliberal

Desde 1920, Von Mises e seus seguidores (notadamente Hayek e Robbins) desafiaram os socialistas com cortantes assertivas demonstrativas da impossibilidade do funcionamento de uma economia centralmente planificada.

Suas elaborações buscaram demonstrar que a inviabilidade do socialismo repousa na insuficiência do planejamento em substituir o cálculo econômico como meio de analisar a melhor forma de alocação de recursos. Resumidamente, sendo o cálculo a única forma de se auferir escassez, na falta deste mecanismo torna-se proibitiva a tomada de decisões racionais
de investimentos3.

Enfim, uma economia planificada e baseada em decisões elaboradas por agentes administrativos estaria fatalmente condenada ao caos macroeconômico.

Uma contradição a se considerar

O ultraliberalismo é legado do que desdenhosamente Marx classificou como “economia vulgar”.
Resumidamente são dois os pressupostos teóricos dessa corrente: 1) da mesma forma que as leis da natureza, as leis econômicas também têm caráter universal; 2) como universais, as leis econômicas atuam de forma uniforme e invariável em qualquer lugar onde ocorram atividades econômicas.

A essência do materialismo histórico encontra-se na demonstração de que as leis e categorias da Economia Política não são imutáveis como as leis da natureza, mas sim o resultado das relações econômicas entre os homens no curso do processo social de produção, distribuição e troca dos meios materiais. Logo, as leis da Economia Política – e as relações sociais que dela derivam – têm prazo de validade determinada pela história.

Aos ultraliberais, a propriedade privada dos meios de produção é requisito fundamental tanto para a alocação racional dos recursos, quanto para a liberdade de escolha dos consumidores. Tomando esta observação e agregando que na cultura liberal o processo econômico é regido por leis de cunho universal, podemos questionar:

1) A “concorrência perfeita” no capitalismo não foi substituída pelo oligopólio, cuja superação só é possível no socialismo?
2) Afirmar a inviabilidade do socialismo pelos motivos já expostos, não redunda numa surpreendente análise institucionalista em uma elaboração ultraliberal?
3) Se as leis econômicas têm caráter universal, não é contraditório enunciar a racionalidade econômica como característica intrínseca de uma sociedade baseada na propriedade privada dos meios de produção?4

Oscar Lange e a “solução competitiva” no socialismo

A principal resposta no campo marxista às elaborações ultraliberais veio de Oscar Lange (1904-1965). Suas mais importantes elaborações foram publicadas inicialmente em duas partes em 1936 sob o título On the Economic Theory of Socialism. Posteriormente, em 1938 – em parceria com Fred Taylor – a transformou em livro sob o mesmo título.

Demonstrando sensibilidade ante os problemas levantados pelos ultraliberais, construiu – juntamente com Fred Taylor e Abba Lerner – um teorema que alcançou surpreendente resultado onde um sistema socialista mediado pela planificação central e munido de um sistema de preços como referência à alocação de de recursos poderia obter um ótimo resultado econômico
semelhante ao obtido nos teoremas econométricos de Arrow Abreu. Para tanto, partiu de cinco premissas: 1) a diferença entre os dois sistemas encontra-se na composição de classes no poder e na forma de apropriação do excedente econômico; 2) o modo de determinação dos preços no socialismo funciona de forma análoga à verificada numa economia capitalista; 3) o poder proletário deve se ocupar em princípio somente com a socialização dos meios de produção essenciais ao funcionamento da economia; 4) o cálculo econômico é essencial, pois nenhum mecanismo substitui completamente o mercado; 5) a propriedade privada em pequena
escala na indústria e na agricultura é parte essencial no processo de acumulação socialista5.

O núcleo de sua teoria é baseado na formação – no âmbito do plano – de um organismo capaz de simular o mercado. A combinação do mercado com o socialismo reside na relação dialética entre três níveis decisórios: 1) No topo da pirâmide, a Comissão de Planejamento Central com a tarefa de: a) ajustar os preços dos meios de produção de acordo com a oferta e a demanda;
b) distribuir os ganhos sociais utilizando as reservas das empresas estatais; e c) apesar de seu poder, a Comissão – como na China – não tem poder sobre o que e como se vai produzir; 2) o nível intermediário ocupado pelos departamentos de administração das indústrias, responsáveis pela determinação de vários setores da produção; e 3) no plano inferior estão as empresas estatais, a permitida propriedade privada em setores não-estratégicos e as famílias.

A obra de Lange é a principal fonte teórica dos programadores econômicos chineses.

Acumulação no rumo do “socialismo pleno”

A vantagem de economistas como Oscar Lange e os gestores do modelo chinês, encontra-se no fato de haverem percebido que a solução da problemática econômica do socialismo passava pela utilização dos enunciados clássicos.

No terceiro volume de O Capital, Marx – influenciado por Ricardo – demonstra claramente o papel exercido pela demanda sobre a racional alocação de recursos. Isto se deve ao fato de o valor utilidade de uma mercadoria estar relacionado diretamente com a demanda efetiva da mesma.

Segundo Engels: “A utilidade que apresentam todos os bens de consumo, comparada entre si e a consideração inerente à quantidade de trabalho para produzi-los, será os fatores que determinarão o plano”6. Em poucas palavras, Engels suscita a solução do problema. Solução esta trabalhada em demasia por Oskar Lange. Vamos a ela.

O socialismo demonstraria superioridade na medida em que a quantidade de trabalho utilizada na produção de uma mercadoria refletisse a quantidade marginal; logo os custos de produção tenderiam a se reduzir. Assim, em longo prazo tal custo refletiria os custos do trabalho necessário. A diferença entre os custos do trabalho e o valor real da mercadoria é conseqüência
das rendas diferenciais originadas no preço dos serviços dos recursos naturais7.

Ao levar às últimas conseqüências o processo de acumulação descrito acima, chega-se ao ponto em que a produtividade marginal do capital chegaria a zero8. A lei da oferta e da procura e a lei do valor perderiam razão de existir na medida em que a produção de cada mercadoria se elevaria a ponto de as quantidades marginai sde trabalho empregadas na obtenção de diferentes
mercadorias se igualarem à razão auferida das utilidades marginais e de preços destas mercadorias9.

A apreensão de automação industrial é a condição objetiva principal ao êxito deste processo de longo prazo. Além do já escrito, a automação industrial permite a libertação do homem do jugo da máquina: é o fim do processo de educação do proletariado que, enfim, poderia gerir a produção à sociedade. O “socialismo pleno” seria alcançado.

Leis econômicas e a “etapa primária do socialismo”

A Economia Política tem como objeto de estudo as leis econômicas: seu caráter, alcance histórico, modo de ação, relações mútuas e suas conseqüências nas múltiplas determinações do concreto.
O socialismo é a fase primária do comunismo e na concepção dos chineses, a China ainda se encontra na “etapa primária do socialismo”. A verdade desta constatação pode ser mais bem auferida se nos apreendermos em Marx, que creditou à transição socialismo- comunismo a tarefa de eliminar as diferenças entre campo e cidade, trabalho manual e intelectuais e as inerentes à agricultura e indústria. Os chineses classificam esta constatação de “as três grandes
diferenças”10.

São concretos os fatores que caracterizam a etapa primária do socialismo: 1) formação social onde a maior parte da população está ocupada na agricultura e dependente do trabalho manual; 2) escassez de recursos minerais; 3) ciência e tecnologia atrasadas; 4) grandes disparidades regionais de ordem econômica, social e cultural; 5) grande parte da população vivendo com
dificuldades; 6) falta de autonomia tecnológica e de financiamento; e 7) grande distância em relação ao nível de desenvolvimento do centro do sistema11.

Num país de dimensões continentais, e altamente populoso, como a China e onde a própria natureza (montanhas e desertos) é fator de dificuldades, vale questionar: quanto tempo esse processo de transição (socialismo-comunismo) demoraria?

De que forma os fatores expostos podem influir na ação das leis econômicas?

As características apresentadas são expressões do fato de o socialismo ter vencido em formações sociais periféricas. Logo, e naturalmente, as heranças de sistemas anteriores continuam a agir. A conseqüência destas influências é sentida nas superestruturas de países como China, Cuba e Vietnã: são muito sensíveis à fluidez (corrupção, influência de culturas
estrangeiras, sobrevivências feudais etc).

Mais especificamente – para o caso da China – pode se verificar a ação de resquícios do modo de produção asiático. Resquícios positivos (planejamento, administração pública eficiente, capacidade de rápida intervenção sob o território, capacidade de iniciativa comercial dos camponeses etc) e negativos (cultura feudal). Fator agravante reside na ainda mediação
por meio da escassez, o que faz com que um sistema de preços ainda seja necessário.

Assim, por mais que a China tenha internalizado os instrumentos (superestrutura de poder popular, socialização dos meios de produção e o planejamento) que viabilizam a anulação da ação do caráter espontâneo da ação das leis econômicas, as leis econômicas intrínsecas a economias planificadas e baseadas na propriedade social ainda não alcançaram um
nível de cristalização necessário. A título de exemplo, os sobre-investimentos em determinados ramos industriais na China têm – além do carreirismo de muitos governadores de províncias e/ou regiões autônomas – nas relações (de tipo feudal) entre gerentes de bancos e prefeitos de cidades médias uma das fontes do problema.

Fator agravante é encerrado na atual correlação de forças em âmbito mundial e a supremacia do imperialismo nos campos militar, econômico e ideológico.

Economia Política do socialismo e a categoria de formação social

Como forma de evitar a generalização típica à Economia Política produzida na União Soviética, onde o “modelo soviético” transformou-se em paradigma, assim como o “naturalismo” típico dos liberais, o marxismo nos dispõe categorias de análise quase insubstituíveis. O método da verificação das múltiplas determinações do concreto não pode prescindir da análise da formação social de cada nação, região ou território.

Ouvimos todos os dias afirmações – sobre a China – do tipo “trabalho escravo”, “falta de direitos humanos”, “democracia”, “onde tem mercado tem capitalismo”, “será um país imperialista” e outros absurdos. Ora, é muito claro que a lei do valor é uma questão de formação social: um dólar na China não tem o mesmo valor verificado nos EUA. Mais: num país com 700 milhões de camponeses, só podemos concluir ser ínfima a parte da renda familiar gasta
com alimentação. A história pode demonstrar que a democracia chinesa remonta a séculos no nível da aldeia da mesma forma que a pequena produção mercantil no nordeste norte-americano é a base em que se desenvolveu a democracia nos EUA12.

Isso sem citar que a civilização chinesa ao se assentar em vales férteis deu origem a filosofias de cunho tolerante, ao contrário do Mediterrâneo Oriental onde as péssimas relações homem-natureza deram vazão a ideologias messiânicas (povo eleito, espaço vital, destino manifesto, imperialismo)13.

China, Hungria, Polônia, Iugoslávia – reflexões

Hungria, Polônia e Iugoslávia também foram laboratórios de “socialismo de mercado”, que – dado seus insucessos – foram próceres da restauração capitalista no Leste europeu. Assim, poderíamos nos perguntar:

1) O sucesso chinês não é fruto de uma divisão social do trabalho surgida – no bojo da separação entre economia de ganho e economia doméstica – há mais de 3.700 anos, enquanto na Europa Oriental, as revoluções burguesas do século XIX foram abortadas, dando margem a um processo de “refeudalização” findado com a instalação de democracias populares depois da 2ª Guerra Mundial?

2) A capacidade política do Estado chinês de intervenção rápida sob seu território não é um resquício do modo de produção asiático, onde há pressão camponesa sobre o poder imperial para construção de grandes diques, barragens e obras hidráulicas com utilidade na contenção de desastres naturais decorrentes da ação das chuvas de monções?

Será que da mesma forma que Mao Tsetung apoiou-se nos camponeses pobres para levar a cabo a revolução nacional-popular de 1949, Deng Xiaoping não transformou a histórica capacidade mercantil dos camponeses médios na mola propulsora da política de Reforma e Abertura iniciada em 1978?

Finalizando, cabem as observações de meu mestre Armen Mamigonian acerca da historicidade
das transições e as relações entre o nacional e o mundial: “Assim como a revolução socialista permaneceu isolada na URSS, por décadas, a primeira revolução capitalista ficou isolada na Inglaterra, frente à hostilidade do feudalismo da Europa continental. As relações entre os fenômenos nacionais e mundiais não são tão simples e a transição de um sistema a outro é mais complexa e prolongada do que se imagina”14.

Elias Jabbour é Doutorando e Mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP, membro do Conselho Editorial de Princípios e autor de China: infra-estruturas e crescimento econômico (Anita Garibaldi, 2006, 256 p.) e China: desenvolvimento e socialismo de mercado (Depto. de Geociências do CFH-UFSC, 2006, 86 p.).

Notas
(1) A NEP como experiência foi abortada pelo acirramento da luta de classes no âmbito mundial (isolamento comercial da URSS);
logo, o “modelo soviético” marcado pela formação de poupança relacionada às safras agrícolas foi a melhor forma de se auferir
uma rápida industrialização.
(2) Pareto demonstrou sua hipótese em duas obras: Socialist System (1903) e Manual of Political Economy (1906). Barone destacou-se pela publicação, em 1908, de The Ministry of Production in the Collective State.
(3) O trabalho de Von Mises de 1920 pode ser encontrado em inglês: In Von Hayek, F. (org.): Collectivist Economic Planning, publicado em 1935. Outra obra Socialist, foi publicada em 1937 em Nova Iorque.
(4) A negação da possibilidade da racionalidade econômica no socialismo é um enunciado puramente institucionalista.
(5) LANGE, O.The Practice of Economic Planning and the Optimum Allocation of Resources.Econometrics. Chicago, 1949, vol. 17, p.167-178.
(6) ENGELS, F.: “AntiDüring”. Paz e Terra. São Paulo, 3ª ed., 1990, p. 335-336.
(7) LANGE, O. On the Economic Theory of Socialism. Universidade de Minnesota. 1938, p. 147.
(8) A redução da quantidade marginal a zero é produto da ação da propriedade social dos meios de produção e do planejamento.
(9) Idem à nota 6.
(10) WANCHUN, Pen: The Dialectical Materialism and the Historical Materialism. Foreign Language Press, Pequim, 1985, p. 218.
(11) ZEMIN, Jiang: “Hold High the Great Banner of Deng Xiaoping Theory for an All-Round Advance of the Cause of Building Socialism with Chinese Characteristics into the Twenty-First Century”.Report to the Fifteenth National Congress of Communist Party of China. People’s Publishing House, Pequim, 1992, p. 15.
(12) Walt Whitman, poeta da revolução americana e um dos preferidos de Marx, é expressão desta formação social. Porém, o desenvolvimento
histórico do processo de construção da nação norte-americana é concomitante com a decadência desta democracia.
(13) As determinações culturais e naturais têm sua importância. Porém deve-se atentar para não se “descambar” em análises culturalistas
(de tipo liberal) ou de caráter determinista. Aliás, ao utilizar a categoria de forças produtivas na análise, fica latente o pressuposto das relações mútuas entre homem e natureza, afinal de tais relações e do desenvolvimento da capacidade humana de atuar sobre a natureza é que são desenvolvidas as forças produtivas.
(14) MAMIGONIAN, Armen: “Marxismo e ‘Globalização’: As Origens da Internacionalização Mundial”. In, Milton Santos: Cidadania
e Globalização. AGB/Bauru. Saraiva. Bauru, 2000, p. 95-100.

EDIÇÃO 87, OUT/NOV, 2006, PÁGINAS 75, 76, 77, 78, 79